Por Eliane Gonçalves e Mariana Martins de Carvalho
Algumas sociedades construíram estruturas comunicacionais com o objetivo de reduzir as desigualdades que dão a alguns lugar privilegiado para exposição de ideias e opiniões. Sem sistemas para contrabalançar, lugares privilegiados de fala se retroalimentam e consolidam ainda mais privilégios. Ao longo do século XX sistemas comunicacionais de caráter público foram estruturados em vários países. Caracterizam-se por financiamento público, não terem o lucro como finalidade e contarem com salvaguardas para reduzir interferências do poder econômico do mercado e de ingerências dos governos: na Inglaterra, a BBC; no Japão, a NHK; nos Estados Unidos, as emissoras do sistema PBS; na Alemanha, os sistemas ZDF, ARD e a Deustche Welle (DW). Já o Brasil – apesar do princípio constitucional de complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão – mantém um dos ecossistemas comunicacionais mais desequilibrados do mundo.
A democracia é um sistema político que, grosso modo, tem como princípio a participação da sociedade nos processos decisórios. Como, mesmo em sociedades mais homogêneas a diversidade não pode ser eliminada, processos decisórios que levam em consideração grupos majoritários e minoritários têm um potencial de conflito. Garantir que indivíduos diferentes possam, apesar das diferenças, serem tratados como iguais em direitos é um dos desafios dos sistemas democráticos. Democracias sólidas não são simplesmente as que permitem liberdades e garantem direitos individuais, mas aquelas que –conseguindo administrar dissonâncias e reforçar consonâncias – conseguem manter seu tecido social, reduzindo as desigualdades entre as pessoas sem homogeneizar as diferenças. Administrar conflitos passa pela exposição das diferenças e pelo debate de ideias. Não é por acaso que as ágoras, espaços públicos que caracterizaram a democracia grega, tornaram-se símbolos marcantes desse sistema político. Elas são, como aponta Jurgen Habermas em Mudança estrutural da esfera pública (1984), uma das gêneses da esfera pública, que passou a ser um conceito fundamental para se entender a sociedade e a democracia e, principalmente, para se entender o papel da comunicação nesse contexto.
Um dos desafios de um regime democrático é garantir o espaço equânime para o exercício das liberdades de imprensa e de expressão, ou seja, garantir uma esfera pública diversa, plural e livre. Esse desafio segue se complexificando na medida em que a sociedade e seus sistemas comunicacionais tornam-se também mais complexos. Habermas diz que enquanto essa esfera se amplia cada vez mais grandiosamente, a sua função passa a ter cada vez menos força. Mesmo assim, pontua o autor, “a esfera pública continua sendo, sempre ainda, um princípio organizacional do nosso ordenamento político” (pág 17). E completa:
“Caso seja possível entender historicamente, em sua estrutura, a complexão [conjunto, compleição] do que hoje, de um modo um tanto confuso, subsumimos sob o título de ‘esfera pública’, podemos então esperar, além de uma explicação sociológica do conceito, conseguir entender sistematicamente a nossa própria sociedade a partir de uma de suas categorias centrais.”
Garantir a plena liberdade de expressão, portanto, é muito mais do que dar direito à fala, mas principalmente garantir lugares de fala dentro da “nova ágora”, da nova esfera pública ou do complexo ecossistema midiático das democracias modernas.
Em outras palavras, mas com as mesmas preocupações, Marilena Chauí recupera os conceitos de isonomia e isegoria como pilares democráticos:
“Definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real.” (Chauí, 2012 )
Algumas sociedades construíram estruturas comunicacionais com o objetivo de reduzir as desigualdades que dão a alguns lugar privilegiado para exposição de ideias e opiniões. Sem sistemas para contrabalançar, lugares privilegiados de fala se retroalimentam e consolidam ainda mais privilégios. Como parte do conceito fundante e como pilar da própria democracia, ao longo do século XX sistemas comunicacionais de caráter público foram estruturados em vários países, principalmente na Europa, com o objetivo de equilibrar o direito das pessoas de se informarem, se expressarem e, ao final, estimular o livre debate de ideias. Esses sistemas se caracterizam – alguns mais, outros menos – por estarem subordinados ao interesse público, terem financiamento público, não terem o lucro como objetivo final e contarem com salvaguardas para reduzir as interferências do poder econômico do mercado e de ingerências dos governos.
Países com democracias consideradas mais consolidadas mantêm sistemas públicos que tentam seguir esses princípios: na Inglaterra, a BBC; no Japão, a NHK; nos Estados Unidos, as emissoras do sistema PBS; na Alemanha, os sistemas ZDF, ARD e a Deustche Welle (DW)[1].
Como é dinâmica a democracia, também o são esses sistemas comunicacionais:
“Boa parte das empresas públicas de comunicação no mundo, às quais nos referimos quando queremos falar sobre independência e jornalismo de qualidade, passaram em algum momento por afrontas à sua autonomia, e o que as fizeram responder melhor ou pior à usurpação do seu caráter público foi justamente o lastro social e a maturidade ou não da democracia enquanto forma de governo em que estavam inseridas e que as sustentava.” (Carvalho, 2019)
Ao mesmo tempo em que sistemas públicos de comunicação alimentam a democracia como ágoras eletrônicas que, se não abrem, ao menos se esforçam para a multiplicidade de vozes e opiniões, a democracia também fortalece os pilares desses sistemas de comunicação.
Já na sociedade brasileira, o direito de isonomia ao acesso a informações e a livre expressão de ideias e opiniões não são uma marca. Venício Lima costuma citar o Sermão de Nossa Senhora da Anunciação, de padre Antônio Vieira, para se referir a uma cultura do silêncio entranhada fundo nas raízes da sociedade brasileira que já era apontada como um problema no século XVII no Brasil (Lima, 2017).
Quase 380 anos depois, a liberdade de expressão segue sendo um desafio. O sistema de radiodifusão brasileiro é marcado por um oligopólio que concentra tão poucas empresas que não seria difícil compará-lo à categoria de um monopólio em que apenas seis empresas familiares têm mais de 90% da audiência de leitores, ouvintes e telespectadores do país (Article 19, 2007).
Não é coincidência que a concentração dos meios de comunicação tenha sido impulsionada justamente nos períodos em que a democracia deu lugar a regimes autoritários. No Estado Novo, o decreto de Getúlio Vargas que previa dois sistemas comunicacionais – o público e o privado – virou letra morta com a operacionalização de um sistema de concessão de canais pouco transparente e políticas de estímulo apenas à gestão comercial do setor.
Duas décadas depois, a Ditadura Militar consolidaria os grandes oligopólios privados de comunicação. Tanto por um sistema de concessão de canais de rádio e televisão usado como “moeda de barganha política” (Lima e Lopes, 2007), quanto pelo forte investimento estatal nas empresas privadas, especialmente na Rede Globo. Segundo Cardoso de Mello e Novais (1998), a ditadura foi responsável pelo sucesso que transformou a Globo praticamente em um monopólio “que pode opor barreiras quase intransponíveis à entrada de novos concorrentes ou ao crescimento dos que já estavam estabelecidos” (Mello e Novais, 1998, p. 638).
Já as estruturas de radiodifusão não comerciais foram relegadas nesses e em outros períodos a um papel secundário. Canais de rádio e televisão ficaram vinculados a governos estaduais na forma de televisões e rádios educativas, salvo casos raros, dependentes do interesse do governo da ocasião para garantia de recursos, com infraestrutura precária e sem autonomia política.
No processo de reabertura democrática, grupos progressistas ligados a movimentos sociais e de defesa da liberdade de expressão – dos quais o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações foi a principal expressão – passaram a pressionar por regras mais transparentes e equilibradas no campo da comunicação. Em 1988, o conceito de complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão passa a ser estabelecido pela Constituição Federal. O texto determina que emissoras públicas devem coexistir de forma complementar com emissoras comerciais e as emissoras estatais no espectro eletromagnético. Mas o texto legal não foi regulamentado a contento e, portanto, não foi suficiente para mudar o cenário. Apenas iniciativas isoladas como as televisões estaduais educativas e canais comunitários e universitários, estes últimos possíveis a partir da Lei do Cabo, se mantinham como pequenos pontos fora da curva em, possivelmente, um dos ecossistemas comunicacionais mais desequilibrados do mundo.
O avanço do espectro democrático no Brasil e a criação de uma empresa de comunicação pública
Foram necessárias praticamente duas décadas depois de publicado o texto constitucional para se implantar no país a principal tentativa de concretizar um sistema público de radiodifusão. Esse projeto só foi possível com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) através de uma medida provisória de dezembro de 2007, que se tornou lei em abril de 2008, já, portanto, durante o segundo governo de Luís Inácio Lula da Silva. A empresa nasce do espólio deixado pelas estatais de comunicação vinculadas ao governo federal[2] e, até 2019, a empresa era responsável pela TV Brasil, sete emissoras de rádio e uma radioagência (agência de notícias de rádio)[3], além da Agência Brasil. Além disso, também era responsável por colocar no ar a NBR e a Voz do Brasil, estas últimas, via prestação de serviços para a presidência da República. Além de gerir seus veículos próprios, a EBC também tinha como missão fortalecer a Rede Nacional de Comunicação Pública – que reunia emissoras públicas e educativas do Brasil – e fomentar a produção audiovisual no país se transformando em uma janela de exibição do setor.
Diferente das emissoras educativas governamentais que antecederam a EBC, o projeto que deu sustentação à empresa contava com algumas salvaguardas que tentavam fazer com que a estrutura fosse condizente com o conceito de comunicação pública: participativa, plural, diversa, representativa e autônoma, tanto econômica quanto politicamente.
Entre essas salvaguardas estavam:
1. O caráter de mandato de quatro anos para o presidente da empresa que, uma vez nomeado pela presidência da República não poderia mais ser demitido por ele.
2. Um conselho curador, instância deliberativa formada majoritariamente por representantes da sociedade civil, responsável por garantir a participação social e a observância dos princípios e objetivos da comunicação no conteúdo transmitido pelos veículos da EBC. Essa era a única estrutura com poderes para demitir o presidente da EBC e
3. A criação da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP)[4].
Essas estruturas são alguns dos mecanismos pensados para proteger a comunicação pública da influência de poderes políticos e econômicos e, ao mesmo tempo, garantir o controle da sociedade sobre o conteúdo produzido e veiculado pela empresa, bem como pela rede de emissoras públicas a ela ligada. Essas características são também fundamentais na diferenciação entre os sistemas governamental (estatal) e público.
Um novo ciclo de crise democrática no Brasil e a comunicação pública como alvo
Paulatinamente, a estrutura que nasceu para ser pública viu esses três pilares sendo abandonados ou diretamente atacados. Os recursos da CFRP nunca chegaram a ser totalmente depositados para a EBC, seja porque as empresas de telefonia acionaram a Justiça contra a transferência de recursos, seja porque quando passaram a contribuir esses recursos eram diluídos no Tesouro Nacional e a empresa seguia dependente dos recursos da União. Em 12 anos, esse fundo acumula um saldo de cerca de R$ 2 bilhões[5].
Os outros dois pilares foram atingidos depois que se concretizou o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva dois anos depois. O impeachment se deu a partir de denúncias frágeis na gestão do orçamento público e a prisão do ex-presidente é resultado de um processo eivado de arbitrariedades cuja parcialidade é motivo de denúncia em cortes internacionais. Depois de um longo processo de criminalização da política que contou com a participação do Ministério Público Federal (MPF), do Judiciário em diferentes instâncias, e de parte significativa e hegemônica da mídia comercial, o Brasil ficou diante de mais um presidente deposto (no caso uma presidenta, a primeira a ser eleita no país) e um ex-presidente (líder das pesquisas de intenção de votos em 2018) preso. Dessa forma, o caminho ficou aberto para um dos mais fiéis resultados do que a criminalização da política poderia produzir naquele momento: a eleição, para presidência do país, de Jair Bolsonaro, militar da reserva, que atuou como deputado pelo Rio de Janeiro por 27 anos, mas que nunca teve expressão no Congresso Nacional. Para deixar ainda mais clarividente as condições questionáveis pelas quais o ex-presidente Lula foi condenado, Bolsonaro nomeou como ministro da Justiça do seu governo o juiz que condenou Lula em primeira instância, Sérgio Moro[6].
Desde os primeiros momentos, esse processo contou com um instrumento fundamental: o apoio da mídia e o controle da opinião pública. As grandes corporações midiáticas – assim como em outros momentos de fissuras na democracia brasileira – não foram apenas coadjuvantes, mas uma das protagonistas nesse processo de ruptura democrática que inevitavelmente o Brasil passou a atravessar a partir de 2016.
Segundo Luís Felipe Miguel (2017), “A ‘desdemocratização’ que vivenciamos não é um acaso, um azar, uma turbulência do momento – é um projeto. É o projeto das classes dominantes na atual quadra histórica. Visa anular o grau de imprevisibilidade que a democracia, mesmo limitada, introduz na reprodução da dominação”.
Esse é um processo conturbado que ainda não acabou, mas que já foi suficiente para revelar a já tão anunciada fragilidade da democracia brasileira e também deixou explícita a debilidade do sistema comunicacional brasileiro, que ajuda a conduzir a distribuição de forças e interferir na escolha de mandatários a favor de grupos hegemônicos. É, portanto, por ato contínuo que se conclui que a construção e o fortalecimento de estruturas que promovam uma maior diversidade de vozes não é bem vista por quem sempre deteve o controle desse latifúndio midiático.
É assim que o ecossistema comunicacional altamente concentrado se transforma no principal predador dos projetos de comunicação pautados por interesses mais republicanos. Nesse cenário a EBC sofreu (e continua sofrendo) ataques que debilitam as estruturas ainda pouco consolidadas e que garantiriam seu caráter público.
O processo de desmonte da EBC ainda está em andamento, mas já é possível dividi-lo para fins didáticos em, ao menos, dois estágios: 1. desmonte do arcabouço legal e 2. deglutição do sistema público de comunicação pela comunicação estatal/governamental do poder executivo.
O desmonte do arcabouço legal teve início durante o governo de Michel Temer. A empresa, sempre tratada como uma estatal de pouca relevância, foi a primeira instituição a sofrer interferência. Ainda como presidente interino, Temer demitiu o então presidente da EBC, Ricardo Melo, nomeado dias antes por Dilma Rousseff. A demissão ocorreu ao arrepio da lei, que garantia a Melo mandato de quatro anos e que conseguiu retornar à presidência da empresa por meio de uma liminar do ministro Dias Tófolli do Supremo Tribunal Federal (STF). Quando assumiu definitivamente o cargo, Temer publicou imediatamente uma medida provisória (MP) alterando a lei da EBC e colocando fim não apenas ao mandato do presidente da EBC, como também extinguindo o conselho curador. A última reunião do conselho aconteceu nas escadarias do hall externo da sede da EBC em Brasília porque os conselheiros foram proibidos de entrar na empresa por ordem expressa do então presidente, Laerte Rímoli.
Em fevereiro de 2017, menos de dois meses depois de aprovada pela Câmara dos Deputados, a MP foi aprovada pelo Senado Federal e os dois pilares que, ainda que de forma capenga, vinham mantendo a EBC com características públicas foram derrubados.
A segunda etapa do processo de desmonte da EBC ainda está em andamento mas já dá sinais claros de uma espécie de fagocitose da comunicação pública pela comunicação de governo. Durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro não poupou ataques à EBC e prometeu acabar com a empresa tão logo assumisse. Passados pouco mais de seis meses do início do mandato, o presidente vem sinalizando que pretende manter a estatal [nota do editor: após a conclusão deste artigo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, incluiu a EBC na lista de empresas que deverão ser privatizadas pelo atual governo]. Mas isso não significa o reforço dos princípios da comunicação pública. Sem as instituições de controle, sem a proteção legal às estruturas de sustentação e com o completo desprezo da legislação em vigor, o governo Bolsonaro vem encontrando terreno livre para implantar mudanças que afastam a EBC do conceito de comunicação pública e a aproxima da comunicação governamental, deixando mais uma vez a sociedade alijada de um dos sistemas previstos na Constituição Federal. Os dois principais indícios da mudança de norte são:
1. A fusão da TV Brasil, o canal público, com a TV NBR, o canal do poder executivo;
2. Os cada vez mais frequentes casos de censura dos conteúdos jornalísticos.
Em abril de 2019 entrou em vigor a portaria 216[7], assinada pelo atual presidente da EBC, Alexandre Graziani. A norma interna registra a fusão, flagrantemente ilegal, entre comunicação pública e comunicação de governo. A portaria integra as atividades, equipes e programação da TV Brasil – a emissora pública – com a da TV NBR, o canal do poder executivo federal que só é mantido pela EBC em função das atividades de prestação de serviço. A portaria afronta o que ainda resta da lei de criação da EBC, que determina a completa separação dos dois veículos, colocando a gestão dos veículos do governo como uma mera prestação de serviços e forma de garantir recursos que ajudem na sustentabilidade financeira da comunicação pública. Por ir contra um preceito constitucional e por afrontar uma lei, a portaria está sendo questionada na Justiça, mas a programação das emissoras públicas – aí incluídas emissoras de rádio e a agência de notícias – já vivem um processo esquizofrênico em que entrevistas, programas jornalísticos ou desenhos animados são interrompidos para transmissão de briefings do porta-voz da presidência da República ou lives presidenciais transmitidas originalmente pelo Facebook.
Na prática, o conteúdo que deveria ir ao ar pautado por princípios públicos torna-se conteúdo acessório, uma espécie de moldura que vem sendo recheada com conteúdos de interesse exclusivo do governo. Há uma espécie de fagocitose que está sendo operada pela comunicação do poder executivo, que usa a comunicação pública como um hospedeiro, mantendo-se o nome e o canal, mas a essência já é outra.
Como se fosse um espelho, a EBC padece de uma dificuldade intrínseca à sociedade brasileira – que nunca viu consolidado sequer o conceito de público – e não consegue se consolidar enquanto uma empresa de comunicação pública. Uma característica discutida por Raymundo Faoro, em Os donos do poder (Faoro, 2000), que aponta para uma organização do poder econômico que se apropria do poder público a fim de atender seus interesses privados.
A mudança operada na estrutura tem impacto imediato na produção do conteúdo. Ainda estão sendo feitos levantamentos mais detalhados sobre os casos de censura que passaram a ser registrados na EBC, mas alguns saltam aos olhos, como a proibição do uso da palavra “fuzilamento” para se referir ao caso do músico e do catador de recicláveis que foram mortos por tiros de fuzis disparados por militares no Rio de Janeiro em abril de 2019 ou a determinação que proibiu os jornalistas de explicarem o que levou centrais sindicais que sempre foram adversárias a se unirem no 1º de Maio – no caso, a draconiana proposta do governo de reforma da Previdência.
Se por um lado, os casos de censura dão concretude às mudanças no rumo do projeto de comunicação pública, por outro lado, revela indiretamente uma potência de resistência interna, guardada nas pessoas que integram a empresa. Grande parte dessas pessoas entrou na EBC via concurso público e com intenção de fazer comunicação pública. Se jornalistas, redatores, roteiristas e programadores precisam ser censurados é porque continuam dispostos a defender o espaço que vai disputar narrativas e estimular a polifonia.
Notas conclusivas
Se sociedades com democracia consolidada ajudam a fortalecer os pilares da comunicação pública, o contrário também acontece com democracias frágeis. A debilidade da EBC é reflexo e espelho da fragilidade da democracia no Brasil.
A criação da EBC representou um avanço para as políticas de comunicação da última década e meia. A lei que criou a empresa consolidou um sistema público, não governamental, de radiodifusão – que estava previsto na Constituição desde 1988 e serviu também como norte para a retomada das discussões sobre o papel das emissoras estaduais no sistema público e deste no ecossistema midiático como um todo. Mas, como não poderia ser diferente, muitas dificuldades também apareceram.
Dificuldades que, apesar de não comprometerem por completo a missão e o caráter da comunicação pública, ou do que se construía como tal, foram fundamentais para justificar o ataque ao projeto no momento em que não só o governo, mas o próprio Estado, passou a enfrentar uma das maiores crises políticas da sua história. A crise na democracia brasileira é também uma crise das suas instituições. Uma democracia frágil é reflexo e fonte de instituições igualmente frágeis. (Carvalho, 2019)
A imprensa é uma dessas instituições, funciona como mecanismo externo à política institucional, mas compõe estruturalmente essa rede, esse pilar de sustentabilidade da democracia. A existência de uma imprensa livre, diversa e plural em formatos (pública, governamental, comercial, comunitária etc.) e em conteúdos é um termômetro e também o combustível de uma democracia consolidada ou em construção, como no caso do Brasil.
Se a existência da democracia é condição para uma imprensa livre, ela é ainda mais determinante para a comunicação pública, cuja relação com o Estado e muitas vezes – mesmo que inadvertidamente – com o governo é íntima. A EBC, que nasceu em um momento em que a democracia parecia estar em ascensão no Brasil, não passou incólume às crises. É sabido que no Brasil a democracia nunca foi forte suficiente para garantir nem uma imprensa livre nem um sistema público de comunicação plenamente autônomo e independente do governo. Contudo, essa geração – assim como foi a de 1964 – está sendo testemunha ocular de mais um dos processos de retrocesso democrático e a comunicação pública tem sido um claro exemplo desse desmonte. Como foi explorado ao longo deste artigo, o caminho da “desdemocratização[8]” foi deixando marcas, feridas e fraturas expostas na EBC. E “sem democracia não há condições materiais para a existência e desenvolvimento da comunicação pública” (Carvalho, 2019) tendo a EBC, depois de tantos atentados, entrado, definitivamente, em coma profundo.
Eliane Gonçalves é jornalista com mestrado no Diversitas (Núcleo de Estudos de Diversidades, Intolerâncias e Conflitos) da FFLCH-USP e atua como repórter na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Mariana Martins de Carvalho é jornalista, doutora em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e Gestora em Comunicação Pública da EBC.
Bibliografia
Faoro, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. v. 1-2. 10 ed. São Paulo: Globo/Publifolha, 2000.
Chauí, M. “O poder da mídia”. Observatório da Imprensa. Edição 710 de 04/09/2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed710_o_poder_da_midia/ (acessado em 09 de julho de 2019).
Habermas, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1984.
Carvalho, Mariana M. “As relações entre Estado, democracia e comunicação pública: o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação”. In: Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política – Compolítica, 2019, Brasília. Anais. Disponível em: http://compolitica.org/novo/artigo/as-relacoes-entre-estado-democracia-e-comunicacao-publica-o-desmonte-da-empresa-brasil-de-comunicacao/ (acesso em 10 de julho de 2019).
Lima, V. “Sobre a cultura do silêncio”. In: Carta Maior, 12/12/2017. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia-e-Redes-Sociais/Sobre-a-cultura-do-silencio-1-/12/38974>. Acessado em 9 de julho de 2019.
Lima, V.; Lopes, C. “Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004): as autorizações de emissoras como moeda de barganha política”. Campinas/São Paulo: Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo/Observatório da Imprensa, 2007, p. 6. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/download/Coronelismo_eletronico_de_novo_tipo.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2015.
Article 19. “Brazil mission statement on the state of freedom of expression”. São Paulo/London, August, 2007. Disponível em: <www.article19.org/data/files/pdfs/publications/brazil-mission-statement.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2016.
Mello, João Manuel Cardoso; Novais, Fernando A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In Schwarcz, Lilian Moritz (org.). História da vida privada no Brasil v. 4. São Paulo: Companhia das Letras. 1998 pp. 559-658.
Miguel, L.F. “A desdemocratização como projeto”. In: Justificando. 1 de novembro de 2017. Disponível em http://www.justificando.com/2017/11/01/desdemocratizacao-como-projeto/. Acesso em 9/07/2011.
[1] A DW, a agência internacional de notícias da Alemanha, chegou a mostrar para o atual ministro brasileiro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, como sistemas públicos de comunicação se distinguem dos governamentais. O ministro usou sua conta pessoal no twitter para criticar um artigo publicado pelo correspondente da agência no Brasil, Philipp Lichterbeck. Um dos argumentos da crítica era justamente o fato de a DW ser uma empresa pública, como se por isso devesse se subordinar às determinações da política externa do governo alemão. A Agência não apenas fez uma nova reportagem sobre a crítica do ministro, como esclareceu que “é financiada com recursos públicos, e seu orçamento é definido pelo Bundestag (Parlamento). Como todas as emissoras públicas alemãs, a DW tem total liberdade editorial e pratica um jornalismo independente”.
[2] A EBC herdou o espólio e o espaço no espectro das antigas TVE do Rio de Janeiro, TVE do Maranhão e TV Nacional de Brasília que deram origem à TV Brasil. Também herdou a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Brasília, Amazônia e Solimões.
[3] Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Rádio Nacional de Brasília (AM e FM), Rádio MEC do Rio de Janeiro (AM e FM), Rádio Nacional da Amazônia, Rádio Nacional do Alto Solimões e Radioagência Nacional.
[4] Os recursos que formam a CFRP são uma pequena parte, apenas 5%, dos recursos pagos pelas empresas de telecomunicações ao Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel).
[5] Informação confirmada pela direção da EBC em 13 de junho de 2019.
[6] Recentemente uma série de reportagem do The Intercept Brasil revelou conversas entre procuradores ligados à força tarefa da Operação Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro em que fica explícita a intenção tanto dos membros do MPF quanto do magistrado de interferir no andamento do processo eleitoral em curso no Brasil. As conversas revelaram também a parcialidade nas acusações e no julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem como uma relação inadequada entre a parte denunciante (o próprio MPF) e o juiz responsável pelo caso. <Disponível em: https://theintercept.com/series/mensagens-lava-jato/. Acesso em: 10 de julho de 2019.>
[7] Norma interna da EBC
[8] Termo cunhado por Luís Felipe Miguel em “Desdemocratização como um projeto”.