Por Renan Augusto Trindade
Com a pandemia, foi necessário ter pessoas que se destacassem pela capacidade de resposta local
Partindo da ideia de que a cooperação é a melhor forma de alcançar soluções impactantes, 5 mestrandos brasileiros graduados em economia e relações internacionais pela Unifesp se inscreveram no Geneva Challenge. “Os desafios da gestão de crises” foi o tema proposto neste ano pela competição internacional realizada desde 2014 pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (IHEID), Suíça. O projeto Motirõ São Paulo: a rede de aprendizagem para resposta a crises representou a América Latina nas finais e ficou em segundo lugar, recebendo um prêmio de 5 mil francos suíços.
O nome “Motirõ”, palavra tupi-guarani que significa união de pessoas para construir algo, explicita como o grupo apostou na resiliência e na compreensão do nível da comunidade como requisitos para impedir que qualquer crise se torne mais ampla e profunda. A iniciativa propõe uma rede para gestão de crises focada no empoderamento de lideranças comunitárias para monitorar, gerir, responder e disseminar informações em nível local. Segundo os autores, a iniciativa é a primeira e única rede online com atuação em São Paulo com foco no aprimoramento dos mecanismos de resposta a crises por meio de uma abordagem bottom-up, que resulta no crescimento de lideranças comunitárias. Ela visa ao desenvolvimento de comunidades com capacidade para identificar as principais lições derivadas da pandemia, e capacitar líderes comunitários em São Paulo para melhor responder às crises emergentes.
Projetos que já saíram do papel
Aprender com projetos desenvolvidos em uma comunidade com alto índice de vulnerabilidade é parte do trabalho realizado há 9 anos pelo professor Carlos Roberto Castro-Silva. Docente da Unifesp, campus Baixada Santista, ele coordena uma pesquisa que deu origem ao artigo “Desigualdades e subjetividade: construção da práxis no contexto da pandemia de covid-19 em território vulnerável” da revista Saúde e Sociedade.
A desigualdade social e a falta de acesso à saúde pública de qualidade são temas presentes no estudo. Para se ter uma ideia, no centro da pesquisa está Cubatão, importante polo industrial que contrasta com um território de alta exclusão, segundo dados do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS). O bairro da cidade que foi analisado está classificado como grupo 6 do índice, o de mais alta vulnerabilidade urbana possível.
Marcados pela exclusão social, os territórios vulneráveis são analisados a partir de uma abordagem que envolve aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e psicológicos. Mais recentemente, a partir do contexto da pandemia, foram investigadas algumas potencialidades e fragilidades das lideranças comunitárias. É o que destaca Hailton Yagiu, autor de um dos trabalhos que compõem o dossiê da revista Saúde e Sociedade. Dentre as potencialidades, foi observada a capacidade de mobilização para atender as demandas sociais do entorno. Já no campo das fragilidades, Hailton destaca o descrédito da população na política, o que impacta no baixo envolvimento das pessoas, apesar do empenho dos líderes locais.
“Analisando pelo aspecto psicossocial, essas pessoas vivem em um estado de alerta constante”, afirma o professor Carlos, citando como a violência está presente nas comunidades. “A pandemia evidenciou mais essas contradições”, complementa. Para ele, a importância da psicologia e da intersubjetividade nesses estudos está na valorização da convivência entre as pessoas no cotidiano como espaço favorável de crítica e de transformações sociais.
A presença do Estado nesses espaços não vai muito além da unidade básica de saúde, segundo os pesquisadores. Isso dá margem ao voluntarismo, mas por outro lado também à precarização. “Para a população mais carente, o novo normal é fome, desemprego, falta de álcool em gel, falta de máscara e ter que trabalhar todo dia. Home office é segregação. Só fazem home office os privilegiados; quem é pobre trabalhou a pandemia inteira, tomando metrô, ônibus. É uma tragédia o novo normal para eles”, resume Hailton.
Carlos cita em seu trabalho a pesquisadora brasileira Bader Sawaia e o conceito de “conatus” proposto pelo filósofo Baruch Espinosa, resumido na ideia da perseverança na existência. Nessa perspectiva, os afetos alegres possibilitam a transformação, seja ela individual ou coletiva. “A solidariedade, aliada à tecnologia, criou muitas redes de doação e de suporte, seja na saúde, na parte financeira e até contra a violência doméstica”, afirma o pesquisador. “Acho que o novo normal não cabe para essa realidade. Ele só acirra e mostra a importância da mobilização social e a legitimidade dessas lideranças. O que o Estado não faz e muitas outras instâncias e atores sociais também não, é estar junto dessas pessoas. Mesmo as universidades têm uma participação muito pequena nestes espaços”, pondera.
Há diversos projetos de extensão voltados para as comunidades vulneráveis (veja um exemplo aqui). “Esse papel das universidades públicas precisa ser destacado mas, junto com o novo normal, a luta continua. A principal diferença dos movimentos sociais daqui da América Latina para outras regiões é que aqui não se tem respaldo, não há um repertório de direitos sociais e humanos consolidado”, afirma o docente da Unifesp.
O papel dos projetos sociais
Para o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Marcos Kisil, a premissa fundamental nas decisões de caráter governamental e não-governamental deveria ser a do bem comum. “O bem comum pode se aplicar em situações de crise, como a da pandemia”, resume. Ele explica que, além das políticas públicas, é necessário dar valor às políticas de sociedade. “Um povo, por meio do desenvolvimento de sua cultura, cria formas de comportamento que não precisam estar escritas em lei. Isso representa a forma como a sociedade contribui para um processo de crescimento e desenvolvimento em que ela também é artífice da construção dela mesma”, define Kisil.
Na crise trazida pela pandemia, seja pelo lado do governo, seja pelo lado da sociedade, é necessário ter pessoas que se destaquem pela sua capacidade de resposta, e daí é que surgem os líderes, na visão de Marcos Kisil, que também é um dos autores do livro Desenvolvimento de lideranças comunitárias: reflexões e sugestões. “Logo de saída na nossa crise, nós praticamente anulamos a capacidade dos líderes públicos. No momento em que você teve um governo que desautorizou o seu ministro da saúde, o entendimento científico do problema e as práticas que vinham dos profissionais, percebeu-se que do lado do governo as coisas não iriam andar. Por isso a sociedade civil teve de assumir esse papel de liderança”, explica Kisil. Enquanto as doações por parte da sociedade civil aumentavam, o governo sequer conseguia fornecer máscara e outros equipamentos de proteção individual para quem trabalhava nos hospitais.
Investimentos da iniciativa privada, como o Todos pela saúde, exemplificam a importância do incentivo à pesquisa. “Nós temos ideologicamente uma visão estreita de que se uma universidade é pública o dinheiro precisa vir do governo, quando na verdade o que ela faz é capitalizar uma sociedade”, opina o professor. Outro exemplo foi o da Central Única das Favelas, a Cufa, em que líderes comunitários começaram a se organizar para fornecer comida para a população num dos períodos mais tristes da pandemia. Kisil lamenta ter visto pouco aproveitamento por parte do poder público dessas iniciativas na esfera federal. “Surgiram lideranças importantes que fizeram a diferença e podem ter salvado muitas vidas, que além de impactados pela doença, tiveram dificuldades econômicas decorrentes dela”, diz.
Segundo um estudo recente publicado pelo IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), após um forte aporte de doações no período de abril a agosto de 2020, a partir de setembro daquele ano e no decorrer de 2021 caíram tanto o número de doadores quanto os valores doados a trabalhos sociais. Por isso, o professor Marcos vê com certo ceticismo o termo “novo normal” nesse contexto. “Esse é um indicador de que nós não estamos carregando muito, enquanto sociedade, esse valor da fraternidade, solidariedade e outros elementos que fazem com que a gente se preocupe com o próximo”, analisa o pesquisador. “Eu tenho a impressão de que no ‘novo normal’ nós precisaremos ter lideranças institucionais que insuflem isso, seja na indústria, no comércio, na universidade, na igreja ou em qualquer outro lugar onde existirem instituições sólidas para pressionar cada vez mais, a um nível de governo, para que essas iniciativas existam”, diz.
Renan Augusto Trindade é formado em física (USP) e aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.