Por Antônio Carlos Will Ludwig
A entrada de Bolsonaro na corrida presidencial provocou agitação no interior da caserna. Sob a liderança do partido verde oliva sua campanha correu solta nos quartéis. Após sua vitória e no decorrer de seu mandato milhares de fardados assumiram cargos na administração federal e a corporação como um todo recebeu dele afagos e benefícios. E tendo em mira permanecer no governo articulou uma tentativa de golpe de Estado para impedir a posse de seu oponente contando com a ajuda de colegas da reserva e de um segmento da ativa, a qual, felizmente, não conseguiu ir adiante por causa da incompetência que demonstraram. No momento se encontram na mira do Poder Judiciário onde serão julgados e penalizados pelos crimes cometidos.
Por causa desses acontecimentos apareceram diversas propostas destinadas ao controle e comedimento da conduta militar. Regras austeras foram apresentadas para dificultar a ocupação de funções na área pública e para a efetivação de candidaturas. Emergiu também a pretensão de realizar mudanças no artigo 142 da Constituição Federal que trata da finalidade das Forças Armadas uma vez que a suposição vigente é de que ele dá margem para a ingerência castrense na política. Outrossim, aconteceram manifestações oriundas de vários setores voltadas ao intrometimento nos processos formativos dos aquartelados.
Um insigne jornalista de canal quantioso da televisão expôs a ideia de que os currículos de formação da oficialidade têm que ser reexaminados. Três doutorandos da área de Ciências Sociais escreveram um abalizado artigo onde propuseram a inclusão de conceitos e temas fundamentais da democracia no ensino das academias. Um pesquisador de Universidade Federal propôs a reformatação da grade curricular porque, segundo ele, a mesma continua refletindo as especificidades da guerra fria. Uma deputada federal do Partido dos Trabalhadores apresentou um projeto de lei que estabelece a transferência das escolas e academias do Ministério da Defesa para o Ministério da Educação visando proporcionar aos processos formativos uma base pedagógica civil. Um ex-ministro disse que a herança da ditadura tem que ser combatida com reforma profunda no ensino castrense. Também emergiram defesas tal como a de um historiador que, em uma entrevista afirmou que assim como a formação de um médico cabe ao médico, a formação militar cabe ao militar, e a de um integrante do Clube Militar o qual asseverou que determinadas alterações podem conduzir à perda do profissionalismo e à politização dos alunos.
Embora os argumentos expostos sejam importantes eles se mostram mais como opiniões desvinculadas de referenciais teóricos apropriados, além de carentes de análises mais extensas e profundas. Para se fazer uma relação adequada entre a formação dos fardados e a ingerência deles na política por meio de golpes e também por outros atos como o exercício do poder moderador e os comportamentos revoltosos se faz necessário revisitar as teorias da intervenção e as teorias da educação para tentar descobrir o modo pelo qual ocorre essa ligação.
As diversas teorias explicadoras dos golpes se dividem em dois grupos. Um deles agrega aquelas que enfatizam os fatores internos das instituições bélicas e o outro reúne aquelas que sublinham os fatores externos a elas. Todas pressupõem a existência de uma elevada autonomia dos militares e a inserção deles num ambiente bastante politizado. O exame de algumas delas é suficiente para o intento em questão. Assim sendo, no primeiro grupo pode ser mencionada a da defesa do Estado realizada pelos militares que o enxergam como uma entidade neutra e independente e um árbitro entre os setores participantes da sociedade, para liberá-lo dos segmentos sociais limitadores de sua autarcia e refreadores de seu funcionamento. Entretanto, esse Estado se encontra a serviço de um status quo, da manutenção das relações de dominação, da exclusão social e política. Pode ser citada também a da construção de potência cujo significado é dotar o país dos elementos necessários para que seja considerado uma nação importante, soberana, capaz de exercer influências no contexto internacional. Para tanto, é imprescindível o exercício da liberdade dos aquartelados para garantir, através de práticas autoritárias, a disciplina social, a ordem pública, a estabilidade política e a inanição das forças de esquerda.
No segundo grupo cabe citar a da força do capital internacional intimamente ligada à instauração do Estado burocrático autoritário que é implantado devido principalmente à existência de uma atividade política intensa por parte dos conjuntos desfavorecidos. Os segmentos privilegiados acreditam que essa movimentação pode constituir uma séria ameaça à estabilidade social e à situação econômica vigente. Então os grupos imperantes passam a agir para sufocar o movimento das massas por meio de expedientes repressivos, visando desativar e domesticar os setores populares. Tal Estado, ao ser implantado passa a instituir um programa de reorganização da economia com o apoio do capital internacional. Vale mencionar ainda a da fragilidade da dominação burguesa. Ela revela a manifesta fraqueza da burguesia nacional em conseguir assegurar a manutenção da ordem interna na fase de transição efetiva da democracia restrita, isto é a representativa, para a democracia de participação ampliada. Em qualquer país capitalista, principalmente nos menos desenvolvidos, seu asseguramento conta com o emprego do elemento autoritário, haja vista a predominância das desigualdades econômicas, culturais e sociais provocadoras de movimentações e agitações continuadas.
Apesar de serem teorias singulares e díspares entre si, todas convergem para um mesmo ponto, qual seja, os militares golpistas sempre se encontram ao lado dos setores dominantes da sociedade e afastados dos setores populares, isto é, aqueles que não detêm o poder e a influência suficientes para interferir nas decisões sociais, políticas e econômicas, pois enfrentam desigualdades em termos de acesso a recursos, oportunidades e direitos tais como minorias, classes sociais mais baixas e trabalhadores de diversas áreas, inclusive aqueles dotados de baixo poder de negociação. Além de não receberem benefícios resultantes da ação golpista costumam ser contidos por meio de ameaças e repressão.
Com efeito, o período ditatorial que durou mais de vinte anos promoveu a liberalização da economia, favoreceu os interesses das grandes empresas nacionais e do agronegócio, incentivou a industrialização e abriu o mercado para a entrada de investimentos estrangeiros. Incentivos fiscais e subsídios foram outorgados às empresas internacionais, sendo que muitas delas firmaram parcerias com o governo para a execução de estradas, usinas e outras obras impulsionadoras do desenvolvimento. Proporcionou uma certa estabilidade política e social por meio da violação de prerrogativas, limitação dos direitos trabalhistas, ação da censura e repressão a movimentos sindicais, porém vista pelo pessoal do mercado como um ambiente favorável para a realização de negócios. É importante acrescentar que os donos do capital se dão muito bem com os regimes autoritários, convivem harmoniosamente com os governos iliberais, suportam a democracia representativa e distanciam-se da democracia participativa, pois ela coloca pressões abaladoras do sistema capitalista, oriunda das classes populares, clamorosas por justiça social e benefícios econômicos. Toleram a representativa porque ela funciona como uma espécie de anteparo aos ímpetos reivindicatórios advindos da população.
Importa observar que esse posicionamento ao lado dos dominantes não é específico do Brasil, ao contrário, é universal, pois aconteceu em vários recantos do mundo. No Chile, em 1973, ocorreu uma reforma econômica que favoreceu as elites e reduziu os direitos trabalhistas. Na Argentina, em 1976, houve o implemento de políticas econômicas beneficiadoras das classes altas e a prática da alcunhada guerra suja contra os dissidentes. No Uruguai, também em 1973, foi adotada uma política beneficiadora dos privilegiados ao lado da repressão aos grupos dissidentes. Na Guatemala, em 1954, aconteceu o desmonte da reforma agrária e o restauro dos privilégios dos antigos latifundiários. A única exceção conhecida ocorreu no Peru durante o governo do general Alvarado nas décadas de sessenta e setenta do século passado. No decorrer do tempo que permaneceu no cargo presidencial ele expropriou as companhias petroleiras estadunidenses, instituiu o chamado dia da dignidade nacional, implementou a reforma agrária, instituiu um programa destinado a aumentar a taxa de alfabetização, especialmente na zona rural e iniciou um movimento para abolir a servidão dos povos indígenas e melhorar suas condições de vida.
No Brasil essa aproximação começou em 1930 quando aderiram à revolução burguesa. A partir dessa data, no governo de Vargas, iniciou-se a política de industrialização. com a produção interna de bens antes importados e a criação de indústrias de base. Os fardados deram total apoio a ele porque tal inciativa reduziria a vulnerabilidade econômica do país e fortaleceria a soberania nacional. Durante o governo de Juscelino, na década de cinquenta, foi criado um plano de metas destinado a impulsionar a industrialização e a área de infraestrutura. De novo os aquarelados deram guarida ao plano porquanto estavam interessados em fortalecer as bases estratégicas do país, principalmente estradas e hidrelétricas bem como almejavam que os interesses da defesa e da segurança nacional fossem contemplados. No decorrer dos vinte anos de ditadura adotaram uma política desenvolvimentista para fortalecer o processo de industrialização, especialmente nos setores de energia, transporte e infraestrutura e com o incentivo da entrada de capital estrangeiro e instalação de empresas multinacionais. Na atualidade a política de defesa se encontra pautada por uma concepção de fortalecimento das Forças Armadas com ênfase na produção nacional de veículos de combate, sendo que muitos militares da reserva assumiram posições de destaque nas empresas do setor bélico.
É preciso deixar claro que essa afluência em direção à poderosa burguesia industrial de outrora, se mostra menos relevante na atualidade, tendo em vista a aplicação de golpes, devido à perda da posição de liderança para a burguesia financeira que a qualquer momento pode retirar os ativos financeiros aplicados e enviá-los para outros países isentos de crises sociais e políticas. Ao seu lado predomina também o crescente setor de serviços. Além disso, o elevado grupo de operários do passado se contraiu bastante por causa da automação, seus sindicatos enfraqueceram muito e sua facção agitadora, outrora objeto de repressão, caminha rumo ao desaparecimento. O empreendedorismo cresce rapidamente e os profissionais movidos por aplicativos aumentam a cada dia que passa.
Quanto às teorias da educação, as quais têm como objeto de estudo a relação entre o fenômeno educativo e a organização da sociedade, sabe-se que são diversas e dotadas de características próprias. A mais antiga delas é a funcionalista e se assenta no pressuposto de que cada indivíduo possui aptidões específicas e distintas dos demais. Assim sendo, qualquer pessoa deve ser preparada para determinada profissão dentre as inúmeras existentes tendo em mira a manutenção do bom funcionamento da vida em sociedade. As condutas indesejáveis e ameaçadoras devem ser refreadas ou eliminadas pelos profissionais utilizadores da violência legal com vistas a assegurar a permanência do desejado equilíbrio social. Vê-se então que é uma teoria claramente inclinada para o lado do conservadorismo, portanto vantajosa aos setores privilegiados que apreciam muito a contínua permanência da estabilidade favorecedora do auferimento de benefícios.
A teoria fenomenológica tem por base a concepção de que a sociedade se encontra voltada à sua perpetuação, a qual só pode ser alcançada por meio da cultura produzida pelos seres humanos no decorrer do processo histórico. Consequentemente, a transmissão da cultura acumulada constitui a finalidade das instituições escolares. Entretanto, essa cultura a ser aprendida se encontra fortemente impregnada de conteúdos que são próprios das classes dominantes as quais têm por meta serem hegemônicas no âmbito social. Essa ocorrência tem que ser recusada por ser incompatível com a existência humana e com o regime democrático.
Segundo a teoria da reprodução toda formação social, ao mesmo tempo que produz, tem que reproduzir as condições de produção, pois caso contrário tenderá ao desaparecimento. Logo, ela tem que reproduzir os meios de produção e a força de trabalho, a qual deve ser devidamente qualificada através do sistema escolar para atender às exigências do diversificado mercado ocupacional. A escola é vista então como uma instituição destinada a preparar os indivíduos de acordo com os papéis que devem desempenhar na sociedade, quais sejam, de explorado, de promotor da exploração e de agente da repressão. Portanto ela denuncia a finalidade oculta dos estabelecimentos escolares que é de moldar a subjetividade e o modo de proceder das pessoas para atender aos interesses dos setores dominantes da sociedade.
De acordo com a teoria crítica, os adeptos da concepção reprodutora não conseguem perceber que em todos os setores da vida em sociedade, inclusive nas instituições escolares, existem contradições, disfunções e tensões favoráveis à manifestação de atos de resistência provocadores do pensamento reflexivo e questionador, bem como de lutas políticas coletivas relacionadas ao exercício do poder e da determinação social. Portanto, sem negar os benefícios conferidos pela educação aos grupos hegemônicos, ela admite também a possibilidade de atendimento a interesses dos segmentos subalternos e até a factível superação do servilismo aos dominantes. Exemplo ilustrativo materializador dessa teoria foi o acontecimento recente em torno da reforma do ensino médio, isto é, as reações contrárias de alunos e professores, as quais obrigaram o governo a fazer alterações pontuais, observando que ela foi fortemente influenciada por institutos e fundações pertencentes à iniciativa privada.
Note-se então que apesar de se apresentarem como teorias ímpares, compostas de aspectos diferenciadores, as quatro exibem uma só tendência, qual seja, o atendimento aos setores dominantes da sociedade. E nesse ponto elas coincidem com as teorias elucidadoras dos golpes aplicados pelos militares que também se inclinam ao favorecimento desses setores. Considerando a robusta sintonia entre os dois referenciais torna-se obrigatório examinar a formação dos militares, particularmente do corpo de oficiais, pois são eles os responsáveis pelos destinos das Forças armadas, identificando os fatores que contribuem para aproximá-los ao conjunto social dos prevalentes e os elementos que favorecem a predisposição para aplicar golpes. Exponha-se que a formação militar acontece por meio do currículo real, isto é, aquilo que os alunos factualmente aprendem da totalidade planejada, do currículo oculto, ou seja, as aprendizagens que ocorrem sem estarem previstas, e do processo de socialização que é a aquisição por parte do aprendiz dos traços comportamentais e culturais do grupo social em que se encontra inserido.
Este exame pondera que o principal interesse dos setores dominantes em relação às Forças Armadas é com sua função de manter a estabilidade social. Entende-se aqui que ela diz respeito a um transitório estado de equilíbrio devido a presença de baixos níveis de tensões, descontentamentos e conflitos entre grupos, os quais são resolvidos por meio de diversos mecanismos tais como a negociação, a mediação e a judicialização. Dentre outros fatores, este estado depende da redução das desigualdades, da participação dos cidadãos nas decisões políticas, da proteção contra a violência e a criminalidade, do respeito à diversidade e da satisfação das necessidades básicas da população. Observe-se que essa função estabilizadora também é almejada pela comunidade internacional haja vista o papel de garantir a paz exercido pelas forças multinacionais da Organização das Nações Unidas.
Parece óbvio que esta circunstância de equilíbrio evidencia que os segmentos dirigentes se encontram praticando predominantemente a hegemonia, ou seja, a busca de aceitação e reconhecimento consequentes da construção de consensos e criação de uma percepção de legitimidade, o exercício de uma forma de liderança ou influência que é aceita no meio social, o ato de moldar as normas, valores e práticas de outrem, de maneira que acolham e legitimem essa liderança. O outro modo de dirigir se refere à dominação que é o frequente controle e a autoridade exercida sobre os demais por meio de ações físicas, políticas, econômicas ou sociais, o qual pode manifestar-se através da opressão, da coerção e da submissão. No caso brasileiro, e também em outros fora daqui, trata-se do reiterado exercício da dominação, porquanto o transcurso da história revela que os agrupamentos imperantes nunca foram capazes de consumar a hegemonia embora tenham flertado com ela. E o frequente uso da dominação não deixa de lado o recurso militar, haja vista que a magnitude do conflito e o desiquilíbrio social são tão elevados que recorrem aos funcionários de uniforme para controlarem a situação.
Tanto os civis apelantes quanto os fardados atuantes não se afligem e nem se condenam porque a consideram uma reação legal, tendo em conta que se encontra escrito no artigo 142 da Constituição Federal que cabe às Forças Armadas a tarefa de garantir a lei e a ordem. São dizeres genéricos e abstratos, não esclarecidos, que expressam a ideologia dominante e sua pretensão generalizadora de que tal garantia visa beneficiar a todos, pois o descumprimento de leis e as ações anárquicas se mostram prejudiciais a qualquer cidadão. Permite o emprego dos fardados em diversas situações, até naquelas em que pareça estar sendo violada a própria lei, tais como em golpes e no exercício do poder moderador. Frequentemente incluída em documentos e discursos militares, bem como usada como lema e brado de convocação, serve para colocar as tropas em prontidão e movimento. Diga-se de passagem, que a intenção da corja golpista era de fazer Lula editar uma GLO para garantir a atuação dos militares na Praça dos Três Poderes e utilizá-los no seu impedimento.
E toda formação dos cadetes nas Academias é balizada por este artigo, o qual é introjetado no psiquismo deles de modo doutrinário. Exposto como algo místico e simbólico, ele não passa para o nível da consciência crítica, não é colocado como objeto para exame, não é tematizado e nem apresentado como tópico de questionamento. Bastante longevo, sua manutenção na atual Carta Magna foi uma aguerrida exigência dos aquartelados. E até hoje nenhum governante se empenhou em eliminá-lo, o Parlamento nunca apreciou uma proposta de substituição e os ministros do STF nas sessões relacionadas ao seu exame não recomendaram o seu banimento, uma decisão urgente e imprescindível porquanto constitui uma grave ameaça à democracia. Tais condutas servem para comprovar que os prevalentes continuam interessados na sua continuidade, mesmo porque num país integrado por elites predadoras, políticos insensíveis, profundamente desigual e injusto e dotado de um capitalismo bestial, mesmo com a predominância do financeiro sobre o industrial, o grupo dos fardados ainda se apresenta como um recurso de última instância.
O processo seletivo para entrar nas Academias é bastante difícil e inclui provas de conhecimentos, teste físico, inspeção de saúde e exame psicológico. Os jovens pertencentes a famílias de baixa renda se deparam com inúmeras adversidades para nelas se internarem. Têm bem menos acesso a materiais de estudo e adequada orientação profissional, dificilmente conseguem frequentar escolas oferecedoras de educação de qualidade, na maioria das vezes se alimentam de maneira inadequada, poucos conseguem apoio familiar para questões de saúde mental, grande parte deles precisa trabalhar para ajudar suas famílias e tendem a se mostrar inseguros quanto às suas capacidades, consequentemente poucos deles conseguem aprovação. Uma boa parte das vagas é preenchida por filhos de militares pois se encontram mais expostos ao ambiente dos quartéis, estão bastante familiarizados com os valores e a cultura das Forças Armadas e recebem a orientação necessária para realizar os exames. A maior parte delas é ocupada por jovens oriundos da classe média da sociedade junto a um escasso número pertencente aos extratos mais elevados, posto que não se defrontam com as adversidades dos mais pobres.
Devido a origem social esse grupo majoritário tende a inclinar-se para o lado dos grupos prevalentes da sociedade porque alguns valores que trazem consigo e cultivados na caserna são semelhantes aos desses grupos. Podem ser mencionados o status e o prestígio decorrentes da ocupação de posições sociais elevadas e do reconhecimento público; o individualismo, ou a ênfase nas conquistas e sucessos individuais; a meritocracia resultante da crença de que os triunfos pessoais são resultados dos próprios esforços; o conservadorismo ou a preservação de tradições e a exclusividade, ou seja, a nobilitação do pertencimento a grupos fechados.
A preservação de tradições envolve as repetidas e longevas alianças entre os fardados e os civis prevalentes nos momentos da aplicação de golpes. Cite-se como exemplo as reprisadas e abusivas comemorações anuais do trinta e um de março assimiladas pelos cadetes como um movimento revolucionário favorável ao país e não um golpe de Estado. Aliás, por várias décadas uma elevada quantidade de cadetes incorporou a execrável e antidemocrática ideia de que a intervenção castrense na política faz parte das tarefas a serem executadas pelos fardados. Mencione-se também as reiteradas evocações de personagens do passado cujo exemplos são Lima e Silva, Deodoro e Peixoto, alcunhados de soldados salvadores, isto é, agentes socorristas em momentos de crise política, que, de modo semelhante ajudam a inculcar a mesma ideia. Urge impedir que esse conto romântico continue a fazer parte do repertório subjetivo dos servidores de uniforme. E para conseguir a auspiciosa entrada nas Academias de um elevado número de jovens das classes populares, porquanto atualmente ele é pequeno, se faz necessária a implementação de algumas medidas, tais como o estabelecimento de uma reserva de cotas, a instauração de um programa de apoio destinado a recrutá-los e o oferecimento de cursos preparatórios gratuitos e se necessário subsidiados, ministrado por professores civis e militares. Vale expor que Academias Militares de diversos países, tais como dos Estados Unidos, da Índia, das Filipinas, da Colômbia e da África do Sul concretizam propostas de assistência a candidatos de baixa renda.
Após serem aprovados nos exames os neófitos passam pelo estágio de adaptação, cuja finalidade principal é concretizar a despersonalização. Diga-se que não se trata do fenômeno classificado pela Psicologia como um transtorno que se manifesta na forma de um persistente distanciamento do próprio corpo ou de processos mentais. Preferencialmente destinado aos alunos civis, ele diz respeito a um processo de despojamento ou de alteração profunda da personalidade que se encontra relativamente formada, a máxima remoção possível dos traços da identidade pessoal paisana para desenvolver uma identidade pessoal militar.
Nesse período eles se submetem aos princípios básicos da caserna que são a hierarquia e a disciplina; enfrentam os exigentes desafios dos treinamentos físicos; cumprem horários rigorosos; aprendem a ordem unida, a marcha, as saudações, o uso de uniformes; desenvolvem o senso de missão e de camaradagem e seguem o código de honra composto pelo culto à verdade, lealdade, probidade, responsabilidade, coragem, dever e pátria. Praticam regras de etiqueta, cumprem normas de conduta social, começam a dedicar esforço e esmero no adestramento da língua culta que continuará em todo o curso, ao mesmo tempo que expressam descaso e antipatia pela língua coloquial, observando que esses aprendizados servem para aproximá-los dos setores dominantes da sociedade. Tal lapso tem um peso significativo no delineamento de um novo personagem, pois como momento inicial ele é capaz de fixar os traços fundamentais do caráter militar, o qual será bastante reforçado no decorrer dos anos de formação.
Cabe frisar que esse preparo ocorre em uma organização qualificada como instituição total. Assim sendo ela facilita e torna mais eficiente o processo de despersonalização. De fato, suas peculiaridades apontam nessa direção. É um local separado da sociedade mais ampla; em seu interior uma grande quantidade de pessoas com situação semelhante leva uma vida fechada por um longo período de tempo; a autonomia pessoal é suprimida; as atividades diárias ocorrem em conjunto; todos realizam as mesmas tarefas e são tratados de forma idêntica; todas as atividades são antecipadamente programadas e devidamente encadeadas; o elogio, a vigilância e a punição são os recursos utilizados para o controle da conduta.
A fixação da nova personalidade estabelece, de imediato, a distinção entre o militar e o civil segundo o princípio de identidade da lógica formal, qual seja, uma coisa não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo, portanto militar é militar e civil é civil. Durante toda a vida profissional, até a passagem para a reserva tal cisão ficará cada vez mais nítida e fortalecida. Essa aparente e irreconciliável separação é de fundamental importância na aplicação de golpes, pois foi sempre pelo protagonismo de um grupo de fardados, geralmente com o apoio de civis, que eles aconteceram sobre governantes civis, e o mesmo pode ser dito em relação ao uso do poder moderador e a manifestação das ações revoltosas. Ela também facilita a emergência de uma relação de desconfiança entre ambos os lados, pois os militares duvidam da capacidade de governar dos paisanos e estes suspeitam da jura dos militares de respeitarem o regime democrático.
Apenas para ilustrar seguem algumas expressões da gíria castrense que mostram essa clara divisão. Civilizados: pessoas que não estão acostumadas ao rigor e a disciplina militar. Civisão: a maneira descontraída do meio civil em contraste com os sérios desafios do meio militar. Trocar de Lado: indica o afastamento de um fardado e sua reinclusão no mundo paisano. Vida de Civis: refere-se à ideia de que a vida civil é menos disciplinada e mais caótica comparada à vida militar. Civis de Farda: indivíduos não pertencentes às Forças Armadas que exibem comportamentos próprios da caserna. Lá Fora: refere-se ao mundo externo à bases militares.
Essa incompatibilidade precisa ser superada. Para tanto, é necessário mudar a forma de raciocínio e adotar o princípio da contradição da lógica dialética, o qual afirma que uma coisa pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo. A solução utilizada pelos europeus é bastante ilustrativa pois eles criaram a figura do cidadão de uniforme, isto é, o profissional que apresenta simultaneamente a característica militar relativa ao emprego da violência legal e a característica civil porquanto vale para ele todas as obrigações e prerrogativas contidas na Carta Social Europeia. Ao contrário, os militares brasileiros possuem legislações específicas relativas à educação, ao trabalho e à previdência que reafirmam e tornam nítidas as diferenças com os paisanos. Se o exemplo europeu fosse adotado aqui, essa singularização caminharia a passos largos rumo ao desaparecimento.
Também contribuiria muito a abertura de cursos para civis junto ao de formação de oficiais. Exemplo esclarecedor ocorre no Canadá. Apesar de que são cadetes a maioria dos alunos do Royal Military College, alunos civis também são admitidos sem nenhum compromisso militar. Participam dos mesmos programas acadêmicos, frequentam as mesmas aulas e muitos moram no campus. Podem optar por um dos quatro cursos de graduação, quais sejam, engenharia, ciências sociais e humanas, ciências aplicadas e ciências militares.
Ademais, essa ruptura expõe outros elementos no agrupamento dos aquartelados. Já foi anteriormente mencionada a influência da veneração aos soldados salvadores e à comemoração do trinta e um de março. Além delas, por determinação legal os cadetes introjetam a concepção vigente de que são os profissionais encarregados da proteção do Estado, a qual pode ser feita de várias maneiras, inclusive com o emprego de expedientes mais enérgicos e traumáticos tais como um golpe e uma ditadura, expressões usadas pelos civis e não integradas no vocabulário militar, porquanto afetados pelo pragmatismo que rege a profissão, costumam asseverar que as ações a serem concretizadas dependem da conjuntura, do contexto, das características do momento histórico, que cumprem a determinação constitucional de garantir a lei e a ordem e que fazem a defesa da democracia. Por extensão e por íntima ligação essa proteção possibilita o exercício da tutela sobre a sociedade, ou o amparo aos cidadãos frente aos perigos percebidos, mesmo que para tanto seja preciso sacrificar direitos democráticos e liberdades individuais. Então, ao mesmo tempo que acolhem a função legalmente estabelecida, passam a hospedar o agregado papel de defensores da coletividade.
Nesse ponto aparece um elemento complicador que é o entendimento que adotam em relação à sociedade. Por viverem num espaço fechado e afastado do mundo civil, cumprirem uma rotina diária praticamente invariável, executarem tarefas apropriadas aos níveis hierárquicos, se comportarem de maneira disciplinada e saberem de antemão como sua carreira prosseguirá, desenvolvem e interiorizam uma concepção funcionalista de sociedade, a qual se mostra como um todo onde as partes encontram-se conectadas entre si contribuindo para a manutenção de seu equilíbrio. As dissonâncias emergentes devem ser minimizadas ou exterminadas. Percebe-se então que a preservação de sua estabilidade pela supressão de elementos causadores de desordens revela uma compreensão essencialmente conservadora, afastada das mudanças propiciadas pelos movimentos coletivos manifestados na democracia. No entanto, é essa a forma de sociedade que admitem ser a mais adequada, que almejam para os civis e que pretendem tutelar.
Os variados modos de proteger o Estado defendidos por eles mostram a presença de outro elemento, isto é, a elevadíssima autonomia que desfrutam como profissionais, o que lhes permitem empregar qualquer meio que considerarem conveniente. Os cadetes começam a incorporar essa prerrogativa, que será fortificada no decorrer do tempo, durante os anos de formação porque percebem claramente que ela está presente nas Academias, haja vista que seus superiores hierárquicos possuem total liberdade para estabelecer e modificar os processos formativos a qualquer momento e do jeito que acharem mais adequado, sem interferência de órgãos da sociedade pertinentes a autorização, supervisão e elaboração de relatórios.
A autonomia dos fardados na educação, bem como em outras áreas, precisa ser contida para evitar o começo do processo de incorporação dela no rol comportamental dos cadetes. Novamente aprece o caso europeu. Verifica-se que na Comunidade Europeia o ensino superior dos países que a integram é regido pelo Processo de Bolonha, Estratégia de Lisboa e Estratégia Europa que tem por objetivo principal facilitar o intercâmbio de graduados. Enquanto modalidade do ensino superior a formação militar também é obrigada a seguir as orientações previstas, e os órgãos civis e centrais da educação de cada país têm a obrigação de monitorar as instituições educativas castrenses quanto ao cumprimento delas. Nada impede que a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação venha a assumir o papel de supervisionar a parte extra ao treinamento militar nas academias como forma de depauperar essa excelsa emancipação, mesmo porque desde há muito tempo ela reconhece que o bacharelado em ciências militares se equipara às graduações oferecidas pelas universidades.
Existem outras maneiras de impedir a prosperidade da autonomia via aumento significativo da dependência deles aos civis tais como as propostas que se seguem. Ministério da Defesa chefiado apenas por civil. Promoção ao posto de general somente com a aprovação do Senado Federal conforme acontece nos Estados Unidos. Justiça Militar nas mãos dos paisanos de acordo com o que ocorre na Holanda, onde se encontram estabelecidas câmaras militares em tribunais comuns com juízes civis especializados em Forças Armadas ao lado da presença de um colega fardado. Representante do Congresso nos estabelecimentos castrenses congruente ao exemplo alemão que tem um comissário parlamentar encarregado de verificar o cumprimento de direitos, receber queixas de qualquer uniformizado independentemente da cadeia de comando, colher informações alternativas por meio de instrumentos apropriados e averiguar se o conceito do soldado cidadão está sendo respeitado. Criação e filiação a sindicatos consoante a muitos países europeus, os quais se encarregam de fazer acordos salariais, negociar melhorias nas condições de trabalho e concretizar diligências relativas à carreira. Ajuda muito também a proposta do ministro Lewandowski de incluir comandantes militares em processos de impeachment.
Incrementa a conduta autônoma o sentimento de que são superiores aos civis, devido as qualificações que possuem. Esse longevo e tradicional afeto começou a ser formado durante o período imperial na Real Academia Militar com a obtenção dos títulos de bacharel e doutor em uma época onde nem existia o ensino universitário. Consolidou-se na segunda década do século vinte por meio das reorganizações modernizadoras patrocinadas pela Alemanha e França. Foi reforçado através do Acordo de Cooperação em Defesa com os Estados Unidos nos anos cinquenta, o qual levou fardados para participar de programas de capacitação no War College e West Point. Encontra-se devidamente conservado pelo préstimo da concepção que fazem de si como indivíduos dotados de vigor físico, de resistência psicológica, de disciplina, de capacidade de organização, do conhecimento da realidade nacional por causa do frequente trânsito pelas diversas regiões do país, dos estudos e trabalhos realizados no exterior, da ostentação de títulos de pós-graduação obtidos em instituições castrenses e do seguimento de um código de honra. Tal sentimento transita para a subjetividade dos cadetes não só porque o identificam em seus superiores hierárquicos que costumam exteriorizá-los, mas também pelo reforço advindo do curso que realizam, visto que, frequentam aulas nos dois períodos do dia, à noite são obrigados a estudar, aprendem idiomas estrangeiros, praticam atividades físicas exaustivas e apresentam desempenho elevado devido as pressões recebidas.
As Academias Militares bem como as demais organizações bélicas praticam um estilo de administração de cunho linear, centralizador, não consoante ao envolvimento dos subordinados no processo decisório, embora não o impeça. Ela se mostra como uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima. Cada setor possui autonomia, autoridade e responsabilidades bem definidas e se encontra sujeito ao nível imediatamente superior. Apesar dessas características algumas reações advindas dos escalões subalternos costumam se manifestar. Em situações de desastres naturais os comandantes de unidades tendem a tomar decisões baseadas em suas experiências e conhecimentos locais. Nos programas de treinamento costumam ocorrer discussões e troca de ideias. Avaliações e sugestões anônimas sobre melhoria do ambiente de trabalho ocorrem frequentemente. Em grupos específicos de trabalho compostos por fardados de diferentes níveis hierárquicos acontecem debates e troca de informações.
Embora tais condutas se revelem importantes para a instituição e seus autores sejam bem vistos o jeito de administrar permanece do mesmo modo. Não é preciso fazer qualquer esforço intelectual para perceber que esse estilo administrativo é semelhante ao concretizado no âmbito do Estado por governos autoritários e ditatoriais, inclusive naquele que sofreu um golpe oriundo de aquartelados. Portanto, é uma maneira de gerenciar dissonante do regime democrático e que não contribui para sua perenidade e fortalecimento. E os cadetes não só passam seus anos de estudo nele imersos como aprendem que o mesmo é o mais adequado para as Forças Armadas, além praticá-lo mais à frente. Esse estilo administrativo deveria ser substituído pela gestão democrática que diz respeito à participação conjunta de todos os membros de uma organização no processo decisório. Ela não só é totalmente harmônica ao regime democrático como contribui para sua manutenção e vigor. A inserção do cadete em uma Academia administrada dessa forma e seu exercício futuro já como oficial, favorecem sobremaneira a inclinação para o lado da democracia.
Observe-se que em países de democracia consolidada a gestão democrática está presente nos quartéis. Na Nova Zelândia todos os servidores de uniforme, do soldado ao general, são incentivados a participar ativamente nas decisões por meio de opiniões e sugestões. Isso promove um ambiente de confiança, onde os subordinados não apenas executam ordens, mas também têm um importante papel no processamento das deliberações. Outrossim, na Suécia ocorre esse encorajamento, uma vez que no âmbito da caserna predomina uma cultura do diálogo e a busca da comunicação entre diferentes níveis hierárquicos. Campeia o estímulo para ouvir os diferentes pontos de vista e propostas variadas, criando um ambiente onde todos se sentem valorizados. Em muitas situações participam diretamente da tomada de decisão garantindo o acolhimento de divergentes perspectivas e experiências.
Muito íntimo do estilo administrativo é o tipo de liderança empregado nas operações de treinamento militar. Ele também é linear e centralizado porque visa-se fazer simulações de condições reais, onde a coordenação e a execução correta das tarefas são fundamentais para o sucesso. Contudo possui outras peculiaridades que se seguem. A condução da tropa se assenta no exemplo dado pelo comandante, o qual tem que demonstrar comprometimento, coragem, resistência e compartilhamento das dificuldades. O fortalecimento da tenacidade psicológica dos soldados é concretizado por meio de recursos motivacionais apropriados. Em missões mais longas ou em ambientes hostis a colaboração e o trabalho em equipe são acionados. Opiniões alternativas são consideradas em determinadas situações.
O mesmo que foi dito para a administração vale para a liderança. Embora esse modelo de guiar grupos ainda seja válido e dotado de certa eficiência ele não apresenta sintonia alguma com a democracia representativa e direta e sim com sistemas políticos iliberais e opressivos. No transcurso da formação os cadetes seguem rendidos a esse protótipo carreador e assumem a sua adequação para movimentar soldados nos exercícios encenados bem como nas reais situações de combate. Portanto, se faz necessário instituir o predomínio de outras formas de liderança compatíveis à democracia.
Entretanto, vale ressaltar que a liderança democrática é vista pelos fardados como antagônica ao ato de guerrear. Concebem que em situações de alta pressão, como no combate, a rapidez e a clareza das decisões, a precisão da coordenação e a disciplina, são essenciais para garantir a segurança do grupo e o sucesso das ações. Esquecem, entretanto, que o combate em questão não é extensivo e sim restrito, porquanto tomam por referência a guerra de terceira geração que é caracterizada pela velocidade, manobras e surpresa, tal como a Segunda Guerra Mundial. Há a guerra de quarta geração que revela uma atenuação entre a própria guerra e a paz, a perda do seu monopólio pelo Estado, o envolvimento de atores não estatais e o uso de expedientes destinados a destruir o apoio da população aos governantes. Existe também a de quinta geração cujas peculiaridades dizem respeito às ações não cinéticas, o uso da desinformação, da inteligência artificial, dos sistemas autônomos e dos ataques cibernéticos.
Porém, mesmo em circunstâncias de lutas não relacionadas às de quarta e quinta geração, já ocorreu o emprego da liderança democrática. Na última conflagração os alemães empregaram uma variante baseada no estabelecimento da missão. Nela qualquer integrante da tropa podia modificar alguns de seus aspectos e até deixar de a cumprir para garantir sua autonomia e iniciativa. Na Guerra das Malvinas os oficiais ingleses mantinham um ambiente organizacional aberto com pouca atenção aos privilégios do posto e em constante diálogo com os subordinados hierárquicos através do qual estimulavam a apresentação de críticas e acatavam sugestões expostas. Durante a Guerra do Vietnã o General Giáp assumia as deliberações resultantes das reuniões com seus comandados sendo uma delas a exitosa série de ataques coordenados contra cidades e bases militares do Vietnã do Sul.
Atento às variações que ocorrem nas contendas, os militares estadunidenses inventaram outros estilos de liderar dotados de caráter democrático. Um deles é a liderança compartilhada aplicável em operações de alto risco. Nele inexiste a figura de um condutor, pois o que vale é a interação dos membros da equipe, possibilitadora do comando coletivo na forma de protagonismos alternados. Outro faz referência à guerra descentralizada, repassado aos ucranianos que os usam diariamente. Em tal modo de dirigir os comandantes de pequenas e dispersas unidades, junto aos seus soldados, pensam, trocam ideias, decidem e agem por conta própria.
Tão respeitável quanto o tema da liderança é a questão da envoltura política. Quanto a ela sabe-se que o pensamento imperante no meio civil é de que os militares têm que se dedicar apenas às tarefas profissionais. Deve ser proibido a eles participarem de eventos na esfera pública, querem que sejam apolíticos, desejam que exibam a posição de neutralidade. Entretanto, de acordo com o pensamento científico e filosófico o comportamento neutro é impossível de se manifestar. Ademais, esse impedimento é antidemocrático pois renega a um numeroso grupo de pessoas o direito de participar das ações voltadas ao encaminhamento do Estado. Ademais, é impossível a qualquer indivíduo demonstrar insensibilidade e afastamento de temas, problemas e decisões que impactam diretamente a vida de todos e de cada um. E é bem provável que o frenético empenho em cercear a conduta política democrática esteja produzindo um rejeitável efeito antidemocrático, qual seja, os inúmeros golpes e tentativas de golpe por eles praticados, possivelmente arquitetados em conspirações dentro dos quartéis.
Note-se que em países regidos pela democracia predomina o anseio de que os fardados devem permanecer afastados da política, porém não lhes tolhem a prerrogativa da participação. Existe um aconselhamento para dela se distanciarem e uma orientação para exercitarem a autocontenção. É o caso dos militares israelenses cujo código de ética aponta a necessidade de tomar um especial cuidado para não injetar opiniões pessoais sobre questões sujeitas a controvérsia pública de natureza política, social e ideológica. Nos Estados Unidos o Departamento de Defesa estabeleceu regras a serem obedecidas. Elas asseveram que o militar pode emitir opinião pessoal sobre candidatos em eleições; fazer contribuição financeira a partidos políticos; participar de reuniões políticas, comícios, debates como espectador e não uniformizado; colar um adesivo de cunho político em um veículo particular; usar um distintivo político em trajes civis; assinar petições para ações legislativas; encaminhar texto ao editor de um jornal expressando opiniões pessoais sobre determinados problemas ou candidatos; solicitar ou arrecadar fundos, quando não estiver uniformizado e fora da base, para uma causa política partidária ou candidato; expor sua adesão a determinado partido político, cuja maioria pende para o lado do republicano.
Contrariando o desejo da grande maioria se faz necessário então regulamentar e não cercear o envolvimento político democrático dos servidores de uniforme, de modo semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos. Caso isso venha a ocorrer, será uma relevante contribuição ao processo formativo dos cadetes, pois em várias oportunidades eles verão seus superiores hierárquicos participando de ações políticas, bem como tomarão consciência de que quando se tornarem oficiais poderão também realizá-las, favorecendo o desenvolvimento do apreço para com a democracia.
Outrossim é muito relevante vivenciar a democracia através do exercício da cidadania ativa ou engajamento cívico, espinha dorsal do regime democrático, seu dinamizador e consolidador, o preventivo da radicalização e o promotor do entendimento mútuo entre grupos sociais. Quanto a ele cabe dizer que se manifesta em vários recantos do planeta onde os fardados são incentivados a praticá-lo. Militares franceses participam de campanhas de saúde pública, oferecendo serviços médicos e vacinação em áreas vulneráveis. Servidores uniformizados australianos envolvem-se em projetos de assistência a comunidades carentes e prestam apoio em eventos locais. Aquartelados alemães apoiam programas de inclusão e de assistência a grupos vulneráveis e atuam na construção e reforma de instalações comunitárias.
Em relação ao grupo de cadetes também acontece da mesma maneira. Nos Estados Unidos os cadetes de West Point participam de diversas atividades voluntárias em comunidades localizadas no entorno da academia tais como limpeza de parques, ajuda a organizações de caridade e assistência a veteranos de guerra. No Canadá concretizam trabalhos em abrigos, apoiam organizações não governamentais que cuidam da igualdade e da inclusão e fazem campanha de arrecadação de fundos. Na Coréia do Sul se envolvem em ações de ajuda a idosos e colaboram com instituições voltadas a imigrantes e pessoas com necessidades especiais.
No Brasil, o engajamento cívico se manifesta de maneira similar. Os militares visitam asilos, orfanatos e demais instituições que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade. Organizam campanhas para arrecadar alimentos, roupas, brinquedos e materiais escolares. Promovem diversos eventos esportivos e culturais. Atuam em mutirões de saúde oferecendo serviços médicos, odontológicos e de enfermagem. Por sua vez, os cadetes costumam efetivar a distribuição de alimentos e de materiais escolares em comunidades carentes. Fazer a limpeza de praças, parques e praias. Empreender campanhas de angariamento de itens essenciais para carentes. Participar do Projeto Rondon contribuindo para o desenvolvimento comunitário em várias regiões do país. No entanto, vale observar que estas ações, assim como as demais anteriormente mencionadas se enquadram na categoria do voluntariado. Porém, o engajamento cívico comporta outras atividades que também devem ser exercitadas, tais como encaminhar petições e cobranças a políticos, fazer boicote de produtos nocivos, acompanhar a execução de políticas públicas, contribuir com ideias, opiniões e propostas em debates coletivos e participar de campanhas conscientizadoras.
Derradeiramente cabe expor que o exame da formação militar e seu intercâmbio com as manifestações golpistas dificilmente pode atingir o estágio da completude devido sua alta complexidade exigente de sondagens alongadas. Portanto, a análise aqui realizada se mostra parcial e nem poderia ser diferente em se tratando de um investigador isolado. Diga-se também, que o imprescindível e urgente remodelamento dessa formação para adequá-la à democracia não pode, de forma alguma, ser consequência de sugestões esparsas emanadas de leigos e nem resultante de propostas elaboradas por parlamentares. Suas bases se encontram na política nacional de defesa, no pensamento estratégico vigente e nos requerimentos das funções exercidas. Assim sendo, tem que ser concretizada por um grupo de estudiosos das Forças Armadas, composto por civis e militares, cuja comunidade acadêmica os reconhecem como pesquisadores idôneos e comprometidos com a solidez e a perenidade do regime democrático.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)
Leia também: