Por Cláudia Malinverni
No verão de 2007-2008, o Brasil vivia uma epizootia de febre amarela silvestre, desde o início classificada pela autoridade de saúde pública e a maior parte da comunidade científica como dentro da normalidade epidemiológica. A imprensa de massa discordou e deu ao evento uma intensa e controversa cobertura, que mobilizou a imprensa nacional em todos os suportes (TV, rádio, jornais, revistas, internet). Nesse processo de produção da notícia, configurou a doença como uma realidade epidêmica urbana – ciclo, ressalte-se, não registrado no país desde 1942.
País tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, o Brasil também é o paraíso do Culicidae, uma família de insetos dípteros, os populares mosquitos, que contabiliza cerca de 3 mil espécies. Dessas, já sabe a ciência, mais de uma centena é capaz de transmitir vírus a humanos e/ou animais, provocando as chamadas arboviroses, doenças causadas por arbovírus, transmitidos e mantidos na natureza em ciclos que envolvem vetores artrópodes hematófagos (insetos e aracnídeos, como aranhas, escorpiões e carrapatos) e hospedeiros vertebrados (humanos e não humanos), com presença mundial.
Uma dessas doenças é a febre amarela, arbovirose que tem uma longa história no Brasil – segundo os historiadores da saúde pública, chegou ao país em 1685, num navio vindo das Antilhas, no Caribe, irrompendo violentamente no Recife, onde matou “[…] 600 homens brancos, além de uma dezena de mulatos e pouquíssimos negros e mulheres”[1], tendo desencadeado a primeira “campanha sanitária” de que se tem notícia no continente.
Doença infecciosa febril aguda, não contagiosa, de curta duração e gravidade variável, é causada por um flavivírus e circula numa extensa faixa do território nacional, envolvendo a totalidade das regiões Norte e Centro-Oeste e grandes porções do Nordeste, Sul e Sudeste, notadamente nas chamadas fronteiras agrícolas – até a última e mais grave epizootia, no verão passado, apenas a costa litorânea era classificada pelo Ministério da Saúde como livre da febre amarela. Nas áreas de ocorrência (nomeadas como clássica e de transição), seus mosquitos transmissores, principalmente o Haemagogus e o Sabethes, encontram as condições ambientais e nutricionais perfeitas para sua reprodução e sobrevivência: árvores, muita umidade e altas temperaturas, sobretudo no verão, e uma variada população de macacos, principais fornecedores do sangue de que se alimentam as fêmeas desses mosquitos, que são hematófagas.
De caráter endêmico ou enzoótico, ainda hoje a febre amarela é uma importante causa de morbidade e letalidade em extensas áreas tropicais das Américas e da África, origem do vírus, afetando anualmente cerca de 200 mil pessoas, com 30 mil óbitos.[2] Portanto, trata-se de um problema de saúde pública de nível global.
Durante décadas, as áreas urbanas foram o principal cenário das epidemias amarílicas brasileiras, que ocorriam ciclicamente e tinham, em geral, grandes proporções. Nessas circunstâncias, o mosquito transmissor era o Aedes aegypti, protagonista das atuais epidemias de dengue, tido, até o começo dos anos 1930, como o único vetor da febre amarela. Essa crença, fortemente ancorada no ideário estadunidense da Fundação Rockfeller, consumiu grandes esforços (e recursos públicos) para a erradicação do Aedes, mantendo-se no centro das políticas públicas brasileiras de controle da doença por mais de 20 anos, mesmo depois que a comunidade científica descobriu, em 1932, que a febre amarela era dividida em dois ciclos: um urbano e outro silvestre.
Embora se trate da mesma doença, os dois ciclos implicam diferenças marcantes quanto ao agente envolvido na transmissão, hospedeiro amplificador (humanos e símios) e área de ocorrência (cidades e florestas). No que diz respeito ao hospedeiro, a transmissão da febre amarela urbana é feita do A. aegypti para o homem, responsável, portanto, pela amplificação e disseminação do vírus. No ambiente silvestre, os macacos arborícolas são os hospedeiros primários, sendo os seres humanos não imunizados infectados acidentalmente, quando entram em áreas de circulação do vírus.[3] É, portanto, num cenário idílico que se perpetua o ciclo natural do vírus amarílico, que, por envolver primariamente insetos e macacos, é chamado de ciclo enzoótico ou silvestre. O ciclo silvestre é mantido em razão da coabitação de mosquito (reservatório e vetor do vírus) e macacos (hospedeiros primários) nas copas das árvores. O vírus pode ser transmitido ao macaco pela picada de uma fêmea infectada de Haemagogus ou Sabethes; inversamente, uma fêmea sadia pode ser contaminada ao picar um macaco infectado. A transmissão pode ainda ser transovariana (quando a fêmea infectada do mosquito transmite o vírus aos seus descendentes).
Nas últimas décadas, os epidemiologistas também perceberam que a cada 5 ou 7 anos a circulação viral nas áreas de transmissão é intensificada, provocando a chamada epizootia, identificada através de um sistema de monitoramento que tem na morte de macacos o chamado evento-sentinela, que desencadeia as ações de vigilância e controle da expansão da doença. Isso porque, durante uma epizootia, é maior a probabilidade de ocorrência de febre amarela entre humanos que entram nessas áreas de circulação viral sem estar imunizados pela vacina. Daí a recomendação de vacinação de moradores e viajantes de áreas de risco de transmissão.
Da epizootia à epidemia midiática, a febre amarela como produto da mídia
No verão de 2007-2008, o Brasil vivia uma epizootia de febre amarela silvestre, desde o início classificada pela autoridade de saúde pública (ministério e secretarias estaduais e municipais de Saúde) e a maior parte da comunidade científica como dentro da normalidade epidemiológica. A imprensa de massa (não especializada e generalista) discordou e deu ao evento uma intensa e controversa cobertura, que mobilizou a imprensa nacional em todos os suportes (TV, rádio, jornais, revistas, internet). Esse processo de produção da notícia, como veremos adiante, provocou um transbordamento da rede de sentidos da epizootia, da sua dimensão epidemiológica (ciclo silvestre) para uma dimensão discursiva cotidiana, que configurou a doença como uma realidade epidêmica urbana – ciclo, ressalte-se, não registrado no país desde 1942[4].
A análise da cobertura da epizootia permitiu identificar um padrão de produção da notícia (newsmaking) que se caracterizou pela adoção de algumas estratégias discursivas epidêmicas, identificadas nos repertórios que circularam nos textos jornalísticos. Na primeira, que se pode nomear como a “supremacia temática”, evidenciou-se um dado quantitativo: a febre amarela ocupou um grande espaço do jornal, por várias edições consecutivas (118 matérias publicadas em 48 edições e 9 editorias, entre 21 de dezembro de 2007 e 29 de fevereiro de 2009).
No âmbito narrativo, destacaram-se as estratégias da “doença fora de controle”, cujo foco estava no “crescimento progressivo” de casos suspeitos, e do “inimigo letal”, centrada na saliência das taxas de letalidade da doença, privilegiando a sintomatologia e o tratamento. Articuladas, essas duas estratégias sustentaram narrativamente as chamadas de capa sobre a febre amarela, quando o evento ganhou status de tema importante e “quente” no horizonte de atualidade jornalística (Sousa, 2002). No período, a Folha publicou 15 chamadas de capa sobre a febre amarela, 12 delas publicadas quase consecutivamente, destacando termos que explicitavam sentidos de descontrole e letalidade – nos dias 11, 15, 16, 17 e 20 de janeiro, respectivamente, “primeira morte”; “2ª morte”; “5ª morte”; “7 mortes”; “8 o total de mortes”; “9ª morte”.
Outras duas estratégias discursivas influenciaram a produção da epidemia midiática. Uma deu-se pela quase omissão do ciclo que estava em curso – a expressão silvestre poucas vezes foi citada. Ao não nomear a doença, a narrativa jornalística pode ter produzido um sentido de “transmissão generalizada” da febre amarela. Somada à ênfase dos textos na tese de urbanização da doença, a narrativa formou um pacote interpretativo que pode ter levado o leitor da área urbana (público alvo da edição analisada), a sentir-se diante de um evento prestes a eclodir na porta de sua casa[5], ainda que ela estivesse situada a centenas de quilômetros das áreas em que o surto ocorria naquele momento.
Nesse cenário narrativo, destacou-se a “fabulação da vacina”, alçada à condição de “poção mágica”. Como fábula, a vacina foi tomada jornalisticamente como único recurso terapêutico capaz de proteger a população do “inimigo letal”. O noticiário – pasmem! – recomendava o uso “urgente” da vacina, discurso legitimado por fontes favoráveis à tese de urbanização da febre amarela e, por isso, da vacinação em massa, e pela omissão dos riscos de seus efeitos adversos.
Nesse contexto, a demanda vacinal explodiu e o Ministério da Saúde distribuiu aos estados e Distrito Federal mais de 13 milhões em pouco menos de dois meses. Esse número contrasta com a série histórica registrada pelo Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde (PNI-MS), que apontava à época uma distribuição de rotina entre 15-16 milhões de doses ao longo de um ano. No mesmo período, mais de 7,6 milhões de doses foram aplicadas, 6,8 milhões só no mês de janeiro, ápice do agendamento midiático da febre amarela. O governo brasileiro decidiu, então, suspender a exportação do antiamarílico[6], ao mesmo tempo em que o Ministério da Saúde apresentou à Organização Mundial da Saúde um pedido de empréstimo de 4 milhões de doses do estoque de emergência global, para uma eventual campanha de vacinação em massa de emergência.
No início de fevereiro, quando a agenda midiática da doença começou a perder força, o Sistema de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação (PNI-MS) já registrava 43 casos de reações adversas à vacina amarílica, mais do que o dobro de casos provocados pelo mosquito (19 confirmados entre dezembro de 2007 e 31 de janeiro de 2008).
A corrida pela vacina foi particularmente intensa no estado de São Paulo, onde, até 2008, dois terços do território era indene para o vírus amarílico. No período, foram registrados quatro óbitos por febre amarela vacinal (dois por doença neurológica e dois por doença viscerotrópica, a forma mais rara e grave), todos em território paulista (dois na capital e um na cidade de Embu-Guaçu, áreas até hoje livres do vírus, e um no município de Rincão, região de Araraquara, incluída pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo como área de risco de transmissão viral somente em janeiro de 2009). O estado também foi vice-campeão em doses aplicadas (2.440.560), atrás apenas de Goiás (2.784.332), cuja totalidade do território é endêmica desde o início da década de 2000, e quase 1 milhão a mais do que o DF (1.481.448), onde teve início a cobertura jornalística. Na capital paulista foram aplicadas 428.337 doses de vacina em 2008, mais de cinco vezes a quantidade aplicada em 2007, 79.666. O estado também registrou o maior número de casos de reações adversas no país: 187 eventos pós-vacinais, 81 a mais do que Goiás. Dado que não houve qualquer evento epidemiológico que justificasse o aumento da demanda vacinal, é possível inferir que a cobertura jornalística foi o fato social que impulsionou o fenômeno.
Os desdobramentos da epidemia midiática de febre amarela sobre a população em geral e a saúde coletiva, em particular, demandam uma reflexão crítica acerca do papel do jornalismo de massa na esfera pública. Todas as práticas discursivas implicam produção de sentidos no cotidiano, inclusive as do jornalismo. E a bandeira da liberdade de expressão, reconhecida e legitimada nas sociedades ocidentais como instrumento fundamental à cidadania, não pode servir de salvo conduto ao fazer jornalístico. Ao contrário, como produtor poderoso de sentidos e, portanto, construtor da realidade social, ele também deve ter em perspectiva as complexidades dos processos do adoecimento humano e os limites do seu próprio conhecimento acerca das coisas do mundo social, a saúde incluída.
Cláudia Malinverni é jornalista, doutora em ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, onde também atua como editora da Coleção Audioteca.
[1] Franco, O. História da febre amarela no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1969.
[2] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de Vigilância da Febre Amarela. Brasília, DF, 2008. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Febre%20Amarela-site-SVS-31out2008.pdf. Acesso em: 27 jan. 2010.
[3] Tauil, P. L. “Aspectos críticos do controle da febre amarela no Brasil”. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 555-558, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v44n3/20.pdf. Acesso em: 13 fev. 2011.
[4] O fenômeno da epidemia midiática de febre amarela, em 2008, é amplamente discutido em: Malinverni, C. “Epidemia midiática: um estudo sobre a construção de sentidos na cobertura da Folha de S.Paulo sobre a febre amarela, no verão 2007-2008. 2011”. Dissertação (mestrado em ciências) – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011; e Malinverni, C. “Epidemia midiática de febre amarela: desdobramentos e aprendizados de uma crise de comunicação na saúde pública brasileira”. 2016. Tese (doutorado em ciências) – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
[5] Malinverni, C.; Cuenca, A. M. B.; Brigadão, J. I. M. “Epidemia midiática: produção de sentidos e configuração social da febre amarela na cobertura jornalística”, 2007-2008. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 853-871, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v22n3/02.pdf>. Acesso em: 17 out. 2015.
[6] O Brasil é um dos três fabricantes mundiais pré-qualificados pela OMS na produção da vacina contra febre amarela, fabricada desde 1937 em Bio-Manguinhos/Fiocruz.