Por Samuel Ribeiro dos Santos Neto
Neste exato momento, há um número imenso de partículas invisíveis atravessando você, os objetos ao seu redor e o próprio planeta Terra. Chamadas neutrinos, elas se deslocam em velocidade próxima à da luz e raramente interagem com a matéria, sendo difíceis de detectar. Esses “fantasmas” ocupam hoje posição de destaque na física de partículas e podem responder questões complexas sobre o universo, como a própria origem da matéria.
Imagem: Paolo Lombardi
“Se nós pegarmos um único átomo, aumentarmos sua escala até que fique com o tamanho da Terra, o tamanho do núcleo desse átomo será apenas o de um estádio de futebol, mais ou menos, e um único neutrino teria o tamanho de um vírus”, explicou o professor Francesco Vissani, do Gran Sasso Science Institute, durante palestra recente na Unicamp.
Minúsculo, o neutrino necessita de equipamentos enormes para ser estudado. Os Laboratórios Nacionais do Gran Sasso na Itália, por exemplo, onde Vissani é diretor de pesquisa, contam com uma grande infraestrutura localizada abaixo de 1400 metros de rocha de montanha. Como uma espécie de guarda-chuva, a montanha impede a passagem de partículas maiores e ajuda a criar o ambiente ideal para analisar os neutrinos.
Outros centros de pesquisa também impressionam: o observatório IceCube, na Antártida, tem centenas de sensores localizados a milhares de metros abaixo do gelo, e o Dune (Deep Underground Neutrino Experiment), ainda em construção nos EUA, coletará dados de um fluxo de neutrinos a partir de um detector subterrâneo com 68 mil toneladas de argônio líquido, que precisa ser mantido abaixo dos -186ºC.
A detecção desse tipo de partícula é baseada na probabilidade: dentre os incontáveis neutrinos que atravessam a matéria, uma quantidade ínfima se choca com os átomos, e o resultado desse choque pode ser registrado pelos equipamentos detectores. Foi com esse método que o neutrino teve sua existência provada em 1956 pelos americanos Clyde Cowan e Frederick Reynes. Antes disso, ele já havia sido teorizado nos anos 1930 pelo físico austríaco Wolfgang Pauli e, logo após e com mais precisão, pelo italiano Enrico Fermi, que foi quem o batizou. Neutrino, do italiano, significa “neutrinho”, “pequeno nêutron”.
Mas as semelhanças com o nêutron não vão longe. Apesar de se parecer por não ter carga elétrica, o neutrino é milhões de vezes menor e mais leve. Diferente dos prótons e nêutrons, que fazem parte do núcleo atômico, ele é uma partícula elementar, o que significa que não se conhece nenhuma estrutura menor em sua composição.
“Para cada elétron que existe no universo, a gente estima que existam 10 bilhões de neutrinos”, afirmou Marcelo Guzzo, do Departamento de Raios Cósmicos do Instituto de Física (IFGW) da Unicamp, que pesquisa neutrinos há mais de 30 anos e também coordena um projeto de divulgação científica sobre partículas elementares. O professor contou que depois dos fótons, as partículas de luz, os neutrinos são as mais abundantes, sendo constantemente produzidos através de reações nucleares. Isso inclui o decaimento de átomos radioativos que ocorre naturalmente, até mesmo no corpo humano.
O decaimento do potássio-40, por exemplo, que é um isótopo radioativo presente em pequenas quantidades no nosso organismo, é suficiente para que cada indivíduo gere cerca de 20 milhões de neutrinos por hora durante toda a vida. O número assusta, mas é insignificante em se tratando dessa partícula. “Tudo gera neutrinos. Nós, as paredes, o chão, o planeta. Os reatores nucleares produzem pancadas de neutrinos. Mas a grande fonte na nossa vizinhança é o Sol”, ressaltou Guzzo.
Como um gigante reator nuclear, o Sol produz energia em seu núcleo a partir da fusão de átomos de hidrogênio em hélio, fazendo com que cheguem cerca de 60 bilhões de neutrinos por segundo em cada centímetro quadrado da Terra. Essas intrigantes partículas, conhecidas há menos de 100 anos, têm sido cada vez mais estudadas e são tema de projetos que envolvem cientistas de vários países. Mesmo assim, ainda se sabe pouco sobre suas propriedades.
Sorvete, vampiros e outras metáforas
Por décadas acreditou-se que os neutrinos, assim como os fótons, não possuíam massa. Mas isso mudou por volta dos anos 2000, quando os trabalhos dos físicos Takaaki Kajita e Arthur B. McDonald comprovaram o fenômeno da oscilação dos neutrinos, algo que só pode ocorrer em partículas que têm massa. A descoberta, que rendeu aos pesquisadores o Nobel de Física de 2015, mostrou que os neutrinos mudam constantemente de “tipo” ou “sabor” quando se deslocam, o que altera sua interação com a matéria.
Há três variedades de neutrinos na natureza, e o que se percebia era que os neutrinos elétron, produzidos massivamente no Sol, eram detectados em número abaixo do esperado nos experimentos. Onde estava o restante? Por um tempo, o “desaparecimento” desses neutrinos foi um mistério, mas hoje sabemos que eles oscilam, mudando de “identidade” para neutrinos múon e neutrinos tau.
A massa exata de cada tipo de neutrino ainda é desconhecida, mas já se sabe que ela é composta pela sobreposição de três massas diferentes. O fenômeno, regido pela mecânica quântica e não pela clássica, pode ser difícil de entender para quem não estuda física de partículas. Essa e outras características dos neutrinos têm exigido criatividade dos cientistas na hora de explicarem seu trabalho à sociedade.
Arthur Loureiro, pesquisador brasileiro da University College London e autor de um estudo recente que identificou o limite superior da massa do tipo mais leve de neutrino, compara os “sabores” da partícula aos sabores do sorvete napolitano.
“Sempre que a minha avó tinha sorvete napolitano de sobremesa, ela nos obrigava a pegar um pouco de cada sabor. O quanto de cada sabor a gente pegava dependia da colherada que dávamos no pote, mas precisávamos pegar os três”, contou em entrevista à revista Galileu. “Cada massa de neutrino é como uma porção de sorvete que contém uma certa combinação dos três sabores”.
Francesco Vissani, que está na Unicamp participando do Programa “Cesar Lattes” do Cientista Residente, também busca formas criativas para comunicar o tema. O professor tem dedicado esforços à divulgação científica há algum tempo e, na última palestra que ofereceu ao público brasileiro, apresentou três metáforas para falar dos neutrinos: vampiros, fantasmas e mutantes, esta última explicando a instabilidade da partícula e a oscilação que a leva de um “sabor” ao outro.
O “fantasma” é difícil de ser detectado, e atravessa paredes e o próprio Sol sem interagir com nada. Já o “vampiro”, que não aparece no espelho, representa o fato do neutrino não possuir uma imagem simétrica: a partícula “gira” (tem um spin) para uma certa direção, mas não existe com o giro na direção contrária. Ou seja, existem neutrinos “canhotos”, mas não existem os “destros”. Com o antineutrino, que é a antipartícula correspondente ao neutrino no mundo da antimatéria, acontece o contrário: existem apenas os “destros”.
O fato de neutrinos e antineutrinos terem cada um apenas um tipo de spin pode significar que eles também se comportem de maneira diferente nas suas oscilações e, consequentemente, no modo pelo qual interagem com os componentes do universo. Outra hipótese quente é a de que o neutrino seja o chamado férmion de Majorana, partícula teorizada nos anos 1930 e que seria antipartícula de si mesma.
Ainda longe de serem comprovadas, essas possibilidades empolgam os físicos do mundo todo porque podem ajudar a entender o fato de termos tanta matéria no universo, mas tão pouca antimatéria. Segundo a cosmologia, após o Big Bang deveria haver quantidades iguais das duas coisas e elas deveriam ter se aniquilado, mas por alguma razão a matéria predominou. O neutrino poderá ser uma peça-chave para solucionar esse mistério.
Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.