Por Peter Schulz
Fake science existe já há um bom tempo sob o nome de pseudociência, algo que quer se passar por ciência sem ter o seu estatuto. Existem critérios para diferenciar a pseudociência da ciência, pois, como diz o filósofo da ciência Bruno Latour, “o objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis”. As verdades discutíveis são refutáveis e “verdades” indiscutíveis são pós-verdades, “verdades” da pseudociência. No entanto, em tempos pós-verdadeiros, a atividade científica é também ameaçada pela falta de rigor nos mesmos cuidados necessários para identificar as fake news cotidianas.
Panorama
Fake news e pós-verdade são expressões que ganharam notoriedade nos últimos anos no embalo das redes sociais. Notícias falsas invadiram essas redes e seus consumidores as tomam por verdades, que são realimentadas pela validação dada pela rede de amigos nas mesmas redes. É assim que nos conectamos e assim “nós não estamos vendo pontos de vista diferentes e sim mais do mesmo”, nas palavras de Gilat Lotan em seu blog[i]. O meio de cultura das fake news é terreno fértil para a pós-verdade, palavra do ano da língua inglesa de 2016, embora o neologismo tenha aparecido pela primeira vez ainda no final do século passado, em 1992. Pós-verdade descreve situações em que crenças e emoções são mais importantes que fatos na formação da opinião pública.
Pós-verdade associada à palavra ciência leva (pelo Google, claro) a notícias e textos em que a ciência é celebrada como antídoto[ii] à própria situação (pós-verdade) que a rejeita[iii]. Deixando a ciência de lado por um instante, observa-se também a proliferação de avisos e dicas para separar notícias falsas de verdadeiras, como a divulgada pela International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) [iv] (figura abaixo). Voltando à ciência, que por construção (idealizada) deveria ser imune à pós-verdade e à produção de sua versão falsa (fake science), verificamos que também esse território do conhecimento humano está sendo invadido por opiniões e crenças que se sobrepõem ao rigor científico.
Fake science existe já há um bom tempo sob o nome de pseudociência, algo que quer se passar por ciência sem ter o seu estatuto. Existem critérios para diferenciar a pseudociência da ciência, pois, como diz o filósofo (além de sociólogo e antropólogo) da ciência Bruno Latour “o objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis”. As verdades discutíveis são refutáveis e “verdades” indiscutíveis são pós-verdades, “verdades” da pseudociência. No entanto, em tempos pós-verdadeiros, a atividade científica é também ameaçada pela falta de rigor nos mesmos cuidados necessários para identificar as fake rolex news cotidianas. Chama a atenção a isso uma série de eventos no palco do Caveat.nyc: “Teste sua habilidade para distinguir fatos de fatos alternativos! Seis apresentadores, alguns cientistas, outros charlatães. Seis tópicos, uns reais, outros falsos. Você consegue separar fato de ficção?” Esse é o teaser da apresentação chamando seu público[v].
A questão que será desenvolvida neste artigo é sobre alguns dos mecanismos de como uma falsa ciência encontra abrigo na comunidade científica, que ao perder rigor nas suas práticas acaba promovendo, senão a falsa ciência, pelo menos uma ciência de baixa qualidade, que (entre outras coisas) significa uma ciência sem credibilidade. O que segue é baseado em três artigos da série “Ciência assim assado”, publicados no Jornal da Unicamp.
Invasão do território da ciência
A dica de “considerar a fonte” é fundamental na ciência, bem como “consultar especialistas”, como sugerido no painel do IFLA. Comecemos por essa última. Os especialistas no caso são as bases de dados para buscas bibliográficas, com ferramentas cada vez mais acuradas para encontrar o que se busca em prol da ciência, mas também para aferições bibliométricas tão presentes na avaliação da atividade científica. O cânone dessas bases é conhecido como Web of Science, considerada a mais seletiva que existe. As buscas são feitas no repositório de mais de 10 mil revistas científicas indexadas após uma seleção rigorosa de acordo com os critérios que guiam (ou deveriam guiar) a prática da publicação acadêmica. A popularidade do seu uso, além do de outras bases como o Scielo e a Scopus, levou a uma confiança quase absoluta nela: se algum artigo é encontrado ali é porque é correto e crível, pois a base garante que o artigo passou pela revisão por pares antes de ser publicado, um dos vários critérios para que a revista seja incluída na base. Como estamos acostumados também na ciência a nos limitarmos aos terrenos disciplinares cada vez mais especializados, passa despercebido que essa base, no entanto, dá guarida a revistas que promovem a fake science. Um exemplo, completando 10 anos de presença na base é a revista Neuroquantology: segue todos os critérios necessários para ser indexada (corpo editorial multi institucional e internacional, revisão dos artigos por pares, regularidade na publicação, entre outros). É uma revista “interdisciplinar de Neurociência e Física Quântica”. Os artigos publicados ali, quando citados, o são em sua maioria por artigos publicados na mesma revista, estabelecendo um território como tantos outros tradicionais e com credibilidade estabelecida. No entanto, algumas citações estão em artigos espalhadas por um enorme número de outras revistas, como, por exemplo, na prestigiosa PLOS One.
Para identificar a fake science não é suficiente perguntar aos especialistas, sejam bibliotecários em carne e osso ou bases de dados no mundo virtual. É importante seguir outras dicas, como ler mais, ir além do título e ver o conteúdo completo. A edição de 2018 da Neuroquantology traz o artigo “Modificações do DNA através de intenções remotas”. Ler o resumo e o artigo revela que a modificação genética pela força da mente foi demonstrada (segundo os autores) por experimentos com tratamento estatístico dos dados. O formato, portanto, é rigorosamente acadêmico. Apenas um debruçar demorado pode levar à demonstração de que se trata de pseudociência – uma demora que a dinâmica da atividade científica e a especialização desestimulam. Em analogia com o cinema, poderíamos falar de ciência replicante, como no filme Blade runner em que identificar alguns replicantes mais sofisticados passara a ser muito difícil através dos testes disponíveis.
Por mais rigor na ciência
Na lista de recomendações para identificar notícias falsas da IFLA, aparece no topo o “leia mais”. Ler mais é um dos pilares para a pesquisa. As referências a outros trabalhos em um artigo dão sustentação às reivindicações em torno de uma descoberta ou uma nova visão proposta por um trabalho acadêmico. Referenciar um trabalho anterior, dando-lhe uma citação é um reconhecimento como o sugerido na famosa frase de Isaac Newton: “Se enxergo mais longe é porque estou sobre ombros de gigantes”, que vale também para a ciência menos ambiciosa e impactante do nosso cotidiano. No entanto, referências e citações ganharam outras funções no duro jogo de sobrevivência e busca de evidência no território da ciência[vi]. O comportamento frente a elas varia entre as comunidades de diferentes áreas do conhecimento.
Independentemente das motivações para citar um trabalho, é imprescindível não parar no título ou resumo desse trabalho, é preciso ler mais. E esse preceito simples está sendo esquecido, chegando ao ponto de que numa cadeia de citações pode não ser possível encontrar o acesso à fonte primária de dados ou informações, que supostamente dariam suporte a uma descoberta ou abordagem de um problema. Muitas vezes, por exemplo, se reproduz uma afirmação em um artigo, que é tomada como certa por estar exatamente em um artigo que foi em princípio analisado por pares antes de publicado[vii]. O caso mais intrigante é de citações de trabalhos que simplesmente não existem, fenômeno possível porque trabalhos são citados simplesmente porque outros já o citaram, mas… nunca foram lidos e, às vezes, nem mesmo existem. Resumo aqui um caso recente emblemático descrito por Anne-Will Harzing[viii].
Um amigo do primeiro autor da referência fantasma sobre escrita científica (Van der Geer, J., Hanraads, J.A.J., Lupton, R.A., 2000. The art of writing a scientific article. J Sci. Commun. 163 (2) 51-59.) foi quem detectou o fenômeno. Resulta que van de Geer (essa é a grafia correta) nunca escreveu esse artigo, pois a referência é fictícia e consta como ilustração em um guia de como formatar as referências em artigos de revistas editadas pelo grupo editorial Elsevier. Mesmo assim foi citada cerca de 400 vezes segundo busca na base Web of Science. É de fato um fenômeno para um artigo que não existe. O mistério é desvendado em etapas por Anne-Will Harzing. A maioria das citações ocorre em artigos em revistas de anais de conferências, em particular na série Procedia, da Elsevier, sendo que algumas dessas revistas já foram interrompidas dada a baixa qualidade editorial. É um exemplo de aproximação perigosa entre um grande grupo editorial e o fenômeno das revistas predatórias, mas essa é outra história. Voltando à referência fantasma, Harzing analisou vários dos artigos que a citam e uma explicação para grande parte deles é o “copiar e colar” malfeito a partir de textos templates, que contêm a referência fictícia como ilustração. Aparentemente essa referência era esquecida ali nos artigos submetidos às revistas: autores e editores em uma disputa de descaso à recomendação “leia mais” Aliás, parece mesmo que esses artigos nunca tiveram revisão por pares antes de publicados, pois como seria possível um artigo que fala sobre a importância de polímeros condutores e cita um suposto artigo de escrita científica para fundamentar a ideia?
Predadores da ciência
É preciso ainda voltar à primeira recomendação da IFLA: “Considere a fonte”, que na prática científica seria checar a revista em que um trabalho que despertou interesse foi publicado. No começo deste século, em reação á agressividade predatória do mercado editorial, começou a ganhar relevo o movimento de acesso aberto em ciência: os autores pagam a publicação de seu artigo, que passa a ser de livre acesso a quem quisesse – uma tentativa de acuar o plano de negócio por assinaturas. Os custos para os autores seriam cobertos pelos seus recursos de pesquisa, programas específicos das universidades ou fundações[ix].
O começo do século XXI não trouxe, infelizmente, apenas a ideia de ciência aberta, mas também a da intensificação da produção científica e sua internacionalização. Eis que surge o cenário para novos modelos de negócios, aberto a novos predadores, desde cursos sobre como publicar em inglês e, principalmente, as chamadas revistas predatórias. São revistas online sediadas em países de pouca tradição científica, anunciando editores e conselhos editoriais obscuros, que maquiam supostas avaliações por pares, que apresentam falsas indexações, mas… cobram. Bem mais barato, é verdade, que as revistas não predatórias, mesmo porque o custo dessas predatórias é praticamente nulo: manter um sítio fajuto no ar e alguém que poste os artigos, que não são revisados e nem editados. Como fazem isso? O fenômeno é lembrado sempre que aparece um email convidando o destinatário a publicar em uma revista de nome um pouco estranho, mas sugestivo ou sedutor, muitas vezes com o international no início ou que seja parecido com o nome de alguma revista já estabelecida. São, em geral, revistas de ciclo de vida curto, lucram enquanto o alerta à tramoia não é disseminado, como é o caso da Business and Management Review (BMR), editada(?) pela Business Journalz (??, isso mesmo, com z no final). Ela surgiu em 2011, mas não publicou um único artigo em 2017. Anuncia, entre outras coisas, revisão por pares, mas os artigos não trazem a data de submissão e aceite, como seria praxe. O último artigo, de 2016, está lá em português, mesmo que no suposto comitê editorial não apareça ninguém de algum país lusófono. Ah, a revista também não tem endereço.
Esse é mais ou menos o estilo compartilhado por todas as revistas chamadas predatórias. Se a BMR parece ter chegado ao fim, outras surgem como as dezenas de revistas, muitas sem nenhum artigo publicado ainda, nem comitê editorial, mas prometendo as mesmas coisas. Revistas predatórias dispararam o alarme em várias partes do mundo acadêmico: foram criadas listas de advertência, que também são controversas. Inicialmente tomado como uma ameaça às comunidades de países com tradição científica menor, espalhou-se também pelo primeiro mundo.
Insistindo nas recomendações
A ciência é uma atividade humana como outra qualquer. Assim uma sociedade que se vê envolvida por notícias falsas e pós-verdades, consumindo-as e produzindo-as, dificilmente teria uma parcela dela (a ciência) protegida dessas agressões. Por outro lado, a ciência goza de enorme credibilidade, mas arrisca perdê-la. Os cuidados a serem tomados estão na própria proclamação de seus métodos e princípios, agora disseminados ao público geral graças, ironicamente, às fake rolex news. Desconfio que o relaxamento quanto a esses princípios seja devido ao tempo necessário para respeitá-los, que se confronta com a dinâmica acelerada contemporânea da produção científica.
Mas não é de hoje que o recado é dado. John Ziman, físico e humanista, há tempos advertia que:
“Cientistas conhecem filosofia e sociologia como peixes conhecem água. Eles entendem instintivamente como viver nela sem se darem conta que assim o fazem. Isto é, até que o aquário é agitado ou (o horror!) é entornado. Parece que estamos vivendo exatamente desse jeito. Ciência está sendo agitada e forçada a abandonar muitos dos costumes até então apreciados. Nós precisamos pensar seriamente sobre o que está acontecendo e o que devemos fazer, não para meramente sobreviver, mas para servir e deleitar a humanidade.”
Peter Schulz foi professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). É secretário de comunicação da Unicamp (gestão Marcelo Knobel, 2017-2020).
Leia também:
Mercadores da dúvida: cientistas contra a ciência, por Camila P. Cunha
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[i] https://medium.com/i-data/israel-gaza-war-data-a54969aeb23e
[ii] https://www.americanscientist.org/article/science-in-the-post-truth-era
[iii] http://www.australasianscience.com.au/article/issue-mayjune-2017/post-truth-and-rejection-science.html
[iv] https://www.ifla.org/files/assets/hq/topics/info-society/images/portuguese_-_how_to_spot_fake_news.pdf
[v] http://caveat.nyc/event/real-fake-science/
[vi] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-que-dizem-citacoes-em-artigos
[vii] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/referencias-nao-lidas-copiadas-ou-inexistentes-pelo-rigor-na-ciencia
[viii] https://harzing.com/publications/white-papers/the-mystery-of-the-phantom-reference
[ix] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-ethos-e-seus-predadores