Por Bianca Bosso [imagem: Pexels/Pixabay]
Mais do que uma distração, a escrita pode reduzir os níveis do “hormônio do estresse” no sangue e favorecer a manutenção da saúde mental durante períodos difíceis.
No livro Social: Por que nossos cérebros estão conectados, o neurocientista Matthew Lieberman enfatiza a necessidade de estabelecer vínculos com outras pessoas: “A importância da conexão social é tão forte que quando somos rejeitados ou experimentamos outras ‘dores’ sociais, nossos cérebros ‘doem’ da mesma maneira que quando sentimos dor física”. A relevância das relações que se cultivam em grupos de amigos, colegas de trabalho e família ganha uma nova dimensão ao olhar para dentro, uma vez que a privação do recebimento de estímulos sociais, como ocorre no caso de isolamento físico e social imposto pela covid-19, faz com que o sistema nervoso produza substâncias e ative mecanismos para avisar o corpo que se está sozinho e vulnerável.
Uma das principais substâncias que tem a produção aumentada durante situações estressantes é o cortisol. Os níveis elevados desse hormônio desencadeiam sintomas como aumento da frequência cardíaca e dos níveis de açúcar no sangue, dilatação da pupila e constrição dos vasos sanguíneos. Tais alterações não são ruins quando ocorrem esporadicamente em momentos isolados de estresse, uma vez que deixam o indivíduo mais alerta e ativo para enfrentar situações de tensão. No entanto, quando o fator estressante se prolonga e os níveis de cortisol permanecem aumentados em longo prazo, isso pode acarretar alteração no sono, instabilidade emocional e aumento do risco de doenças cardiovasculares.
O psicólogo comportamental Henrique Alencar explica que “em períodos de isolamento ou estresse, a realidade externa nos apresenta situações diferentes das quais estamos acostumados a viver e nesses casos, nosso ‘eu interno’ é responsável pelo trabalho de observar o momento atual e adaptá-lo a nossa visão da realidade. O movimento de realizar uma atividade representa o olhar interno para o que queremos ou precisamos fazer para atingir um objetivo, a busca por um bem-estar”, explica.
É aí que a escrita se mostra como uma aliada poderosa durante os períodos de isolamento. Um artigo publicado na revista Psychoneuroendocrinology revelou que a introdução de atividades de distração, como a escrita, pode reduzir a produção de cortisol durante o período de inquietação.
Não são raros exemplos de obras compostas durante períodos de isolamento. Anne Frank produziu seu clássico diário entre 1942 e 1944, período em que permaneceu completamente isolada do mundo exterior junto à sua família, na tentativa de sobreviver ao nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Shakespeare compôs algumas de suas peças mais famosas, como O rei Lear e Macbeth enquanto se isolava na fuga da peste bubônica, doença que dizimou um décimo da população de Londres. O franco-argelino Albert Camus, isolado desde a adolescência devido à tuberculose – e ainda mais depois da explosão da Segunda Guerra Mundial – estava sozinho e recluso ao compor A peste. Ainda podemos citar como frutos do isolamento clássicos como Marco Polo, Conversation with myself (Nelson Mandela) e O diário da queda (de Michel Laub).
Raphael Luiz de Araújo, doutor em letras pela Universidade de São Paulo, enfatiza que um dos estímulos para a escrita durante períodos de isolamento pode ser a necessidade de se comunicar, tão intrínseca ao ser social que nossa espécie é, uma vez que quando escrevemos, nos comunicamos com o exterior: “Escrever na solidão pode simbolizar uma forma de comunicação com aqueles que não estão lá”, explica. Assim, uma vez privados das formas de contato cotidianas, a escrita pode simbolizar uma alternativa para expressar aquilo que queremos transmitir: “Camus, por exemplo, escrevia nos cadernos dele que encarava sua obra como um espaço de alegria e liberdade. Ele encontra na escrita algum conforto, alguma expressão que faltava ao seu corpo”, acrescenta.
Para Filipe Amaral Rocha de Menezes, doutorando em estudos literários na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “a escrita vai muito além de uma distração, reflete a profunda necessidade do fazer artístico ou reflexivo, inerente ao ser humano”. Menezes acrescenta que um aspecto interessante da escrita em situações extremas, em especial nas obras autobiográficas, é que esta pode ser utilizada como ferramenta de significação dos eventos a que o autor está submetido. “A escrita da vida exerce um papel duplo de elaboração da realidade vivida, esta sendo especialmente diferente sob pressão ou medo. Ao realizar a escrita autorreflexiva, o autor procura compreender essa realidade distorcida“.
Henrique Alencar esclarece que o ato de escrever favorece a assimilação dos eventos através da possibilidade de ordenar e agregar sentido àquela vivência, o que é especialmente importante quando nos encontramos em situações estressantes e diferentes daquelas às quais estamos habituados: “O ato de escrever nos permite trazer ao mundo uma representação do nosso pensamento, tornando-o palpável e concreto. Não somente a escrita, mas qualquer forma de arte, como pintura, música, dentre outras, todas levam à expressão de um sentimento. Uma emoção interna que ganha uma forma mais concreta, onde pode ser vista, melhor compreendida e ressignificada”.
No artigo “Fronteiras de identidades: a escrita do eu em O diário de Anne Frank”, Denise Borille de Abreu, doutora em literaturas de língua portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, defende que: “A escrita de vida pode vir a propiciar ao sujeito traumatizado a oportunidade de reconstruir uma história e também a si próprio, agregando certa linearidade a uma história que, devido à intensidade de um encontro com o traumático, não teve início, meio e fim”.
Seja como ferramenta de expressão, autocompreensão ou de representação de uma realidade diferente, escrever durante períodos de isolamento favorece a manutenção da saúde. Como pontua Araújo, “A escrita é uma forma de liberdade. Já que [durante o isolamento] não podemos exercer nossa liberdade como normalmente o fazemos, a escrita é uma janela para sermos livres”.
Bianca Bosso é formada em ciências biológicas na Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).