Por Carolina Medeiros
Na madrugada do dia primeiro de janeiro, um homem invadiu uma casa em Campinas, no interior de São Paulo, matou 12 pessoas de uma mesma família e, após os disparos, se matou. Entre as vítimas da chacina estavam a ex-mulher e o filho do atirador, e as demais eram todas mulheres da família da ex-esposa. O crime foi classificado como feminicídio.
Algumas horas depois, na capital paulista, um vendedor ambulante foi vítima de assassinato por tentar impedir que dois jovens agredissem uma travesti na entrada de uma estação de metrô. O crime foi classificado como homicídio causado por homofobia.
Esses casos ganharam repercussão nacional e integram uma lista de outros casos semelhantes, que, muitas vezes, são vistos apenas como números de uma estatística brutal, que coloca o país na 5ª posição dos países mais violentos para mulheres, segundo dados da ONG Compromisso e Atitude; e mais violento para a comunidade LGBT, segundo dados do jornal americano The New York Times.
De acordo com a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-RP), o Brasil tem uma denúncia de violência contra mulher a cada sete minutos; em 2015, foram registrados 63.090 relatos de agressões, sendo mais da metade deles (58,55%) contra mulheres negras. O Ligue 180, canal para denúncias da SPM-PR, registrou, ainda, outros números alarmantes: 19.182 denúncias de violência psicológica (30,40%), 4.627 de violência moral (7,33%), 3.064 de violência sexual (4,86%) e 3.071 de cárcere privado (1,76%). Os atendimentos registrados mostram ainda que 77,83% das vítimas têm filhos, e que mais de 80% deles presenciaram ou também sofreram a violência.
E tão alarmantes quanto esses dados são os números de violência contra a comunidade LGBT. Segundo o Grupo Gay da Bahia que, há 37 anos, faz o trabalho de resgatar dados e informações nas cinco regiões do país para revelar até onde vai a homo-lesbo-transfobia, em 2016 houve 343 mortes registradas de pessoas LGBT Brasil, o mesmo que uma a cada 25 horas. O relatório do grupo aponta ainda que 64% das vítimas eram brancas e 36% negras; a mais jovem tinha 10 anos, a mais velha 72 anos. Outros dados apontam que menores de 18 anos são 20,6% dos casos, e que a vítimas na terceira idade representam 7,2% dos casos.
Fonte: Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil/Grupo Gay da Bahia
Embora os dados apontem que tanto mulheres quanto a comunidade LGBT são extremamente vulneráveis à violência, é importante destacar que políticas públicas voltadas ao combate da violência contra mulheres estão mais estabelecidas conforme pontua o professor Marcelo Natividade, antropólogo da USP. “O movimento feminista tem uma longa trajetória de luta, enquanto aqueles em prol da comunidade LBGT, além de tardios, são pequenos grupos dentro de um grande grupo lutando por igualdade de direitos”, explica o professor.
Tal afirmação pode ser confirmada pela Declaração para a Eliminação da Violência contra a Mulher, de 1993, promulgada durante a Assembleia Geral das Nações Unidas daquele ano. O documento instituía como crime “qualquer ato de violência de gênero que resulta, ou pode resultar, em dano físico, sexual ou psicológico, ou sofrimento para a mulher”. É importante destacar que, na visão da ONU, tal declaração se trata de “uma definição clara e compreensiva da violência contra as mulheres (e) sobre os direitos a serem aplicados para assegurar a eliminação da violência contra as mulheres em todas as formas”.
Em outras palavras, pode se afirmar que o objetivo de tal documento é servir como incentivo para a elaboração de políticas públicas efetivas, por parte de todas as nações, em prol do fim da violência contra as mulheres. No Brasil, a mais famosa ação é a Lei Maria da Penha, denominação popular da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Em linhas gerais, prevê “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, (…) sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres e da convenção interamericana para prevenir, punir a violência contra a mulher; dispõe sobre a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”.
Vale destacar que a lei leva o mesmo nome da mulher que se tornou um marco dessa luta contra a violência. Durante 23 anos, Maria da Penha foi vítima de violência doméstica. Em 1983, o marido, por duas vezes, tentou assassiná-la. Na primeira vez, com arma de fogo, deixando-a paraplégica, e, na segunda, por eletrocussão e afogamento. Após a segunda tentativa de homicídio, tomou coragem e o denunciou. Porém, o agressor só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado.
Embora não exista uma lei exclusiva, como a Lei Maria da Penha, para a comunidade LGBT, Natividade lembra que, durante a última década, muitos avanços foram feitos em prol desta que é a comunidade mais vulnerável, em sua opinião. “Ministérios foram criados em prol dos direitos humanos, o que gerou o desenvolvimento de muitas políticas públicas que vão ao encontro das agendas internacionais de preservação dos direitos dessa comunidade”, defende do antropólogo. O pesquisador aponta, também, o perigo de retroceder ao se extinguir determinados ministérios.
Mesmo com relativos avanços, é notável que a violência contra determinados grupos, muitas vezes, não tenha a dimensão que deveria. Haja vista o elevado número de relatos de estupro em que as próprias vítimas são consideradas as responsáveis pela violência, seja por usarem certas roupas ou estarem em locais inapropriados, entre outras acusações. Natividade lembra que isso é mais comum quando se trata de vítimas de classes sociais mais baixas, uma vez que essa parte da população já é mais vulnerável a determinadas descriminações.
A historiadora e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Isadora Lins França, defende que não se pode afirmar que uma determinada classe social sofre mais violência que outra. “O que temos são dinâmicas distintas de violência e recursos também diferentes para lidar com ela. No caso das pessoas mais pobres, a violência em razão da sexualidade e gênero pode articular-se a uma série de outras violências que sofrem os mais pobres no Brasil”, pontua.
Na visão da sociologia, a base da violência está diretamente ligada à vulnerabilidade do outro, conforme explica a filósofa norte-americana Judith Butler. Para ela, a representação do diferente constitui um meio de humanização/desumanização, de reconhecimento do vínculo ético-moral com o outro, ou de justificativa para sua eliminação. Em seu artigo “Vida precária”, ela conclui, que “se as humanidades têm algum futuro como crítica cultural, e a crítica cultural tem uma tarefa no presente momento, é, sem dúvida, no sentido de nos fazer retornar ao humano aonde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites de sua capacidade de fazer sentido”.
A importância do debate acerca de temas como o da violência de gênero é compartilhada por Isadora França. Para ela, é necessário um diálogo entre movimento social e Estado, que estimule um olhar positivo para a diversidade. “Neste momento, precisamos de articulação política e solidariedade, fundamentalmente, para impedir retrocessos num momento em que nossos direitos – assim como de outras populações, como indígenas e mulheres, entre outras – se veem ameaçados”, defende a historiadora.