Escassez de dados genéticos das populações do sul global dificulta acesso adequado à saúde

Por Eduarda A. Moreira

Imagem: Vectorarte/Freepik

Bancos de dados são majoritariamente eurocêntricos e negligenciam o bem-estar e a história de povos originários

Mais de 80% dos estudos que investigam a influência de fatores genéticos em doenças são realizados com populações europeias. A genética está relacionada a diversos aspectos, incluindo fatores ligados ao adoecimento e à metabolização de medicamentos, e os resultados dessas pesquisas podem orientar, por exemplo, o desenvolvimento de métodos diagnósticos e de tratamentos. Mas será que os dados adquiridos a partir de uma população específica podem ser aplicados para o resto do mundo?

De acordo com Michel Naslavsky, professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, a resposta é não. “Diabetes tipo 2 em africanos, europeus ou asiáticos pode ter uma lista de causas um pouco diferentes. Se estudamos apenas os europeus, temos somente parte do entendimento sobre aquela doença”, exemplifica o pesquisador, que atua no Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco.

Doenças como diabetes, hipertensão, doença de Alzheimer e câncer, são consequência de uma combinação multifatorial entre mutações em genes e condições ambientais. Mesmo que os resultados, no geral, sejam semelhantes, as causas e desdobramentos podem variar significativamente entre populações, principalmente devido à variabilidade genética.

Os seres humanos surgiram no continente africano, a partir de onde se espalharam pelo resto do planeta. Muitas das populações continentais que se formaram depois desse movimento de migração viveram isoladas durante alguns milhares de anos, até que expedições em direção ao “novo mundo” passaram a promover novos encontro. Tanto o isolamento quanto as interações promoveram variabilidade genética e, com isso, cada população desenvolveu características específicas. Na América do Sul há grande miscigenação, consequência da variedade de povos que desembarcaram na região durante as grandes navegações.

Segundo Tábita Hünemeier, que também é professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP, a grande complexidade genética das populações desta região está no fato de que ela resulta da sobreposição de características de cada uma das populações que a formaram, e da miscigenação desses povos. “Na América existe a mestiçagem entre os nativos americanos e os europeus, que chegaram e trouxeram os africanos escravizados. Então é como se a gente embaralhasse a diversidade genética”, define Tábita. Existem muitos estudos sobre populações da Europa e de parte da Ásia, mas ainda faltam informações, principalmente sobre os povos africanos e nativos americanos. Essa escassez reflete o menor investimento em pesquisa no sul global e o colonialismo científico, expresso na negligência em relação à história, saúde e bem-estar dessas populações.

Os testes comerciais de ancestralidade, que têm se tornado um nicho cada vez mais amplo, são um exemplo da carência de dados genéticos sobre determinadas populações. “A porção europeia de um indivíduo vai ser muito bem determinada pelo teste, provavelmente indicando seu local exato de origem. Para a África, o resultado vai apontar apenas uma região, dando uma ideia mais geral”, explica Tábita. Ainda que não seja o ideal, a pesquisadora considera esses testes relevantes, já que grande parte da população do sul global não tem acesso a informações sobre sua origem e seus antepassados, principalmente as porções descendentes de povos africanos e indígenas. Além disso, em regiões de alta miscigenação, conhecer a própria ancestralidade pode ser surpreendente. “As pessoas começam a ter mais interesse pela própria história e a entender que a história da maioria dos brasileiros não é exclusivamente europeia. Muita gente fenotipicamente branca não é necessariamente 100% europeia”, completa a pesquisadora.

 Projeto genoma humano e bancos de dados

O Projeto genoma humano, desenvolvido entre 1990 e 2003, contou com mais de 5 mil cientistas de 250 diferentes laboratórios. O objetivo dessa iniciativa global, que contou com a participação de pelo menos 18 países, era mapear o genoma humano, identificando todos os nucleotídeos. “Esse projeto foi muito importante para dar uma referência do genoma humano. Costumo dizer que ele funciona como a foto na caixa do quebra-cabeça, que facilita muito sua montagem – mas certamente não representa todos os seres humanos”, explica Naslavsky. O mapeamento completo do genoma impulsionou o surgimento de outros projetos, espalhados por todo o mundo, com o objetivo de compreender as especificidades de cada população e, consequentemente, a diversidade genética da espécie humana.

O banco britânico, UK-Biobank, é o mais abrangente do mundo atualmente, contando com dados de cerca de meio milhão de pessoas, com idades entre 40 e 69 anos, que vivem no Reino Unido. Os colaboradores fornecem amostras de sangue, urina e saliva, além de informações detalhadas sobre seu estilo de vida, que são utilizadas sem identificação de origem. Os dados do banco são acessados ​​por pesquisadores autorizados de organizações acadêmicas, de caridade, governamentais e comerciais que realizem pesquisas de interesse público relacionadas à saúde.

A construção, manutenção e ampliação de um banco dessa magnitude é de extrema relevância para a completa compreensão da saúde, diversidade e história de um povo, ao possibilitar o acesso a informações genéticas e de ancestralidade representativas. Um projeto assim depende de interesse público, financiamento, mão de obra especializada, além da compreensão e colaboração de toda a sociedade.

No Brasil, o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão (Genomas Brasil), do Ministério da Saúde, tem como objetivo a construção de um banco brasileiro de dados. Inseridas neste programa, estão três iniciativas: DNA do Brasil, liderada pela pesquisadora Tábita, com foco na observação da diversidade genética; Rede Genomas SUS, da qual o professor Michel participa, que busca compreender a relação de fatores genéticos com doenças comuns; e Genomas Raros, para foco em doenças genéticas raras.

Essas iniciativas estão espalhadas pelo país, procurando obter amostras de pessoas de todas as regiões, raças e etnias, por meio da colaboração entre universidades, centros de pesquisa e unidades de saúde. Espera-se que, juntas, gerem cerca de 60 mil genomas representativos da população brasileira com o objetivo de desvendar as relações entre genes e doenças.

Eduarda A. Moreira é doutora em ciências (USP) e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp