Era uma vez…

Outro aspecto fulcral do museu-casa são seus acervos – que devem ser adequadamente preservados, exibidos e passíveis de extroversão –, comumente advindos de coleções particulares, e aquilo que ele permite de percepção de conexões entre os elementos que os compõem e que geram uma determinada configuração de referências históricas, biográficas, artísticas e culturais, as quais podem servir não só para a preservação de memória, mas também como objeto de reflexão sobre modos de viver, de pensar e de criar próprios dos contextos em que são gerados, incluindo-se a sua necessária releitura crítica com base na visão de outra época, mas sem desconsiderar a óptica da situação de origem.

Por Marcelo Tápia

Para o bem de nossa memória sociocultural, vale contar um pouco de uma história que me parece emblemática acerca de políticas e gestão cultural e tem, creio, importância para o universo da cultura em São Paulo e no Brasil. Este artigo será, assim, uma combinação de depoimento e de apresentação de algumas ideias relacionadas ao tema que o permeia: o de museus-casas.

Era uma vez a “Rede de Museus-Casas Literários de São Paulo”. Essa rede foi oficializada em 2017, mediante a publicação de um edital da então Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, visando à concorrência pública dirigida a organizações sociais para que a vencedora a administrasse por um período de cinco anos (o sistema de gestão de “equipamentos” culturais do Estado prevê a atuação conjunta da secretaria de governo com uma organização sem fins lucrativos). Naquele contexto, havia fértil diálogo entre a referida secretaria e as OSs, no caso a Poiesis, que, desde 2008, geria dois dos museus que comporiam a rede: a Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (nome adotado desde 2004, quando a Casa reabriu como museu após a doação, ao Governo do Estado, da biblioteca do poeta por seus herdeiros) e a Casa Guilherme de Almeida. Desde 2016, a Casa Mário de Andrade (que fazia parte do hoje extinto programa Oficinas Culturais, cuja administração também estava a cargo da Poiesis) passou a integrar o corpo dos museus-casas geridos pela OS, com o propósito de implementar a sua musealização. A proposta foi bem acolhida pela Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico da Secretaria (UPPM), passando a integrar a natureza do edital que criou a rede.

Desde 2009, eu exercia o cargo de diretor da Casa Guilherme de Almeida, criada em 1979, por decreto governamental, como “museu biográfico e literário”; a convite do diretor executivo da Poiesis, Clovis Carvalho, passei a dirigir também a Casa Mário de Andrade e, depois, a Casa das Rosas, no mesmo ano de 2016. A criação da rede, que previa uma conexão das casas por meio de sua programação educativa e cultural, coroava uma sucessão de esforços bem-sucedidos, que: recuperaram a importância e o papel da Casa Guilherme de Almeida em nosso ambiente cultural, mediante o desenvolvimento de uma programação baseada na atuação do poeta modernista – que se encontrava praticamente esquecido – em diversos campos da cultura, dando-se ênfase à sua relevante contribuição para o segmento da tradução literária em nosso país; prosseguiram o desenvolvimento da Casa das Rosas como centro dedicado fundamentalmente à poesia e à literatura, valendo-se do papel central de Haroldo de Campos na vanguarda de meados do século XX e a importância de seu legado (incluindo-se a mencionada biblioteca do poeta, preservada no museu); e buscavam reidentificar a antiga residência do modernista Mário de Andrade com sua vida e sua obra, trazendo de volta à Casa a efetiva presença do escritor e de seu múltiplo legado.

Na ocasião do término do referido contrato, em 2021, o Termo de Referência relativo ao edital de concorrência pública para um novo período de gestão (de 1/5/2023 a 30/6/2028) – elaborado pela UPPM – não mais tratava o conjunto dos museus como Rede de Museus-Casas Literários (embora admitisse sua atuação interligada). Apresentado como “Termo de Referência para Elaboração de Proposta Técnica e Orçamentária para Gestão dos Museus-Casa”[1],  suas diretrizes propunham uma “redefinição do entendimento de rede para a gestão destes equipamentos”, e que o prosseguimento de uma “perspectiva de gestão de conjunto, como uma rede” favorecesse “o aperfeiçoamento de cada museu-casa, em especial quanto aos trabalhos técnico-metodológicos”; propunham, também, que se deveria  “compreender a ampliação de seus repertórios conceituais, patrimoniais e museológicos, de modo a contemplarem a produção literária e transcendê-la, considerando a atuação sociocultural das personalidades relacionadas a estes espaços (Ramos de Azevedo e Haroldo de Campos; Guilherme de Almeida e Mário de Andrade)”[2]. Alguns aspectos essenciais do referido Termo geraram o entendimento de que a intensa programação cultural dos museus (voltada essencialmente à literatura, mas que já incorporava outras áreas e linguagens a ela relacionadas) deveria ser reduzida, questionando-se, por exemplo, a existência de programas formativos continuados[3]. Entre esses encontrava-se o Programa Formativo para Tradutores Literários, da Casa Guilherme de Almeida, existente desde 2012[4], retirado da proposta da OS como uma das medidas que buscavam atender às diretrizes relacionadas ao novo edital (visando, evidentemente, às chances de vencer a concorrência). Na mencionada proposta, mantinha-se apenas o Programa “Patrimônio, Memória e Gestão Cultural”, criado na Casa Mário de Andrade em 2020 – não relacionado à literatura, mas a outro importante campo de ação de Mário – e, no segmento literário, o Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas (cujo amplo apelo contraindicava enfaticamente sua descontinuidade), embora se suprimisse o Centro de Apoio a Escritores do museu. O conjunto da proposta apresentada pela Poiesis – que, após um árduo e tumultuado processo de concorrência, saiu vitoriosa – era coerente com uma das principais decorrências do edital: a significativa redução da presença da literatura nos museus-casas ligados a escritores.

O mencionado Termo manteve, felizmente, a denominação oficial Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, o que implicava a continuidade da presença do escritor na Casa. As diretrizes de política cultural nele adotadas levaram à obrigatoriedade (justificável, diga-se) de também se desenvolverem, no museu, ações de pesquisa, formação e difusão relacionadas ao patrimônio arquitetônico que o imóvel representa, o que trouxe maior evidência a seu histórico de concepção e construção, ligado ao arquiteto Ramos de Azevedo[5]. O Termo adotava, no entanto, um conceito que havia sido anteriormente proposto no âmbito de nossa gestão das casas, e que já sustentava ações relativas ao imóvel como patrimônio histórico-arquitetônico: o da Casa das Rosas como um museu dedicado às transformações tanto artístico-culturais como urbanas e sociais de São Paulo, conceito esse que permitia a continuidade do cultivo da memória de Haroldo de Campos (expoente de um movimento de vanguarda – a poesia concreta – e, portanto, de transformação artística em nosso contexto) e a exploração dos aspectos de transformação urbana e social da qual o imóvel da Avenida Paulista é emblemático.

A equipe das áreas de atividades culturais e educativas da Casa, e eu, como diretor, fizemos grande esforço para equacionar as obrigações contratuais de modo a preservar ações relacionadas ao legado de Haroldo de Campos, dirigidas a diversos públicos. Mas as novas diretrizes também levaram a interpretações (equivocadas, no meu entendimento), inclusive no âmbito da OS, que desprivilegiavam a presença do poeta no museu, o que, segundo pude observar, culminou na gestão da diretora que me sucedeu, a museóloga Beatriz Henriques, durante a qual ocorreu a demissão de outros funcionários ligados à poesia e à literatura, caso do coordenador do Centro de Pesquisa e Referência da Casa das Rosas, Julio Mendonça.

A esse breve “depoimento”, realizado com o propósito de cultivo da memória, acrescentarei a apresentação de aspectos que considero relevantes acerca da tipologia de museus com a qual me familiarizei por meio de pesquisa teórica e da prática de gestão nos últimos quinze anos.

Um aspecto importante dos museus-casas, de modo geral, é o fundamento de sua identidade a partir dos fatores que determinaram a sua criação: frequentemente funcionam em antigas residências, muitas vezes motivados por personagens que a habitaram, cuja trajetória alcançara notoriedade suficiente para gerar o interesse – que pode ser circunstancial – de preservação de seu legado.

Outro aspecto fulcral do museu-casa são seus acervos – que devem ser adequadamente preservados, exibidos e passíveis de extroversão –, comumente advindos de coleções particulares, e aquilo que ele permite de percepção de conexões entre os elementos que os compõem e que geram uma determinada configuração de referências históricas, biográficas, artísticas e culturais, as quais podem servir não só para a preservação de memória, mas também como objeto de reflexão sobre modos de viver, de pensar e de criar próprios dos contextos em que são gerados, incluindo-se a sua necessária releitura crítica com base na visão de outra época, mas sem desconsiderar a óptica da situação de origem.

Um terceiro aspecto a se observar consistiria no panorama de possibilidades de vivência, educação e transmissão de valores culturais, a ser explorado como meio de superação dos limites físicos e temáticos do museu em si mesmo, abrindo-se para a formação de repertório em diversos segmentos e níveis de conhecimento, mas de modo a se manter o foco que sustenta a especificidade do museu-casa em questão. Atividades como cursos, debates, recitais e oficinas trazem uma dimensão imensurável de alcance do papel dessas instituições numa sociedade sempre carente de oportunidades de conhecimento e crescimento pessoal e coletivo.

No caso dos museus-casas que foram objeto do meu relato, as trajetórias dos escritores a eles associados, marcadas pela atividade de criação artística e pela atuação ampla em nossa cultura e sociedade, permitem, por si sós, diversificar os objetos de interesse a serem explorados, que possam corresponder a necessidades e expectativas que emergem de seu público. O fato de serem artistas da palavra preside o fundamento de seu interesse humanístico; sua sensibilidade, suas aptidões de linguagem e de pensamento alimentam a capacidade geradora de mudanças, bem como a valorização da nossa cultura e nossa memória. Assim, por exemplo, a perambulação entre diversas linguagens e modos de expressão do poeta Guilherme de Almeida permitiram ao museu que leva seu nome oferecer inúmeras atividades culturais e educativas baseadas nos campos em que atuou, como a própria arte poética, a tradução literária, o cinema, a música, o jornalismo literário e a crítica. Nos demais museus, a pluralidade de atuação dos escritores a eles associados também propiciou um programa de ações, voltado a diferentes públicos, em que tinham lugar a diversidade, o amplo alcance e a inclusão social.

Mas tudo, no entanto, sem se perder o fundamento que alimentou, durante todo o período em questão, a identidade e a especificidade desses museus: a literatura, arte ampla da palavra que, fundada no instrumento da comunicação cotidiana, pode elevar a percepção e a participação das pessoas a um modo de existência mais plena, criativa e atuante em seu meio. Por intermédio dela, como expressão da existência, da sociedade e da individualidade, todos os temas, incluindo-se as mais necessárias pautas contemporâneas, podem ser discutidos, refletidos, ao mesmo tempo em que a função comunicativa dos textos permite ampliar, renovadamente, os horizontes da visão e da compreensão do mundo.

Na minha perspectiva, ao se desconstruir hoje, parcial mas significativamente, a identidade desenvolvida nos referidos museus-casas como museus literários, dilui-se uma particularidade tipológica que orientou satisfatoriamente o seu papel cultural, deixando-os com feições e finalidades indefinidas. Tal desconstrução responde, penso, a alguns preceitos que constituem estigmas associados a uma visão generalizante acerca dos objetivos de um museu (assentada em referências técnicas e teóricas de teor restrito), pautando-o quase que exclusivamente com as temáticas hoje prevalecentes, que poderiam perfeitamente ser atendidas por meio dos recursos diferenciados do campo literário.

Chegamos ao momento de indicar o que entendo como preconceitos de ordem cultural: a literatura é por vezes considerada como atividade em princípio “elitista”, incapaz de atender aos interesses de uma instituição cultural (ou insuficiente para tanto) e incompatível com a inclusão de um público mais amplo, ao qual o universo literário não seria acessível ou lhe seria estranho: penso que tal concepção apenas ratifica consequências da desigualdade socioeconômica e retira da população possibilidades de acesso à informação e à formação num campo fundamental da comunicação humana, relacionada, de modos diversos, a todos os meios de expressão e de criatividade, além de constituir um instrumento indispensável para se alcançarem muitos objetivos pessoais de desenvolvimento e, mesmo, de subsistência num mundo cada vez mais competitivo.

Marcelo Tápia é poeta, ensaísta, tradutor e professor. Doutor em teoria literária e literatura comparada (FFLCH-USP) e pós-doutorado em letras clássicas. Dirigiu a Rede de Museus-Casas Literários do Governo do Estado de São Paulo. Autor de Refusões – poesia 2017-1982 (ed. Perspectiva, 2017) e Nékuia – um diálogo com os mortos (ed. Perspectiva, 2021).

Notas

[1] O Termo em questão foi publicado “conforme resolução SC nº 00004, de 31 de janeiro de 2023”, portanto já na gestão do atual Governo do Estado, em substituição ao publicado no período final do governo anterior, cujo processo fora anulado após a mudança de gestão na então Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
[2] Reproduzo, aqui, breves excertos que integram frases do referido documento, disponível para leitura on-line. Para os propósitos e as dimensões deste texto, não caberia a reprodução de trechos em sua totalidade. Note-se, na última frase citada, a inclusão de Ramos de Azevedo entre “as personalidades relacionadas” à Casa das Rosas.
[3] No parecer emitido pela Secretaria às propostas apresentadas na ocasião do edital anterior, cujo processo de concorrência foi anulado em seguida pela nova gestão, pôde-se ler, por exemplo, que no caso de tais programas haveria “maior alinhamento a ofertas próprias de atividades de extensão universitária do que ao fazer museal”, o que ilustra um conjunto de entendimentos conceituais acerca de museus.
[4] O programa, reconhecido como modelar em todo o país, supria lacunas de oportunidades a um significativo público interessado nessa área de conhecimento e atuação.
[5] Como já se mencionou, Ramos de Azevedo passou a ser, juntamente com Haroldo de Campos, uma das “personalidades” cuja contribuição deveria ser explorada pela Casa das Rosas.