Entre tintas, vernizes e facadas

Recentemente finalizado, o projeto de restauro Lacorpi reconstrói as obras vandalizadas nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, e também contribui na reparação da democracia e história cultural brasileira.

Por Aurélio Bianco Pena, Marcos Vinícius Ribeiro Ferreira e Rogério Bordini

Equipe de restauradoras milimetricamente trabalhando sobre a obra. (Crédito: Nauro Júnior/Iphan).

No dia 8 de janeiro de 2025 em Brasília, um conjunto de 20 obras de arte, agora restauradas, foram devolvidas à sociedade em cerimônia no Palácio do Planalto com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As peças foram destruídas durante os atos antidemocráticos de extremistas nas sedes dos Três Poderes, há exatos dois anos, em 8 de janeiro de 2023. O restauro envolveu pesquisadores e especialistas de diversas instituições públicas brasileiras e, não apenas recupera um importante acervo cultural-histórico brasileiro, mas evidencia esforços para reparação das estruturas democráticas. 

A manutenção e restauro de acervos é uma tarefa complexa e vagarosa que exige alto nível técnico, sobretudo quando os artefatos são únicos e valiosos para uma nação. Contudo, isso não impediu que pesquisadores de diversas instituições, entre elas, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), concluíssem o projeto Lacorpi: “Ação Patrimônio Cultural dos Palácios Presidenciais”, que visou à “valorização e promoção da democracia a partir da conservação-restauração dos bens culturais vandalizados do Palácio do Planalto”.

Restauração e democracia

Coordenada pelo Departamento de Museologia, Conservação e Restauro do Instituto de Ciências Humanas da UFPel, a equipe envolveu pesquisadores de áreas como artes, história e ciência dos materiais. O projeto Lacorpi durou cerca de 10 meses e custou pouco mais de R$2 milhões. Dentre as obras restauradas estão: o mural As mulatas, de Di Cavalcanti, esfaqueada sete vezes; a escultura em bronze O flautista, de Bruno Giorgi; e a escultura de madeira Galhos e sombras, de Frans Krajcberg.

O alto valor das obras demandou que os restauros ocorressem dentro do próprio Palácio da Alvorada. “O seguro dessas obras de arte inviabilizaria o projeto caso fossem levadas para Pelotas/RS”, conta Andréa Bachettini, professora da UFPel e coordenadora do projeto. 

Algumas obras, como O retrato do Duque de Caxias, de Oswaldo Teixeira, foram facilmente reparadas por terem sofrido poucos danos. Em outras, como As mulatas, as marcas das sete facadas desferidas foram mantidas no tecido de linho, na parte traseira da tela. “Não podíamos esconder essas marcas, essas sete perfurações. Optamos por fazer um reentelamento com tecido de poliéster e não esconder as cicatrizes por trás da obra”, afirma Bachettini.

Além do restauro, o projeto também realizou encontros acadêmicos, a exposição “8 de janeiro: restauração e democracia” no Iphan em 2024, nova catalogação das obras, um livro e documentário acerca do processo de restauro, além de projetos de educação patrimonial em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). 

Cicatrizes de um golpe

No dia 1º de janeiro de 2023, o presidente Lula foi empossado por representantes do povo brasileiro na rampa de acesso ao Palácio da Alvorada em Brasília. Uma semana depois o local seria tomado pelos atos golpistas. Cerca de 4 mil apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) marcharam do Quartel-General do Exército à Praça dos Três Poderes em uma tentativa de golpe militar para restituir o ex-presidente ao poder. O ato envolveu rompimento de barreiras de segurança e invasão ao Congresso Nacional, ao Palácio do Planalto e ao Supremo Tribunal Federal. Vidros quebrados, móveis destruídos, documentos rasgados e obras artísticas vandalizadas foram alguns dos rastros deixados pelos radicais.

Segundo Piero Leirner, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o ato antidemocrático vem sendo construído desde o desajuste institucional no pós-2013, iniciado por um conjunto de crises políticas, sociais e econômicas que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff (PT) entre 2015 e 2016 e em grande instabilidade política no país. “Após junho de 2013, houve uma espécie de janela de oportunidade, uma condição para que certos atores institucionais promovessem uma desorganização desses parâmetros em que a gente se encontra na democracia. (…) São atores com muito poder e, basicamente, vieram de dois cantos: o judiciário de um lado e os militares de outro. Ambos contribuíram de maneira problemática para esse desarranjo institucional”, comentou.

Leirner também reflete sobre a destruição do acervo nacional, estando ela associada a uma ideia antissistema. “Bolsonaro conseguiu captar na linguagem e na iconoclastia a impressão de que ele estaria batendo contra um establishment, quando, na verdade, isso é uma mega farsa. Como é possível um cara ser liberal e antissistêmico ao mesmo tempo?”. 

Tintas e vernizes

Uma faceta curiosa do restauro se relaciona ao estudo da constituição química dos materiais utilizados por artistas como Di Cavalcanti. Para isso, os pesquisadores analisaram pequeníssimas amostras de tinta, retiradas de forma sutil, sem danificar e alterar o patrimônio.

O professor do Departamento de Museologia, Conservação e Restauro da UFPel, Bruno Noremberg, doutor em ciência e engenharia de materiais, conta: “coletamos micro amostras de todas as obras de arte vandalizadas, e fizemos a investigação química dos componentes”. Isso permitiu o uso de produtos químicos e solventes mais adequados, aumentando a segurança do processo e facilitando o trabalho dos restauradores.

Para determinar a composição das tintas e vernizes, foram realizadas medidas de espectroscopia de infravermelho em conjunto a um microscópio. Esse equipamento faz parte da linha de luz Imbuia-micro, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). Mateus Ferrer, professor de engenharia de materiais da UFPel, colaborador de Noremberg, explica que “o objetivo era fazer o mapeamento químico da fração orgânica do quadro As mulatas, ou seja, identificar quais compostos orgânicos estavam presentes em cada camada que compõe a tela”. Ambos os professores destacam que a parceria com a linha de luz Imbuia foi fundamental, permitindo um grande entendimento sobre cada pincelada da obra. 

Lições do passado e o futuro do patrimônio

A relação da sociedade brasileira com o patrimônio cultural, material e imaterial é um tema que periodicamente ganha destaque, normalmente associado a  catástrofes, como os incêndios do Museu Nacional no Rio de Janeiro, em 2018, ou do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, em 2015. Essas tragédias revelam a precarização da área patrimonial: manutenções atrasadas, falta de recursos financeiros e descaso generalizado com os acervos, seja na manutenção, conservação ou no restauro.

Nesse contexto, o projeto Lacorpi destaca a importância dos acervos e de seus restauradores, mostrando que o patrimônio é parte do que compõe a identidade nacional. Para Andréa Bachettini, o projeto “é extremamente importante para a preservação da nossa memória, da nossa cultura, da nossa identidade”.

Sobre a política nacional de restauro, Bruno Nuremberg afirma que o Brasil precisa de mais “incentivos à arte como um todo, aos nossos artistas, ao legado que foi deixado e na proteção desse patrimônio”. Além disso, junto a Mateus Ferrer, enfatizam a necessidade da educação patrimonial em todos os âmbitos educacionais. “O grande problema é a falta de pertencimento das pessoas com o patrimônio. Ele é um bem que é nosso, que é do povo. Uma pessoa com essa sensação de pertencimento nunca daria sete facadas em uma obra de arte, pois ela é nossa”.

Aurélio Bianco Pena é mestre e bacharel em física, licenciado em ciências exatas com habilitação em física pela USP, atualmente é doutorando pelo Programa de pós-graduação Interunidades em Ensino de Ciências (PIEC/USP) trabalhando com exposições de ciências em museus e centros de ciências.

Marcos Vinícius Ribeiro Ferreira é licenciado ciências exatas com habilitações em química e física pela USP, especialista em jornalismo científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), e atualmente faz mestrado em ensino de ciências pelo Programa de pós-graduação Interunidades em Ensino de Ciências (PIEC/USP).

Rogério Bordini é doutor em artes visuais (Unicamp) e em interação humano-máquina (Helmut Schmidt University). Também é mestre em educação, graduado em educação musical (UFSCar) e especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).