Paula Drummond de Castro
Desencontro entre as escalas de análises dificulta a produção de conclusões consistentes
Que as mudanças climáticas afetam diretamente a diversidade e distribuição de animais e plantas já é sabido. Entretanto, o contrário, ou seja, a capacidade da fauna e flora atenuarem os efeitos das mudanças climáticas, ainda não pode ser confirmado. A principal dificuldade de avançar nessa afirmação decorre de uma questão de escalas. Os estudos de biodiversidade se preocupam em analisar elementos locais, tais como número de espécies, restrição ou alteração de um recurso, presença de predadores. Já os estudos de clima analisam variáveis em escalas quase continentais, envolvendo massas de ar, pressão atmosférica e correntes marítimas, dentre outros fatores. Isto dificulta o diálogo entre os estudos.
O que se pode confirmar é que a biodiversidade amortece, em escala local, os distúrbios causados pelas mudanças climáticas, mas não é fundamental para evitar os danos. Há, porém, a proteção dos ecossistemas e dos efeitos positivos decorrentes da sua conservação, como os chamados serviços ecossistêmicos – a manutenção dos recursos hídricos (proteção de nascentes e matas ciliares), controle de erosão, refúgio de polinizadores e controle de pragas, entre outros.
Essas conclusões estão no estudo publicado em março na revista britânica Bioscience, que buscou entender se a presença de mais espécies é uma vantagem para a adaptação perante as mudanças climáticas. Ele foi feito por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de British Columbia (Canadá).
A pesquisa analisou se a biodiversidade seria capaz de amenizar os efeitos de estressores climáticos (como temperatura e chuva), e não climáticos (aumento no aporte de nutrientes, salinidade, presença de um predador, restrição de um recurso). “O estressor é um impacto de longo prazo, que altera o ecossistema em doses homeopáticas. A temperatura da Terra, por exemplo, aumentará ao longo do século, e não abruptamente, em cinco anos”, expõe Vinicius Farjalla, da UFRJ, um dos autores do artigo. “A grande conclusão deste trabalho é que a biodiversidade é capaz de minimizar os impactos de distúrbios nos ecossistemas, mas que, em relação às mudanças climáticas, este efeito é menos pronunciado”, explica Aliny Pires, da UFRJ, coautora do estudo.
Os autores analisaram 91 artigos e 342 medidas de relações entre diversidade-estabilidade para conduzir uma metanálise, ou “análise das análises”. Segundo Pires, muito das diferenças encontradas está na escala de manipulação dos trabalhos, que tendem a ser extremamente localizados, usando um conjunto de espécies próprio da região, enquanto o clima muda numa escala espacial muito maior.
“A biodiversidade deve ser importante na escala maior, mas precisamos aumentar a escala espacial em que a biodiversidade é manipulada em estudos experimentais, para agregar as diferença entre as espécies, e viabilizar mecanismos que explicam o papel da biodiversidade no funcionamento dos ecossistemas”, salienta Pires.
Entender as relações entre biodiversidade e mudanças climáticas auxilia o manejo local da biodiversidade face às pressões já conhecidas das mudanças climáticas. Também pode ajudar a estabelecer políticas em escalas temporal e espacial maiores. De acordo com Pires, “Ao que tudo indica, a conservação da biodiversidade em larga escala pode reduzir os impactos das mudanças climáticas, mas faltam estudos na escala em que o clima atua para identificar potenciais efeitos da biodiversidade no clima, e acabamos subestimando seu papel”.
Mudanças climáticas afetam a biodiversidade
Segundo o Diagnóstico Regional das Américas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da IPBES (Intergovernamental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services), se o cenário não se alterar, em 2050, as mudanças climáticas serão o fator de maior impacto negativo na biodiversidade das Américas. Somadas a outros fatores, a redução média das populações de espécies por hectare poderá atingir 40%.
Embora os limites de alcance geográfico das espécies sejam dinâmicos e flutuem ao longo do tempo, as mudanças climáticas estão impulsionam essa redistribuição pelo mundo, levando a novos ecossistemas e comunidades ecológicas.
Para as espécies marinhas e de água doce, a primeira resposta às mudanças de clima é, muitas vezes, deslocar-se, para permanecer em condições ambientais preferenciais. No oceano, as espécies estão se movendo para águas mais frias, em maiores profundidades. No ambiente terrestre, as espécies seguem para latitudes mais frias e altitudes mais elevadas.
Como diferentes espécies respondem em taxas diferentes e em graus variados, as principais interações entre espécies são muitas vezes interrompidas e novas interações se desenvolvem. Essas novas condições podem resultar em novas comunidades bióticas e mudanças rápidas no funcionamento do ecossistema.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, os impactos projetados em decorrência das mudanças climáticas incluem: deslocamento de espécies; extinção de mais vulneráveis, com distribuições geográficas pontuais; reconstrução de ecossistemas, com novas faunas e floras, com a predominância de espécies que melhor se adaptam a diferentes locais, com as ervas daninhas.
Um estudo realizado em 2013 avaliou a resposta de 16.857 espécies de pássaros, anfíbios e corais, sendo considerado a pesquisa mais ampla da área. Além de medir a exposição das espécies às mudanças climáticas, o projeto incluiu as diferenças biológicas entre as espécies, o que pode aumentar significativamente ou reduzir sua vulnerabilidade perante as alterações climáticas de longo prazo. Foram consideradas três dimensões: sensibilidade, exposição e capacidade de adaptação.
Os resultados identificaram as espécies com maior vulnerabilidade relativa as mudanças climáticas e em que áreas geográficas estão concentradas. Constatou que 608-851 aves (6-9%), 670-933 anfíbios (11-15%) e 47-73 espécies de corais (6-9%) são altamente vulneráveis às mudanças climáticas e já estão classificadas como “ameaçadas de extinção” na Lista Vermelha da União Internacional de Conservação. A redução das emissões de gases de efeito estufa seria a única saída para reduzir as extinções impulsionadas pelas mudanças climáticas.
Outro aspecto importante a ser considerado na relação entre mudanças climáticas e redistribuição de espécies refere-se às doenças parasitárias transmitidas por vetores. A saúde humana também pode ser afetada por mudanças na distribuição e na virulência de patógenos transmitidos pelos animais, o que representam 70% das infecções emergentes, de acordo com estudo publicado na Science em março de 2017.
O deslocamento de mosquitos em resposta ao aquecimento global é uma ameaça para a saúde em muitos países. A malária, por exemplo, doença transmitida por mosquitos, é um risco para quase metade da população mundial, com mais de 210 milhões de casos registrados ao ano e 429 mil mortes.
Com o aquecimento global, espera-se que a malária atinja novas áreas, com a migração em direção aos pólos, e aumento da população de mosquitos Anopheles. A transmissão de malária relacionada ao clima pode resultar em epidemias devido à falta de imunidade entre os residentes locais e desafiará os sistemas de saúde em escalas nacionais e internacionais.
Para mitigar os efeitos sobre a biodiversidade em longo prazo, propõe-se aumentar a conectividade entre florestas, integrar mudanças climáticas em exercícios de planejamento, mitigar outras ameaças à biodiversidade (fragmentação, espécies invasoras, poluição), translocar espécies; aumentar a rede de reservas (tamanho e número) e manejar os entornos de áreas naturais.
Paula Drummond de Castro é formada em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em política científica e tecnológica (Unicamp). Pesquisadora associada do Geopi (Grupo de Estudos da Organização da Pesquisa e da Inovação). É aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp) e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).
Imagem de capa: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/