Por Susana Durão
Nas polícias brasileiras, não estar do mesmo lado em questões de trabalho significa não apenas percorrer a travessia dos dilemas éticos. Pode muito bem significar um desafio punível com a morte. A imaginação dos programas de direitos humanos nunca incorporou claramente esse dado. Nos próximos parágrafos exploro alguns contornos de um anseio social de transformar o policiamento no Brasil a partir da educação e “redenção” individual dos policiais. Mudanças estruturais, essas esperam a sua vez.
O policiamento no Brasil tem sido diagnosticado como produto de uma sociedade e um Estado violentos, frutos de um legado autoritário, inquisitorial e colonial. As polícias são instituições que matam em tempo de paz. Uma mesma informação é divulgada ano após ano: a polícia brasileira é campeã mundial em homicídios. Quase 16% dos homicídios registrados são executados por policiais. Mesmo que numa sociedade com altos índices de criminalidade, as polícias militar e civil são aparentemente parte do problema da segurança pública, não a solução. Em cada 100 crimes no Brasil, 90 não são resolvidos. Apenas 5% a 8% dos homicídios são julgados em tribunal. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), este é o país do mundo com a maior taxa de mortalidade com arma de fogo.
O sistema de justiça criminal parece estar despreparado para lidar com esses problemas. Para ainda piorar o cenário, as forças policiais brasileiras são conhecidas por praticar execuções extrajudiciais e por vezes orgulham-se de ter no seu seio “esquadrões da morte”. Não admira que entre os setores mais conservadores da sociedade seja entoada a frase “bandido bom é bandido morto”. Com apoio explícito ou implícito de governos dos estados e federal, unidades e grupos paramilitares, atuando no trabalho ou nas suas folgas, ajudam a manter viva a memória do governo militar (1964-1985). “A impunidade é a regra no Brasil”, as Nações Unidas avaliam. Sem surpresas, em 2016 a ONU simplesmente recomendou a abolição das polícias militares.
Chico Buarque ilustrou musicalmente esse tema em Acorda amor, de 1974, em plena ditadura militar. A canção descreve um assalto da polícia ao seu apartamento, levando-o, ironicamente, a chamar o ladrão – “chama o ladrão!” – para se proteger. Com a transição democrática, várias vozes da sociedade clamaram por um novo paradigma de respeito aos direitos humanos no Brasil. Identificar e inverter a “disjunção democrática” da polícia e da justiça, como escreveram Teresa Caldeira e James Holston, tornou-se uma meta para muitos intelectuais e militantes. Mas a confiança nas polícias de Estado nunca se efetivou.
Em 2016, depois do golpe parlamentar que expulsou a presidente Dilma Rousseff do Planalto, manifestações e protestos ocuparam as ruas das principais cidades do Brasil. As polícias militares responderam com uma força impressionante, voltando a ser o alvo das organizações de direitos humanos e cidadania. Do lado da esquerda, houve lamentos em relação a uma contradição expressa por policiais que se deixavam fotografar junto a sorridentes cidadãos nas ruas, vestidos com o verde e amarelo do Brasil, em movimentos pró-impeachment organizados pelo MBL (Movimento Brasil Livre).
Uma velha questão retorna nestes novos tempos: será a polícia governo ou governada? Para Max Weber, o quadro insular das burocracias policiais faz delas um estado dentro do Estado. Para Karl Marx, as polícias são o braço armado dos Estados e os ajudam a reproduzir a ordem social capitalista. A história brasileira recente complexifica as teorias. Desde 2013, com movimentos de insatisfação nas ruas, as polícias foram cooptadas pelos novos fenômenos políticos. Alguns defendem que a repressão policial, secularmente dirigida aos pobres, periféricos, camponeses e indígenas, tornou-se também um espetáculo eleitoral. Não é coincidência que no calor de passeatas e do movimento secundarista que ocupou escolas públicas de São Paulo em 2016, os candidatos aos governos do Rio de Janeiro e São Paulo tenham ganho por expressiva maioria as eleições logo após produzirem espetáculos de repressão policial.
Promotores e receptores (atormentados) de violência
Mesmo quando confrontados com tais cenários, especialistas e intelectuais não perdem o otimismo e se recusam a acreditar na anulação de décadas de trabalho para melhorar e reformar as polícias. Estes são os porta-vozes da PEC 51, uma proposta de mudança radical das polícias e da arquitetura da segurança pública. Antigo secretário de Segurança do primeiro governo Lula, Luiz Eduardo Soares é conhecido por encabeçar essa luta reformista, defendendo, já numa obra de 2006: “Segurança pública tem saída”. De acordo com Jacqueline Muniz, estudiosa de assuntos policiais e membro do poderoso think tank Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Não vale a pena gritar pelo fim da polícia militar”, como aconteceu nas manifestações “Fora Temer”. Segundo Muniz, o alvo é errado. A posição dos manifestantes de esquerda revela desconhecimento de um estudo realizado em 2014 pelo Centro de Pesquisas Jurídicas Aplicadas e pelo referido Fórum, onde 76% dos policiais de baixo escalão afirmam ser a favor de mudanças no paradigma militar da polícia. As demonstrações não deveriam ser contra a polícia, defende Muniz, mas pela restauração da democracia. Certo é que a polícia militar tornou-se um símbolo da política. A saída para Muniz, e muitos como ela, está em humanizar a polícia antes de mudar as estruturas militares, um passo intermediário que considera ser o mais realista.
Muniz é parte de um conjunto de atores acadêmicos militantes, que têm assumido posições importantes na defesa do que eu chamaria de conversão dos policiais a uma ética da virtude. Os policiais leem o que sobre eles é dito e escrito, defende. A ideia é que a advocacia por uma pedagogia humanitária pode trazer os policiais para perto dos intelectuais e, consequentemente, da sua transformação pessoal. Ricardo Balestreri, indicado recentemente para secretário de Segurança do estado de Goiás, acredita que grande parte do projeto reformista das polícias militares situa-se no treino e formação avançada. O treino pelos direitos humanos só é eficaz se os policiais forem considerados cidadãos. Como diz no livro Direitos humanos, coisa de polícia, de 1998, mais do que homo faber, os policiais são homo humanus. Vale lembrar que, entre 2005 e 2013, um imenso programa do governo federal, a Rede Nacional de Estudos em Segurança Pública (Renaesp), atraiu para o ensino superior policiais e outros profissionais da área: 140 edições de cursos de pós-graduação tiveram lugar em 25 unidades de ensino superior (público e privado) atingindo 5.600 discentes, a maioria da carreira policial.
Em suma, para se tornarem especialistas em segurança pública foi pedido aos policiais que reimaginassem o seu trabalho. Durante anos os intelectuais reiteraram que a sociedade deve, também ela, imaginar os policiais não apenas como agentes do direito, mas como sujeitos de direitos. No olho do furacão, os policiais foram tão permeáveis a metáforas de crise quanto as suas corporações. Uma ideia ganhou forma nas últimas décadas: dentro de cada policial reside um ser humano em sofrimento. O policial não tem apenas poder, ele é um ser atormentado. Como promotores e receptores de violência, os policiais passaram a ser percebidos como um locus de atuação e pedagogia. Programas de Estado e organizações não governamentais, através do vocabulário dos direitos humanos, artísticos ou religiosos promoveram, mesmo que simbolicamente, a imagem de que em cada um dos corpos há uma alma que necessita de cuidado e cura. Acreditou-se que a transformação individual, através de algum tipo de redenção e mimesis, pode ser o patamar principal para a reconversão da segurança pública em democracia.
Entre 2007 e 2009, acompanhei alguns movimentos emergentes que visavam educar moralmente os policiais. Em 2008, viajei com um grupo de 25 pessoas do Rio para Belo Horizonte para acompanhar a capacitação de 15 dias do projeto Juventude e Polícia. Este projeto teve apoio do CESeC mas foi desenvolvido sobretudo pelo grupo cultural Afroreggae, ONG que se expandiu enormemente nos anos 2000. Em 2009, voltei a viver no Rio e acompanhei durante cinco meses um outro movimento, em batalhões do centro da cidade: os policiais cristãos. Nessa altura emergiam os PMs em Cristo em São Paulo e a União dos Evangélicos da Polícia Militar no Rio de Janeiro. Os movimentos desenvolvem o tema da cultura e da espiritualidade como batalhas interiores dos policiais. É desse lugar que tematizam a humanidade e a questão dos direitos. Cada policial se coloca assim como um potencial educando, pela conversão “cultural”, pela aprendizagem da espiritualidade cristã, ou por ambas.
O Afroreggae é um grupo de ação social e de consumo cultural. Vende todo o tipo de produtos sociais e bens de consumo associados à violência de favela. Usando as metáforas da guerra para dar sentido à ação política, o grupo capitalizou sua popularidade remetendo sua origem para a chacina de Vigário Geral, que ocorreu em 1993. Foi em Vigário Geral que a ONG instalou a sua maior e mais importante sede. Também apoiando-se em metáforas militares, a ideia de batalha espiritual espalhou-se em vários círculos evangélicos e entrou pela porta da frente na polícia militar do Rio. Mais do que promover práticas de policiamento preventivo, esses movimentos aconselham os policiais a se protegerem, a si mesmos e aos seus familiares, da crise moral a que são permanentemente expostos no exercício da sua atividade. Todas as semanas, centenas de pedidos de oração anônimos são deixados na caixa do batalhão de Tiradentes. “Senhor, socorre-me em minha vida financeira e espiritual. Salva esta família valorosa que me deste”; “Te peço que ilumine meus caminhos e me livre do mal”, ou, simplesmente, “meu emprego”.
O Afroreggae, que é uma das ONGs mais midiáticas e espetacularizadas do Brasil, defende uma “tecnologia social” para a mudança de mentalidades, onde promove sínteses imagéticas da violência e da pobreza carioca. O grupo está em mais de oito favelas do Rio. O desenho do projeto Juventude e Polícia, um entre as dezenas de projetos do Afroreggae, parece inspirado nos processos de reconciliação e mediação em sociedades pós-conflito. Mas o pendor é claramente performático. Com um cronograma de seminários pedagógicos e oficinas artísticas, a ideia é colocar em convívio policiais e ex-bandidos. Manhãs em batalhões de polícia e tardes nas escolas pobres de periferia, os ambientes são culturalmente saturados de signos do Afroreggae, onde o tema central é a representação estética de policiais e bandidos felizes. Esta é uma espécie de alter-identidade performática pela paz. Invariavelmente, muitas das sessões de trabalho culminam num momento público de representação pedagógica: na frente de plateias com centenas de homens fardados ou estudantes de ensino médio, alguns jovens cariocas falam de como trocaram a sua identidade de traficantes pelo Afroreggae.
Se nos primeiros anos o projeto foi concebido como “invasão cultural dos batalhões”, pouco a pouco as escolas consideradas mais violentas, situadas em favelas de Belo Horizonte, foram incorporadas ao Juventude e Polícia. Afinal, vivia-se o auge dos tempos da pedagogia policial. Treinados pelos monitores para serem percurssionistas, cenógrafos, street-dancers, jogadores de basquete ou grafiteiros, policiais foram capacitados para se manter trabalhando em segundo turno oferecendo oficinas a estudantes das escolas-alvo: multiplicando a educação que recebiam. A responsabilidade pela manutenção do programa passou diretamente para as mãos da polícia militar de Minas Gerais. Mas não duraria muito mais tempo. A promessa de “quebrar as fronteiras dos estereótipos culturais”, como em entrevistas sempre defendeu o criador e mentor da ONG, José Junior, não se concretizou. Os estudantes da escola municipal Oswaldo Cruz e outras continuariam a ter os seus dias preenchidos pela presença de policiais “não convertidos”, guardas municipais e policiais militares fazendo revistas e rondas ostensivas nas escolas, com controle de câmeras de vigilância em todo o perímetro escolar e cerca elétrica isolando o estabelecimento da favela, realmente como um cenário de guerra.
Os soldados e sargentos “de Jesus” que conheci nos batalhões trabalhavam majoritariamente em tarefas administrativas. Desenvolviam táticas de autodefesa para reduzir não só a probabilidade de morrer como de matar. Até porque mesmo os “bandidos”, na ótica cristã, são seres em sofrimento ou possuídos. Marcelo, um inspector da polícia civil batista, não escaparia à pressão das ruas. Conheci-o em 2008 quando frequentava um curso de pós-graduação em segurança pública, um dos frutos do programa Renaesp, oferecido pela Universidade Federal Fluminense. Enquanto conversávamos numa sala vazia do campus, ele recebeu um telefonema que mudaria sua vida. O delegado, seu superior, ameaçava-o porque Marcelo se teria recusado a colaborar, fiquei depois a saber, num esquema de drogas que iria punir injustamente, com pena de prisão, uma prostituta e dois turistas. Era preciso melhorar as estatísticas da delegacia. Mas a sua fé não o deixava mentir. O telefonema deixou Marcelo com a sensação de que algo muito sério iria acontecer. Passou o resto da conversa a instruir-me sobre como divulgar “o seu caso” nas agências internacionais de direitos humanos, como a Human Watch e a ONU, caso fosse assassinado pelo seu superior. Mas a salvação espiritual e ética de Marcelo significaria a sua condenação institucional. Fiquei sempre em contato com ele. Muitas vezes conversámos por Skype enquanto eu vivi em Lisboa. Um ano depois, quando voltei ao Rio e o reencontrei, Marcelo contou-me que a punição se concretizou na sua transferência para uma delegacia remota, a centenas de quilômetros de sua casa. Foi quando decidiu abandonar a polícia civil e tentar outro modo de vida. Ambicionava ter uma vida acadêmica, mas percebeu ser impossível. Iria dedicar-se com o irmão ao comércio de pneus de automóveis. Nas polícias brasileiras, não estar do mesmo lado em questões de trabalho significa não apenas percorrer a travessia dos dilemas éticos. Pode muito bem significar, e todos o sabem, um desafio fratricida, punível com a morte. A imaginação dos programas de direitos humanos nunca incorporou claramente esse dado.
Polícia (ainda) não corrompida, polícia pacificadora
Não é exagerado concluir que movimentos pedagógicos e programas de formação de governo como os descritos abriram caminho a experiências de policiamento como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio. A secretaria de Segurança do estado acreditou que policiais novos, recrutas “não poluídos” pelas ruas, e ainda não corrompidos, seriam treinados como elementos pacificadores de favelas. Assim, foram sendo implementadas 38 UPPs em 220 favelas (entre as 763 que correspondem a 22% da população do Rio). Mais de 10 mil policiais foram atribuídos a áreas com um total de mais de um milhão e meio de habitantes. Apesar de inicialmente celebrados pela imediata redução da taxa de homicídios e da violência letal, rapidamente as UPPs colecionaram casos de atentados aos direitos humanos, sendo um dos mais midiatizados o assassinato do pedreiro Amarildo, na Rocinha, por policiais das UPPs. Com a conclusão dos Jogos Olímpicos, o afastamento do secretário que fez nascer as UPPs, Beltrame, num estado mergulhado em uma das maiores crises de gestão financeira da sua história, a experiência de policiamento anunciou o seu fim. Com ela, parece ter sucumbido a era pedagógico-humanitária que tomou como alvo os policiais, era que coincidiu com os governos Lula e Dilma.
UPPs, projetos culturais e movimentos evangélicos todos colocaram ao centro, de uma maneira ou de outra, o policial como sujeito de virtudes. Batalhas culturais e espirituais tornaram-se batalhas individuais. Esperou-se desses sujeitos a transformação institucional. Mas o caso de Marcelo ilustra como o desejo liberal por verdades éticas individuais pode ser repressivo. No seu caso, como no de muitos crentes que conheci, a navegação espiritual não necessariamente salva. Esta pode condenar os policiais ao silêncio, ao abandono, ou a uma tal acrobacia moral que o uso da força policial passa a se impor como crença espiritual. Os jovens ou policiais convertidos à alteridade pelos monitores do Afroreggae em geral não desenvolvem um sentido crítico mais amplo. A securitização das cidades e das periferias brasileiras não é percebida na sua relação direta com a violência. Pelo contrário, as suas metáforas são exploradas para fins midiáticos e comerciais, vistas como batalhas nunca findas. Durante um tempo, a crença na redenção e educação dos policiais parece ter sido um mantra da ação social e política. As mudanças estruturais, essas esperam ad eternum a sua vez.
Susana Durão é professora de antropologia e pesquisadora convidada do Pagu: Núcleo de Estudos de Gênero na Unicamp. O seu projeto mais recente é sobre economias da suspeita, segurança privada e crime no Brasil. Durante 15 anos pesquisou a polícia e o policiamento em Portugal. O seu livro mais recente é Esquadra de Polícia (Lisboa, 2016).