Por Carlos Orsi
Pedir a um autor que pague para trabalhar beira o escárnio. Claro, isso às vezes é inevitável, e todo profissional, em algum momento, se vê aplicando suas habilidades e perícias de modo voluntário, como um favor, numa emergência, para ajudar uma causa ou um amigo. Mas essas deveriam ser as exceções e não, como acontece com o ofício de escritor no Brasil, a regra. Publicar literatura no Brasil é uma atividade econômica de alto risco. O que não é um fato bruto, mas uma escolha historicamente construída, é a solução que o sistema literário brasileiro encontrou para o problema: descarregar esse risco sobre os ombros do autor.
Escrevo ficção profissionalmente – isto é, para mercados pagantes – desde 1991, aproximadamente (o primeiro conto pelo qual recebi o suficiente para comer no McDonald’s foi publicado em 1992). No entanto, há cerca de cinco anos, decidi que não produziria mais ficção original em língua portuguesa. Continuo a escrever para o mercado anglófono – minha publicação mais recente, como ficcionista, saiu numa revista americana em maio deste ano – mas não para o brasileiro. Por quê? Porque, aqui, esperam que eu trabalhe de graça, e ainda agradeça por isso.
Faz alguns anos, fui convidado a colaborar com uma publicação que estava sendo organizada por uma importante figura da cena literária brasileira. Os demais convidados eram outros autores brasileiros relevantes do meu campo (ficção científica, terror, fantasia, às vezes reunidos no guarda-chuva do “fantástico”), e o convite me fez sentir honrado e até um pouco envaidecido.
Mas, entre os “poréns” e “todavias” no pé do e-mail, encontrei as seguintes advertências: (1) o “convite” estava vinculado a um pagamento de algumas centenas de reais e (2) esse pagamento deveria ser feito dentro de um prazo determinado porque “ilustradores, diagramadores e revisores são profissionais que precisam ser remunerados”.
Solicitações de pagamento para publicação, que normalmente vêm embrulhadas em eufemismos do tipo “contribuição financeira para viabilizar a obra” ou “participação no investimento inicial”, não tinham, como até hoje ainda não têm, nada de excepcional ou surpreendente no cenário nacional.
Abaixo da ponta do iceberg, formada por autores consagrados ou grandes best-sellers (e, às vezes, estendendo-se até a alguns deles), o sistema editorial brasileiro opera, à larga, como uma enorme vanity press, termo pejorativo cunhado no mercado norte-americano em referência a obras publicadas mais para satisfazer vaidade (e morder o bolso) do autor do que por qualquer mérito intrínseco – o que não significa que essas obras não tenham mérito, claro.
Enfim, a vaquinha para viabilizar a obra não era surpresa. O que me lançou numa espiral de introspecção e desespero existencial foi a cláusula de justificativa: “ilustradores, diagramadores e revisores são profissionais que precisam e merecem ser remunerados”. Uma verdade cristalina, por certo. Aplica-se de faxineiros a CEOs, de barbeiros a prostitutas, de atores a jogadores de futebol. Mas e os escritores? São o quê, então?
Falando por mim mesmo: para produzir um conto de dez ou vinte páginas, normalmente leio três ou quatro livros, passo algumas tardes olhando para o teto (ou noites em claro) e depois uma semana no teclado. Isso tudo é trabalho. Custa esforço, tempo, dinheiro.
Minha reflexão mais aguda sobre o “ofício de escritor” data dessa época. Foi mais ou menos por aí, também, que encontrei o impagável vídeo em que Harlan Ellison (1934-2018) esbraveja contra a Warner Brothers, um dos maiores conglomerados de mídia do planeta, por ter a ousadia de lhe pedir uma colaboração gratuita. Ellison é um dos mais importantes autores norte-americanos do século passado, infelizmente ignorado pela maioria dos leitores e editores brasileiros. “Pay me motherfucker”, frase que resume sua fala, é algo que todo autor deveria ter estampado numa camiseta.
Quando se fala em “ofício” de escritor, a imagem que com maior probabilidade vem à mente é a de “ofício” como disciplina, rotina, exercício mental, inspiração, preparação, ritual, empenho e aplicação. Mas a palavra tem outro sentido – o de profissão, o exercício de perícias e habilidades específicas na produção de algo que tem valor e, ipso facto, faz jus à remuneração.
Essa questão – faz jus – é importante. Em condições normais, é injusto esperar que um profissional faça aquilo que treinou e se preparou para fazer, seja consertar uma pia, equilibrar um balancete ou produzir um romance, de graça. Pedir-lhe que pague para trabalhar, então, beira o escárnio. Claro, isso às vezes é inevitável, e todo profissional, em algum momento, se vê aplicando suas habilidades e perícias de modo voluntário, como um favor, numa emergência, para ajudar uma causa ou um amigo. Mas essas deveriam ser as exceções e não (como acontece com o ofício de escritor no Brasil) a regra.
É possível atribuir esse estado de coisas a um sem-número de razões, a maioria muito bem conhecida. O brasileiro é um povo que lê pouco, que está acostumado a receber conteúdo “de graça” (via rádio, TV aberta e, agora, redes sociais), que consegue encontrar desculpas as mais criativas para justificar o crime de pirataria, que tem uma absurda má vontade para comprar livros, sempre reclamando do custo, sendo que o preço médio do livro, no Brasil, corresponde a menos do que o que se gasta com meia dúzia de garrafas de cerveja num boteco, ou com um par de ingressos de cinema.
Dado esse fato bruto da realidade (cujas causas também podem ser investigadas: baixo nível educacional, currículos escolares inadequados etc.), publicar literatura no Brasil é uma atividade econômica de alto risco. O que não é um fato bruto, mas uma escolha historicamente construída, é a solução que o sistema literário brasileiro encontrou para o problema: descarregar esse risco sobre os ombros do autor.
Relembrando o e-mail citado acima: toda a cadeia de produção material da publicação – diagramação, ilustração, revisão – é “profissional” e requer remuneração. Ampliando para o processo mais geral de produção e consumo de um livro: todos os profissionais envolvidos, do artista que desenha a capa ao balconista da livraria, têm alguma expectativa concreta de remuneração por seu trabalho. Todos. Exceto o autor.
Mas o autor recebe royalties!, alguém pode dizer, referindo-se à porcentagem do preço de capa que, por tradição, cabe ao escritor. Mesmo supondo que o autor realmente receba o que está prometido no contrato (o que costuma ser mais difícil do que parece: mesmo grandes editoras não são muito religiosas na hora de prestar contas) isso faz dele não um profissional, mas um co-empresário, uma espécie de sócio minoritário do editor. Pagamento de royalty não é remuneração pelo trabalho, é socialização do risco. O trabalho em si já foi feito, e entregue, muito antes de o livro chegar ao mercado.
Mal comparando, remunerar um autor exclusivamente por royalties equivale a remunerar o arquiteto que projetou um bar com base numa porcentagem da venda de destilados.
E isso, quando há alguma promessa de remuneração: há editoras que pagam em exemplares impressos, e o autor que se vire para vendê-los; há editoras que apenas não pagam; há editoras que cobram. Em maior ou menor grau, há uma alocação assimétrica de riscos e recompensas, com o autor como para-raios final.
Em suas formas mais severas, essa assimetria simplesmente destrói qualquer incentivo que o editor poderia ter para promover ou, até mesmo, tentar vender o livro, e força o escritor a se transformar em homem de marketing. Voltando à comparação anterior, o arquiteto, se quiser colher os frutos de seu trabalho como projetista, terá de dobrar como bartender.
Há autores que aceitam passivamente esse estado de coisas, ou por não enxergar alternativa, ou porque consideram que a verdadeira remuneração é o “prazer da publicação”. Mas coisas que custam dinheiro, tempo, esforço, habilidade e se remuneram unicamente com “prazer” não são ofícios ou profissões. São hobbies. Ou vícios.
E a verdade é que não precisa ser assim: aqui mesmo no Brasil, atividades que, à primeira vista, têm ainda menos apelo popular que a literatura, como música de câmara ou o teatro, conseguem tratar profissionais como profissionais. Na Europa e nos Estados Unidos, existem publicações nanicas, mantidas por grupos com muito menos capital do que as sempre lacrimosas grandes editoras brasileiras, que fazem questão de remunerar seus autores no ato de aceitação da obra.
A canadense Mystery Weekly Magazine paga 20 dólares para o autor de cada conto que aceita. É pouco, é simbólico, mas denota um grau de respeito e de profissionalismo que quase inexiste por aqui.
No Brasil, a expressão “ofício de escritor” reveste-se de uma aura romântica que encobre muito diletantismo, amadorismo e, também, elitismo: não é à toa que a literatura brasileira “canônica” do século XX é, em boa parte, obra de membros de famílias ricas ou de funcionários públicos. Um ofício que paga só em “prazer” não está ao alcance de quem precisa se preocupar com o almoço do dia seguinte.
É preciso dissipar essa aura, o que passa por uma transformação na cultura de que é “normal” para o escritor produzir de graça, ou com base numa promessa hipócrita de remuneração futura que quase nunca se cumpre. O autor que se vê constrangido a arcar com uma parcela desproporcional dos custos e riscos da publicação faria melhor em assumi-los de vez, por exemplo migrando para uma plataforma digital.
Mesmo que “viver de literatura” continue a ser coisa de privilegiados, a adoção do pagamento como praxe teria efeitos psicológicos profundos: do lado do autor, saber que alguém aprecia e respeita o seu trabalho o suficiente para tirar o escorpião do bolso, antes mesmo de o primeiro exemplar sair da gráfica, é um tônico para a autoestima e um incentivo à qualidade.
Do lado de quem publica, o investimento prévio representa um incentivo extra para promover a obra e buscar meios criativos de vendê-la. E, aos olhos de todos, o ofício de escritor ganharia dignidade.
Carlos Orsi é escritor de ficção científica e editor-chefe da revista Questão de Ciência. Jornalista formado pela USP (1992), foi coordenador de divulgação científica dos Planetários de São Paulo, trabalhou no Grupo Estado por mais de 14 anos, cobrindo principalmente ciência, e na Unicamp, como repórter e editor das publicações Ensino Superior e Inovação (2011-13) e repórter especial e colunista do Jornal da Unicamp (2013-17). É autor dos livros Pura picaretagem (Editora LeYa, com Daniel Bezerra), O livro dos milagres (Vieira & Lent), Campo total, Guerra justa e Nômade, entre outros. Foi editor convidado do dossiê Ficção Científica da revista ComCiência (julho-agosto de 2017).