Sempre fui um aluno-cartógrafo. Tinha fascinação pelos mapas de todas as geografias. Pelos mapas TO, medievais, com os grandes continentes distribuídos, tais como se concebiam ─ Ásia, Europa, África ─, distribuídos pelo T e envolvidos no círculo do Mar Oceano; pelos mapas da Terra em disco, com bordas de precipícios, precipitando a imaginação nas profundezas profundas das águas; pelos desenhos imaginados, corrigidos e acomodados a cada aproximação provável do real; pelas cartas de navegação; pela evolução dos mapas; pelos navegantes; pela teoria da evolução das espécies; pela viagem de Vasco da Gama às Índias; pelos cartógrafos de Borges; pela cartografia de Marco Pólo apresentada a Kublai Khan no mapa das Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino.
Com papel de seda para decalcar os mapas copiados dos Atlas contendo os contornos do mundo, fui um disciplinado copista do conhecimento que se conhecia nos bancos do Grupo, do Ginásio e do Colégio, nas escolas públicas do estado de São Paulo.
O artesanato da cópia, a sofisticação dos traços e dos detalhes, a curva em W do Rio Grande, lá em cima, dividindo São Paulo de Minas, as cores das matas, dos mares, das montanhas, os relevos secos e acidentados das terras, de suas vidas e mineralidades, o verde das plantações, o adensamento urbano das costas litorâneas, dos litorais costeiros, o vazio da ocupação do solo, as erosões das margens e dos sentimentos.
A primeira vez que naveguei por uma carta de descobrimento, seguindo a rota minuciosamente poética da grande aventura da expedição de Vasco da Gama no estabelecimento do novo e essencial Caminho das Índias, desci a costa da África, contornei o Cabo das Tormentas e lá fui eu para Calecute no ritmo encantado das oitavas em decassílabos d’Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões.
Da Praça Santa Rita, em Sales Oliveira, perambulei pelas aléias do jardim, lendo a épica do descobrimento; nos bancos da praça vazia, descansei das lides da aventura do real e do maravilhoso; sentado, ou caminhando, desenhei com o compasso da leitura, a rota das caravelas que rasgaram oceanos e costuraram a língua portuguesa com o alinhavo da poesia. De Sales Oliveira, interior do estado de São Paulo, perto do Triângulo Mineiro, fiz o contorno de um mundo que já não existia, por ser historicamente passado, que não existe, por ser de ficção poética, e que existirá sempre pelas mesmas razões de sua não existência.
Em que parte dos oceanos da volta estaria situada na geografia do mundo a Ilha dos Amores, que, nos contos IX e X, acolhe, como prêmio concedido por Vênus, os navegadores, com as delícias de um paraíso mítico-pagão e místico-cristão? E a máquina do mundo apresentada pela ninfa Tétis a Vasco da Gama? E a Harmonia que ali se estabelece pela transcendência do Amor? E as desilusões do poeta com o destino da pátria e com o seu próprio destino?
Depois da viagem d’Os Lusíadas, nos bancos de jardim, da Praça Santa Rita, em Sales Oliveira, nunca mais, sem que ainda soubesse, deixei de perseguir o mapa que me levaria, anos depois, a encontrar-me com o encontro da poesia com a cartografia: Cantografia ─ O itinerário do carteiro cartógrafo é o título do primeiro livro, que publiquei em 1982.
Pelo lado da linguagem, com os estudos semânticos a que me dediquei, dediquei-me também às formas de representação e de apresentação do mundo, nela, dela no mundo, e de nós no mundo dela.
Nesse ponto do itinerário, encontrei as ruínas do mapa perfeito de que fala Borges em sua História Universal da Infâmia e escrevi meu primeiro ensaio sobre significação linguística e o sentido da linguagem. Chamei-o “A palavra envolvente” e nele, até hoje, fiquei enredado, como o marinheiro que enfrenta a fúria do gigante Adamastor e que depois do susto do Cabo das Tormentas passa a chamá-lo da Boa Esperança, que assim perdura.
“... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa duma Província ocupava uma Cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.”
Duas observações que poderiam ser sugeridas pelo texto, além de muitas outras que sua beleza expõe: a primeira relacionada com a representação dos fenômenos naturais e a segunda, com a natureza dos fenômenos da representação.
O conto de Borges, que “só cita” um texto de Suárez Miranda, de 1658, já se apresenta como uma representação de uma representação do século XVII, que na forma de uma alegoria, traz para o leitor o tema “Do rigor na ciência”.
Os séculos XVII e XVIII, que conheceram grandes transformações nas metodologias do conhecimento e no conhecimento metodológico do rigor do experimentalismo racionalista, viveram também o desenvolvimento acentuado das lógicas baseadas nas estruturas das línguas naturais e cujos produtos mais conhecidos são a Lógica e a Gramática de Port-Royal.
Nesses casos, a função principal da linguagem humana é a de representação do pensamento, que tem, por sua vez, a estrutura lógica de uma segunda linguagem, ela própria construída sobre o modelo de organização e funcionamento das línguas naturais. Quer dizer, no limite, que a linguagem, se é representação do pensamento, e se o pensamento tem a estrutura lógica da linguagem, então a linguagem representa a própria linguagem, abrindo uma vertigem de imagens, em espelho, em que o signo é representação de representação de representação e, assim, infinitamente.
Dessa tautologia a ciência precisa fugir e, pela criação do modelo teórico da simulação do fenômeno, projetar no objeto discreto, assim criado, as propriedades e leis capazes de explicar, e mesmo predizer, o fenômeno estudado.
Se o modelo teórico quiser reproduzir, em extensão, o fenômeno na sua ocorrência, o fracasso do propósito será inevitável, como ocorre com o Mapa do Império, que se faz ruína.
O conhecimento científico e o conhecimento poético, distintos nos métodos ─ um digital, outro analógico; um demonstrativo, outro associativo; um abstraindo conceitos e conceituando abstrações, outro tornando-os sensíveis em imagens concretas de aproximações ─ têm, contudo, em comum a formulação do mundo em formas de representação, seja por linguagens sensíveis, seja por imagens em demonstração.
Num caso e noutro, a representação tem de estar próxima e distante do fenômeno de modo que o mapa permita ver e prever a geografia sem que a geografia se confunda no mapa que a permitia.
A Cartografia tem muito desse ensinamento de tensão e equilíbrio entre a ciência e a poesia.
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