"Se
leio com prazer esta frase, esta história ou esta palavra,
é porque foram escritas no prazer"
(Roland
Barthes em O prazer do texto)
"Desculpe a emoção, a biblioteca está mesmo na minha alma". A frase ilustra uma vida imersa em mais de 50 mil volumes sobre diferentes temas. Gibis, discos, jornais, filmes e revistas, entre outros itens, permeiam o cotidiano de Luciana Gigliotti, hoje responsável pela Biblioteca Adir Gigliotti, em Campinas. A comoção é justificada: até o fim do ano é possível que a biblioteca feche as portas e que o acervo seja doado a uma instituição capaz de administrá-lo. Os custos de manutenção se tornaram impraticáveis para a família.
Desde 2005, Luciana cuida do acervo iniciado como coleção particular de seu pai, o juiz e poeta Alcy Gigliotti. Ela relata, com tristeza, a impossibilidade de continuar o trabalho do progenitor: " Muitas promessas são feitas todos os dias sobre a possibilidade de verba para manutenção e continuidade dos trabalhos. No entanto, até o momento, nada se concretizou. À família Gigliotti, mantenedora da associação, resta a inviabilidade econômica da perpetuação dos benefícios à comunidade. Existem várias instituições que se interessam pelo recebimento gratuito do acervo, no entanto, nada se concretiza. Sempre há a afirmativa de que um espaço está sendo construído para receber o acervo, o tempo vai passando e nada se conclui", desabafa.
Além do acervo, a Biblioteca Adir Gigliottti forma polos de leitura através da doação de livros a comunidades. Segundo Luciana, existe também um projeto pronto para implantação em escolas, creches, hospitais e abrigos, entre outros espaços, chamado Semeadores de Livros. "A ideia consiste em colocar livros em sacolas impermeáveis e pendurá-los em árvores para retirada da comunidade local e devolução após a leitura", explica Parte do acervo da Biblioteca Adir Gigliotti, em Campinas. Foto: Luciana Gigliotti
Assim como a Biblioteca Adir Gigliotti, mas em âmbito internacional, o projeto "Room to read" surgiu de iniciativa individual. A ideia partiu do antigo executivo da Microsoft, John Wood, que, em 1998, em uma viagem ao Nepal, foi convidado a conhecer uma escola local e ficou chocado ao perceber a escassez de livros. A viagem foi tão impactante que no ano seguinte John deixou seu emprego na Microsoft e, em 2000, surgia a Room to Read . A história é relatada no livro Saí da Microsoft para mudar o mundo (Sextante, 2007), em vídeo disponível no site The Nantucket Project, e em artigo assinado por Nicholas D. Kristof no New York Times, com versão traduzida divulgada pelo Estadão.
Em doze anos de atuação, a Room to Read ajudou a fundar 16.060 livrarias, a distribuir 13,3 milhões de livros e a construir 1.752 escolas em países em desenvolvimento. Os resultados podem ser conferidos no relatório anual de 2012, divulgado no site da entidade. O sucesso é tamanho que John Wood assumiu a alcunha de " Andrew Carnegie do mundo em desenvolvimento".
Pisa e índices de leitura no Brasil
No dia 3 de dezembro de 2013, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou os resultados da última edição do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). O programa avalia, a cada triênio, se os estudantes aos quinze anos adquiriram conhecimentos e habilidades essenciais para uma participação plena em sociedades modernas. Três áreas chaves são abordadas: leitura, matemática e ciências. Em 2009, quando o foco do exame foi leitura, o Brasil ficou em 53º lugar nesse quesito, em um total de 65 economias analisadas, atrás de outros países da América Latina, como Chile, Uruguai e Colômbia.
Na época, uma análise da revista Nova Escola demonstrou que o baixo índice de proficiência em leitura é possivelmente mais alarmante do que o resultado do Pisa atesta. A publicação aponta que seis em cada dez jovens de 15 anos ou não reúne condições para fazer a prova ou não é capaz de compreender textos relativamente simples. Nesse sentido, programas de incentivo à leitura são fundamentais para estimular a reversão dessas estatísticas.
Dois anos após a avaliação do Pisa, em 2011, o Ministério da Cultura lançou a campanha "Leia mais, seja mais", com o objetivo de tornar a leitura um hábito nacional e estimulá-la principalmente entre famílias das classes C, D e E, que concentram aproximadamente 40% da população brasileira e a maioria dos não leitores. Os dados são da pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", divulgada pelo Instituto Pró-Livro em 2012.
Para o levantamento, foi utilizada uma amostra de 5.012 entrevistas em 315 municípios de todos os estados brasileiros. Com relação à pergunta "O que gostam de fazer em seu tempo livre?", 85% dos entrevistados responderam que assistir televisão era a atividade preferida, seguida de escutar música ou rádio e descansar. A opção "ler (jornais, revistas, livros, textos na Internet)" aparece na 7ª colocação, com 28% de adesão dos entrevistados (era possível marcar mais de uma resposta na enquete), uma queda de 12% em relação à pesquisa de 2007. Os dados mostram, ainda, que a população brasileira é constituída de 50% de não leitores (pessoas que não leram nenhum livro nos últimos três meses, ainda que tenham lido nos últimos 12). Em 2007, essa porcentagem era de 45%. Entre os leitores que estavam lendo menos, 78% apontaram a falta de interesse como motivo.
Daniela Bunn, doutora em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina, questiona os critérios utilizados na análise do Instituto Pró-Livro. “Eu poderia muito bem me enquadrar nesses 50% de não leitores, pois quase tudo que li nos últimos três meses (relatórios, ensaios, artigos científicos, poemas, contos) não configuram um único livro. Ao mesmo tempo, por conta de minha profissão, li, somente nessa última semana, mais de sete livros: livros de literatura infantil, livros de poucas páginas, com muitas ilustrações. Afinal, qual é o volume da minha leitura? Como quantificar materiais tão distintos? A pesquisa questiona a leitura de livros e depois se desdobra em gêneros lidos. No geral, é muito relativo quantificar a leitura”, diz a professora que não se assusta com a informação de que a leitura de livros didáticos esteja entre as primeiras colocações nesse levantamento do Pró-Livro.
Ela lembra, todavia, que quem pouco lê tem mais dificuldade na escrita e, consequentemente, na interpretação de textos, como mostra a análise feita pela revista Nova Escola sobre o Pisa de 2009. “Se eu não sei direito o que a questão pede, dificilmente saberei dar uma boa resposta. A dificuldade de interpretação de enunciados é perceptível na escola. Os alunos se complicam com questões mais elaboradas. Isto é reflexo da falta de leitura, da falta de articulação de diferentes leituras. Os alunos têm dificuldades de perceber a intertextualidade, por exemplo, a rede de textos que compõem o que lemos, assistimos, ouvimos. Trabalho muito isso com meus alunos, tanto os do ensino fundamental como os da universidade, porque é uma forma de interpretar o mundo com mais destreza: músicas, imagens, propagandas, publicidades, tudo isso é permeado de intertextos e nem todos reconhecem. Ler é muito mais que decodificar o código, é saber, ao mesmo tempo, estabelecer ligações e interpretações”, ressalta Bunn.
A pesquisadora observa que os jovens leem muito atualmente, apesar de o conteúdo muitas vezes não ser condizente com as indicações da escola. “Os leitores também mudaram, são ávidos leitores e escritores de pequenos fragmentos” e ela questiona: “Qual é a qualidade e a possibilidade de articulação de conhecimentos operados por jovens que pouco leem?”
No ensaio "A leitura na escola primária brasileira: alguns elementos históricos", publicado no site do projeto Memória de Leitura, os professores Ana Maria de Oliveira Galvão e Antônio Augusto Gomes Batista, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) salientam que a formação de leitores no Brasil é uma tarefa difícil, uma vez que não se sabe que tipo de leitores se quer formar e com que finalidades. "A leitura é um ato que de tal modo faz parte de nosso dia a dia que acabamos acreditando ser algo 'natural', 'sempre igual' e que não necessitaria de qualquer problematização ou reflexão. Assim, formar leitores – tendemos a pensar – seria fazer com que nossos alunos e alunas sejam capazes de ler e ponto final", enfatizam os pesquisadores no texto.
Mas a questão não é tão simples. Daniela Bunn afirma que há vários níveis de leitura que acabam não sendo considerados. “Quando pensamos em leitura, pensamos logo em livros de literatura, isso configura o que chamamos de leitura literária, mas não devemos perder de vista as leituras do cotidiano: uma revista, um quadrinho, uma placa, um panfleto”, esclarece. Ela destaca, ainda, que, infelizmente, a maioria das pessoas não tem noção da importância do ato de ler para uma criança. “Se tivéssemos esta ideia presente no nosso cotidiano os níveis de leitura do Brasil seriam bem mais altos. Refiro-me mesmo a níveis, a diferentes tipos de leitura”. Para ela, programas de incentivo à leitura são importantes para estimular o gosto pela leitura. “Esses projetos assumem um papel importante ao lado da família e da escola, pois formar leitores tornou-se um desafio contínuo, quando, na verdade, deveria ser algo natural. Em sala de aula, por exemplo, percebemos facilmente a criança que lê e a que não lê, pois a aptidão para escrita e leitura é muito diferente. A criança que lê tem maior facilidade na articulação de suas ideias”, esclarece Bunn.
Seja através de iniciativas individuais, privadas ou governamentais, existem projetos e pessoas dispostas a fazer a diferença para melhorar os índices de leitura no Brasil espalhados pelas cinco regiões. Selecionamos alguns que vêm se destacando em nível local, regional e nacional.
Há dez anos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) desenvolve o projeto Arca das Letras, beneficiando famílias do campo, comunidades de pescadores, remanescentes de quilombos, indígenas e populações ribeirinhas. As bibliotecas são montadas em sedes de uso coletivo, como associações comunitárias, pontos de cultura e igrejas, ou nas casas dos agentes de leitura, que são escolhidos pela comunidade para o papel. O acervo inicial é composto de cerca de 200 livros, escolhidos de acordo com indicação e demanda das famílias atendidas. As obras ficam expostas em móveis-bibliotecas, as "arcas", fabricadas em MDA por meio de parcerias entre prefeituras e outras entidades.
Na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, Santa Catarina, a Barca dos Livros – Porto de Leituras, chama atenção pelo tamanho do acervo – até agora são 13 mil livros catalogados – e pelas ações inusitadas, como um passeio de barco na lagoa que acontece no segundo sábado de cada mês com música, leituras e narração de histórias e o projeto A Escola vai à Barca, que consiste em visitas de alunos, preferencialmente da rede pública, à biblioteca, com apresentação do acervo, narração e leitura de histórias e sugestões de leitura para alunos e professores da educação infantil, ensino fundamental e médio, Educação de Jovens e Adultos e Classes de Alfabetização. O espaço também promove saraus de histórias, grupos de conversação em idiomas estrangeiros, leituras coletivas voltadas ao público adulto, e encontros com autores. A Barca dos Livros promove passeios de barco mensais na Lagoa da Conceição, em Florianópolis (SC) com leituras, narração de histórias e música. Foto: Barca dos Livros.
Segundo Rober Corrêa , g estor do Ponto de Cultura Porto de Leitura da biblioteca, a maioria das pessoas chega à Barca dos Livros através de divulgação nas mídias sociais. “Quando a gente ficava no centrinho da lagoa, muitas pessoas conheciam o projeto passando pela rua. Temos muitos seguidores e um mailing grande. Além disso, mensalmente são distribuídos mil folhetos com a programação da Barca no comércio local, na universidade e na cooperativa de barqueiros”, explica Corrêa.
A biblioteca surgiu em 2007 por iniciativa da Sociedade Amantes da Leitura e hoje conta com mais de quatro mil leitores cadastrados. Por ano, o projeto atende a cerca de 20 mil pessoas, segundo as estatísticas disponibilizadas no site http://barcadoslivros.org/barca-dos-livros/estatisticas/ .
Embora não se disponha de estatísticas em relação aos índices de literacia antes e depois da Barca, Corrêa destaca como principais resultados o retorno do público e a manutenção da biblioteca. Para ele, o fato de os livros circularem bastante representa um sintoma positivo. “A gente busca criar uma cultura de biblioteca. No exterior, a biblioteca é bastante lembrada como espaço. No Brasil, o acesso a bens culturais é negligenciado e as bibliotecas normalmente não são lugares aconchegantes. Aqui a gente disponibiliza o acesso. Qualquer pessoa pode participar das nossas ações”, enfatiza o gestor do Ponto de Cultura.
Em 1999, o Instituto Nordeste Cidadania (Inec), com apoio do Banco do Nordeste, criou o projeto Leitura e Cidadania, uma iniciativa semelhante ao Room to Read, desenvolvida em comunidades em situação de vulnerabilidade social com acesso precário a livros, jogos educativos, internet e manifestações culturais
Implantação do Espaço de Leitura na Comunidade São Vicente, em Meruoca, interior do Ceará,no fim de outubro. Arquivo Inec.
A coordenadora de área social e capacitação do Inec, Nágela Costa, explica que na época da implementação, um quinto da população brasileira com idade superior a 15 anos não sabia ler nem escrever e, nas comunidades acompanhadas pelo instituto, os dados eram ainda mais chocantes: 50% da população acima de 30 anos era constituída de iletrados e crianças e adolescentes acabavam deixando a escola sem terminar os estudos. O objetivo inicial do projeto era montar espaços culturais e bibliotecas comunitárias em cinco comunidades do interior que já dispunham de escolas estruturadas.
Por ano, são atendidas 204 mil pessoas nos 85 espaços até agora implantados através de parcerias com instituições locais como escolas, associações, ONGs, cooperativas, entre outros. Os acervos iniciais são constituídos de 500 a mil livros e a maioria chega por meio de doações, de campanhas realizadas pelas comunidades e pelo Inec. Cada espaço é responsável pelo próprio controle e o acompanhamento é feito por relatórios mensais, ligações e visitas.
Segundo Nágela, a maior dificuldade é encontrar voluntários para o papel de facilitador do espaço, pois a maioria das comunidades, que são de baixa renda, não dispõe de recursos financeiros para pagamento.
Daniela Bunn concorda que a atividade voluntária é fundamental nesse tipo de ação, mas lembra que o incentivo financeiro para a compra de bons livros e para subsidiar a formação e a manutenção dos profissionais é também importante, não só vindo de instituições públicas, mas também de iniciativas privadas. Ela aponta como principais lacunas dos projetos de incentivo à leitura, atualmente existentes, a qualidade do material envolvido no processo e da formação dos agentes mediadores. “Não precisamos somente de boas ideias, bons voluntários, mas também de bons materiais”, diz a professora.
Para ela, o acesso a livros no Brasil ainda é caro e que esses projetos fazem o intermédio entre o leitor e o material, literário ou não. “ Sabemos da precariedade das bibliotecas escolares, da falta de possibilidades para adquirir constantemente livros ou mesmo da pouca importância que os pais dão para a leitura. Esses programas fornecem o contato com os livros e isso é muito peculiar, principalmente em comunidades mais carentes. O agente de leitura percebe o retorno de suas propostas e vê seu trabalho e empenho consolidado ao ver as crianças lendo, é uma sensação de dever cumprido, é muito gratificante”, diz ela.
Bunn reconhece que a tarefa não é fácil, e que talvez não atinja ainda o número esperado, mas ressalta que uma vez que o leitor é conquistado por uma boa leitura, dificilmente será perdido e ele próprio se torna um novo agente de leitura. “ Essas atividades de fomento à leitura proporcionam a descoberta de novos mundos, não só imaginários, mas reais, mundos de maior delicadeza, sensibilidade e interação. A criança assim aguça sua percepção do texto, da imagem e também do mundo à sua volta. Tais iniciativas talvez não mudem a vida das pessoas, mas certamente mudam a percepção das coisas e deixam as pessoas mais abertas e é aí que elas mesmas mudam”, finaliza a professora.
A Carlos Drummond de Andrade é atribuída a seguinte frase: "A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas, por incrível que pareça, a quase totalidade das pessoas não sente esta sede". Dessa forma, é preciso que Gigliottis, arcas e barcas se multipliquem e continuem a estimular a formação de leitores sedentos pelo país.
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