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Reportagem
Dar à luz sem sentir dor
Por Carolina Cantarino
10/05/2007

A anestesia obstétrica é um assunto polêmico desde suas primeiras utilizações ainda no século XIX. Polêmico porque associado a uma dor tida como única e diferente de todas as outras: a dor do parto. Na atualidade, uma série de movimentos sociais, baseados na idéia da humanização do parto, lutam contra os elevados índices de cesáreas realizadas no mundo todo e defendem o parto vaginal, além de suas modalidades alternativas (parto de cócocas, parto na água). É nessa seara – o parto “natural” - que a anestesia gera controvérsias: a dor é inerente ao parto? É necessário sofrê-la? Alguns rejeitam o uso da anestesia durante o trabalho de parto e o parto vaginal. Para outros, a humanização do parto pode significar alívio da dor através da administração da anestesia peridural.

“O certo é que, uma boa experiência de parto significa, dentre outras coisas, lidar com a dor normal inerente ao processo de abertura do cólo do útero e aliviar ou eliminar as dores desnecessárias, provenientes de tensões, medos, ambientes impróprios, manobras médicas discutíveis ou presença de pessoas indesejáveis”, definem as Amigas do Parto, site criado para tratar da assistência ao parto, que integra uma rede formada por uma série de outras iniciativas semelhantes como Parto Natural, Nosso Parto, Rehuna, Mães Ponderadas, etc.

Primórdios da polêmica

A utilização da anestesia durante o parto normal é controversa desde sua origem. A história da medicina registra que a primeira aplicação anestésica durante um parto normal foi realizada pelo médico inglês James Young Simpson em 1847. Segundo Donald Caton, professor do Departamento de Anestesiologia da Universidade da Flórida, controvérsias surgiram não só por razões religiosas mas porque não havia consenso entre os médicos sobre a segurança do procedimento, baseado na inalação de éter sulfúrico. Eles temiam os possíveis efeitos do éter sobre a criança, sobre as contrações uterinas (que, diminuídas, poderiam prejudicar o andamento do trabalho de parto) e a ocorrência de hemorragias e infecção.

Em artigo publicado no International Journal of Obstetric Anesthesia, Caton lembra que, a despeito da resistência no interior da medicina, a prática da anestesia durante o parto normal acabou sendo adotada, principalmente, pelas mulheres da elite inglesa. A própria rainha Vitória utilizou a anestesia em seu oitavo parto, realizado em 1853. O incipiente movimento feminista, que incluía na sua pauta de reivindicações, além do direito ao voto, maiores cuidados durante o parto (incluindo-se, vale lembrar, a hospitalização, já que, até então, o parto acontecia em casa e era realizado por parteiras), abraçou o uso da anestesia como sinal de aperfeiçoamento e melhoria nos cuidados médicos.

A medicalização do parto foi ganhando intensidade. No período entre-guerras, além da anestesia, práticas como o fórceps e a episiotomia (corte no períneo) eram rotineiras nos hospitais, assim como o uso de analgésicos e tranqüilizantes durante o trabalho de parto. “Depois da Segunda Guerra Mundial, contudo, o público desenvolveu uma crescente descrença em relação a procedimentos médicos invasivos e drogas associadas a problemas congênitos como o dietilstibestrol, a talidomida e a radiação iônica”, lembra Canon. Nesse contexto é que o método de outro médico britânico começa a ganhar espaço: em 1954, Grantly Dick-Read publica o livro Childbirth without fear (Nascimento sem medo) e passa a defender a realização de partos naturais sem qualquer anestesia.

Mas o que seria um “parto natural”? Segundo Dick-Read, do ponto de vista fisiológico a dor não pode ser considerada como “natural” ou constitutiva do parto. Segundo ele, as “mulheres primitivas” não sofriam durante o parto. A dor que as mulheres ocidentais costumam experimentar seria devido ao medo e à própria influência judaico-cristã da cultura, que associa o sexo ao pecado e, assim, a dor do nascimento à punição. Esse quadro de medo e ansiedade é que ativaria, segundo Dick-Read, reações nervosas, provocando o aumento das contrações uterinas e da dor.

“Como Simpson, Dick-Read apareceu diretamente para o público, sobre quem ele teve maior influência. Como Simpson, ele teve bem menos impacto entre os médicos”, afirma Caton, ao lembrar que muitos deles questionaram as bases científicas de sua teoria. Um dos que a contestaram foi o médico francês Fernand Lamaze que, a partir de técnicas baseadas na respiração e no relaxamento aprendidas com obstetras soviéticos, também defendia a realização do parto natural. Dick-Read, por sua vez, acusava Lamaze de ter roubados suas idéias e as distorcido.

A contenda entre os dois obstetras tornou-se, então, pública e, no contexto da Guerra Fria, a rivalidade entre o método inglês e o método russo extrapolou para o campo da política: em 1957, o Papa Pio XII resolve arbitrar a disputa e faz um discurso sobre o parto natural. Ele afirma que a dor está associada ao parto desde tempos imemoriais e que a Igreja não apresenta nenhuma objeção ao uso da anestesia. Pio XII contraria, assim, duas posições defendidas por Dick-Read, e diz que, pessoalmente, nota pouca diferença entre o método do médico inglês e o de Lamaze. Mas, por fim, afirma que, para as gestantes comprometidas com os valores cristãos, o melhor método é o inglês, por “ser menos materialista”.

Anestesia e humanização do parto

Feministas do século XIX lutaram pela extensão do uso da anestesia na obstetrícia numa época em que os médicos temiam seus possíveis efeitos durante o trabalho de parto e o parto vaginal. Um século depois, com novas técnicas e procedimentos anestésicos, muitas mulheres mudaram suas opiniões sobre o uso dessas drogas.

Ativistas defensoras do parto natural não abordam a questão da anestesia obstétrica e seus efeitos como um problema exclusivamente médico. “Por exemplo, elas não estão interessadas nos efeitos da anestesia no metabolismo do oxigênio do neonato ou na porcentagem de drogas que atravessam a placenta, alguns do problemas que concernem aos clínicos. Elas estão interessadas nos aspectos pessoais e sociais do parto: nos modos como a experiência da mulher durante o parto pode afetar as interações subsequentes com a família”, lembra Donald Caton, o que traz desafios para a própria relação entre médicos e parturientes.

A humanização do parto é tida, geralmente, pelos profissionais de saúde como sinônimo de acesso a certos procedimentos – como a própria anestesia de parto normal – antes restritos às pacientes dos hospitais e maternidades privados. A humanização, assim, passa a ser vista como acesso à anestesia peridural. A anestesia é legalmente prevista por portaria do Ministério da Saúde desde 1998 e deve ser paga pelo SUS. Mas, segundo Carmen Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, “na prática a anestesia é inviabilizada pois o pagamento do procedimento 'parto' foi aumentado de valor, sem incluir honorários específicos para o anestesista”.

Diniz afirma que essa associação da anestesia peridural com a humanização do parto diz respeito à própria tradição hipocrática da medicina que, baseada na idéia de beneficência, vê a aplicação da anestesia como uma defesa das mulheres e de seu direito de não sentir dor. A assistência ao parto sem anestesia é associada à pobreza técnica do médico e à carência de recursos do hospital, que tem a obrigação de oferecer anestesia a todas as suas pacientes. “Então, a gente praticamente só conta com anestesista quando é cesárea. Raramente fazemos uma peridural humanitária, quando a paciente, às vezes uma adolescente, está muito descompensada. Já no consultório, fazemos analgesia em praticamente 100% dos partos vaginais”, afirma um médico entrevistado por Diniz.

A pesquisadora lembra que a dor do parto muitas vezes é amplificada por rotinas médicas como a imobilização, a manobra de Kristeller (pressão feita sobre o estômago supostamente para auxiliar o nascimento) e a episiotomia, entre outras práticas clínicas. Sendo assim, a experiência do parto, tanto para os profissionais de saúde como para a parturiente, é muito diferente com e sem a aplicação da anestesia peridural. “E suportar a dor da paciente, provocada pelos procedimentos que ele médico pratica, pode ser uma experiência muito penosa também para o profissional. A ponto de, em um estudo recente, a disponibilidade da anestesia peridural ser considerada pelos médicos o fator mais importante na lista de boas condições de trabalho do obstetra”, lembra Diniz, num artigo publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva.

Disputa pela descoberta da anestesia

A primeira modalidade de anestesia com aplicação mais recorrente na medicina obstétrica foi a anestesia inalatória. Drogas como a morfina foram utilizadas com a intenção de promover um apagamento da experiência do parto, associado, então, a muito sofrimento e violência para a mulher. As mulheres davam à luz completamente inconscientes. Muitas eram amarradas às camas, pois sob efeito sedativo, se debatiam. Na década de 1920, Fernando Magalhães, considerado o pai da obstetrícia brasileira, foi um dos adeptos do chamado parto inconsciente.

A polêmica aplicação da anestesia obstétrica confunde-se, assim, com a própria história da anestesia. A descoberta da anestesia inalatória é oficialmente atribuída a William Thomas Green Morton, estudante da Faculdade de Medicina de Harvard que, em 1846, demonstrou publicamente o uso do éter sulfúrico como anestesia geral para a cirurgia. Quatro anos antes de Morton, Crawford Williamson Long já havia realizado pequenas cirurgias e partos com a utilização da inalação de éter como anestésico.

Antes de Long, Paracelso (1540) e Faraday (1818), dentre outros, já haviam observado a ação anestésica do éter. Mas nenhum deles o havia utilizado durante um ato cirúrgico. “Com o crescente conhecimento da fisiologia respiratória e a descoberta de novos gases e vapores, abriu-se caminho para o uso da via inalatória para a administração de drogas. Apesar de, nesse tempo, já se conhecerem relatos de injeções de drogas, sangue e cristalóide por via venosa em animais, a agulha oca ainda não havia sido inventada”, lembram Ricardo Maia e Cláudia Fernandes, em artigo sobre o surgimento da anestesia inalatória.

A inalação de óxido nitroso, conhecido como gás hilariante, foi um entretenimento circence comum no início do século XIX durante as chamadas laughing gas parties. Horace Wells, um dentista norte-americano, ao participar de uma dessas apresentações, notou que um dos participantes havia ferido a perna, mas, sob o efeito do gás, não sentia dor. Contatou o dono do circo e realizou experiências, em 1844, em seu consultório, com o óxido nitroso, outro método inalatório que também passou a ser utilizado.

Diante de tantas descobertas, quase simultâneas, sobre a anestesia inalatória, a prioridade da descoberta passou a ser disputada entre Long, Wells, Morton e seu professor em Harvard, Jackson, que também entrou na briga, que passou a ser arbitrada pelo Congresso americano. Existiram outras controvérsias. Apesar de comprovado os efeitos anestésicos do éter, Long, por exemplo, interrompeu suas experiências ao sofrer a perseguição dos moradores da pequena cidade onde morava (no estado da Geórgia), que consideravam o éter como uma “droga diabólica”. Privadamente, Long prosseguiu e administrou éter à sua esposa durante o seu segundo parto em 1845. É, por isso, considerado também um dos precursores da anestesia obstétrica.