A medicina de viagem surgiu nos países desenvolvidos em razão do adoecimento de indivíduos que se deslocavam para áreas em desenvolvimento. Era preciso, no retorno desses viajantes, saber diagnosticar e tratar não só os casos de diarreia, como também as doenças exóticas e raras desses países, tais como malária, febre amarela, encefalite japonesa, entre outras. Em decorrência dessa característica inicial estava próxima da chamada medicina tropical, área do conhecimento de muitas dessas doenças que acometiam os viajantes que se dirigiam para áreas em desenvolvimento do mundo.
Na segunda metade do século XX, a medicina de viagem se consolida, impulsionada pelo grande aumento dos deslocamentos humanos, em razão do aprimoramento técnico dos meios de transporte e ampliação das condições de acesso aos mesmos. Essa consolidação se deu por meio de publicações científicas voltadas para o tema e da criação de organizações nacionais e internacionais, congregando os interessados no assunto.
Passa a ficar claro que esse novo campo de interesse da medicina não se restringia ao estudo das doenças que acometiam os viajantes que se deslocavam de áreas desenvolvidas para áreas em desenvolvimento. Novos enfoques, além das doenças infectocontagiosas, passaram a ser percebidos, como, por exemplo, os distúrbios de coagulação que podem ocorrer em viagens de longa distância ou as necessidades de orientações especiais para viajantes que se dirigem a regiões com diferentes condições de pressão atmosférica.
A prática da medicina de viagem se dissemina pelo mundo e desde o final do século XX está presente na América Latina, inclusive no Brasil. O primeiro serviço brasileiro especializado no atendimento de viajantes surgiu em 1997 – o Centro de Informação em Saúde para Viajantes (Cives) – criado pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro 1. No início dos anos 2000 são criados os dois primeiros serviços de medicina de viagem do estado de São Paulo. Primeiramente no Instituto de Infectologia Emílio Ribas e, em seguida, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A importância desse novo campo da medicina fica vez mais evidente quando se analisa alguns recentes agravos à saúde humana. Em fins de 2002 e 2003 uma doença respiratória grave, posteriormente identificada como causada por um coronavírus, se disseminou a partir da Ásia, atingindo o Canadá em curto espaço de tempo 2. O deslocamento de indivíduos, ou seja, viajantes, na disseminação desta síndrome respiratória aguda grave conhecida pela sigla em inglês SARS, foi fundamental. Para contenção da epidemia, entre outras medidas, foram adotadas restrições de viagem a locais onde estavam ocorrendo casos.
A transmissão do sarampo é outro exemplo da importância da medicina de viagem. Só que agora a situação se inverte: são países em desenvolvimento que temem a reintrodução do vírus, trazido por viajantes provenientes de países desenvolvidos. Em 2013 houve expressiva circulação do vírus do sarampo na Alemanha, Itália, Reino Unido, Holanda e Romênia 3. No Brasil, desde o início dos anos 2000, não eram registrados casos autóctones de sarampo, só casos esporádicos em viajantes. Em 2013, foram notificados vários casos principalmente em Pernambuco. Em 2014 vêm ocorrendo casos predominantemente no Ceará 4, ambos estados com grande fluxo de turistas. Atualmente, com a ocorrência dos casos de ebola, a importância do viajante como disseminador da doença fica evidente.
A medicina de viagem não se limita ao diagnóstico e tratamento de “doenças exóticas”. Um de seus aspectos mais importantes é a prevenção de agravos à saúde do viajante. Por isso a importância das consultas de orientação pré-viagem, em que se enfoca principalmente a prevenção de doenças transmitidas por água e alimentos, de doenças transmitidas por vetores, de acidentes causados por animais, de doenças sexualmente transmissíveis, além de cuidados em viagens de longa duração e aspectos relacionados à segurança nos locais de destino. Nessa orientação pré-viagem as imunizações têm papel de relevância.
A imunização do viajante tem dois importantes objetivos: proteção individual e proteção coletiva, impedindo que ele seja fonte de introdução ou reintrodução de doenças previníveis por vacinas. Os viajantes devem estar com as vacinas de rotina, indicadas para sua faixa etária, atualizadas. Além disso, dependendo do local de destino, das condições e duração da viagem, do tipo de alojamento e das condições de saúde, vacinas adicionais podem ser indicadas. Quando, frequentemente, viajantes interrogam – “vou para tal lugar, que vacina devo tomar?” – esclarecemos que não só o local de destino, mas todas as situações anteriormente citadas devem ser consideradas. Sendo assim, viajantes que se dirigem para um mesmo local podem ter diferentes indicações de vacinação, dependendo das condições da viagem e do indivíduo. Algumas vacinas são administradas em esquemas de mais de uma dose, daí a importância da consulta de orientação com antecedência.
O atendimento ao viajante que retorna com sinais e sintomas de doença, além de diagnosticar e tratar o indivíduo, é importante, em termos de saúde pública, como instrumento de vigilância da introdução de agravos na região. Os primeiros casos importados de infecção pelo vírus chi kungunya ocorreram em viajantes europeus, e o primeiro caso de transmissão autóctone em região de clima temperado ocorreu em 2007, na Itália, a partir de caso índice proveniente da Índia 5. Chaves e colaboradores 6, em 2012, ao descreverem dois casos em brasileiros, já chamavam a atenção para os viajantes como sentinela da febre de chikungunya no Brasil. Recentemente, os primeiros casos autóctones de febre de chikungunya têm sido diagnosticados no Brasil.
Outro aspecto importante para ser salientado é que viajante é todo indivíduo que se desloca, em viagens de turismo, nacional ou internacional, em visita à casa de parentes, em viagem de trabalho e em deslocamentos condicionados por circunstâncias adversas, como no caso de refugiados.
Em tese de doutorado, defendida em 2014, Tânia Chaves 7 escreve: “A medicina de viagem, nova especialidade multidisciplinar, surgiu em resposta ao crescente e rápido deslocamento populacional que vem sendo observado em todo mundo. Esta nova área de atuação médica pode ser sentinela de agravos disseminados por viajantes, de importância em saúde pública. Contextualizar sua prática em países em desenvolvimento ainda é um desafio”.
Os serviços brasileiros de medicina de viagem, particularmente os serviços públicos, ligados a instituições de ensino, têm um papel importante na divulgação e na consolidação de ações à saúde do viajante, e podem contribuir para o estabelecimento de diretrizes em políticas de saúde pública na área de medicina de viagem.
Marta Heloisa Lopes é professora associada do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP
Karina Takesaki Miyaji é médica responsável pelo Ambulatório dos Viajantes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
REFERÊNCIAS
1. Igreja, R.P. “ Travel medicine: a new field of work for the specialistin infectious and parasitic diseases”. Rev Soc Bras Med Trop. 2003;36(4):539-40.
2. McIntosh K. & Perlman S. “Coronaviruses, including severe acute respiratory syndrome (SARS)-associated coronavirus”. In: Mandell, Douglas, and Bennett’s Principles and practice of infectious diseases. Seventh edition. Elsevier. Philadelphia, USA; 2010.p.2187-2199.
3. ECDC: “Measles and rubella monitoring report”. October, 2013 (07 Jan 2014) Disponível em: ecdc.europa.eu
4. CVE. SESSP. Disponível em: ftp://ftp.cve.saude.sp.gov.br/doc_tec/RESP/2014/SARAMPO14_ALERTA25fev.pdf
5. Chen, L.H.; Wilson, M.E. “ Dengue and chikungunya infections in travelers”. Curr Opin Infect Dis. 2010, 23:438-444.
6. Chaves, T.S.S.; Pellini, A.C.G.; Mascheretti, M.; Jahnel, M.T.; Ribeiro, A.F.; Rodrigues, S.G.; Vasconcelos, P.F.; Boulos, M. “ Travelers as sentinels for chikungunya fever”.Emerg Infect Dis 2012, 18(3):529-30.
7. Chaves, T.S.S. “ A participação de um serviço público na atenção e implementação de ações à saúde do viajante no Brasil”. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 2014.
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