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Artigo |
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A observação de eclipses totais do Sol no Brasil |
Por Christina Helena Barboza
10/08/2007
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Eclipses totais do Sol são fenômenos naturais extraordinários, no duplo sentido do termo. De um lado, são fenômenos raros. Isto porque o plano da órbita da Lua possui uma inclinação de cerca de 5º com relação ao plano da eclíptica, isto é, o plano da órbita aparente do Sol; para complicar, os movimentos de translação da Lua e da Terra não são uniformes, mas apresentam pequenas variações perceptíveis ao longo dos séculos. Com isso, a condição necessária para que ocorra um eclipse solar – o alinhamento exato entre o Sol, a Lua e a Terra – se repete segundo um calendário próprio. Por outro lado, tudo indica que os eclipses solares proporcionam um espetáculo impressionante àqueles que têm o privilégio de testemunhá-los. Assim, é comum relatos desses espectadores privilegiados descreverem o progressivo obscurecimento do céu que ocorre durante os eclipses totais comparando-o à aproximação de uma pesada e silenciosa tempestade. Outros referem-se à coroa solar – a camada mais externa da atmosfera solar, visível durante a totalidade – lançando mão de uma imagem sacra: a auréola que circunda as cabeças dos santos, de Maria e de Cristo. Finalmente, há quem mencione fenômenos correlatos e igualmente espetaculares que completariam esse cenário, como a queda brusca de temperatura, a mudança de comportamento dos animais, o jogo de luz e sombras em movimento projetado sobre as paredes.Fig.1 - Eclipse total do Sol, 16/04/1893 Gravura de José Abranches Moura Fonte: L'Astronomie, vol. 12, 1893 / Arquivo: ON
Não obstante, o interesse dos eclipses totais do Sol para a ciência ocidental moderna é relativamente recente e historicamente datado, localizando-se no período compreendido entre meados do século XIX e o início do século XX. Não que o interesse dos filósofos e cientistas europeus pelo conhecimento do Sol tenha se limitado a esse período, ou que a observação de eclipses do Sol para fins científicos possa ser circunscrita de maneira tão esquemática. Afinal, já no início da chamada “revolução científica”, e mesmo sem ter testemunhado um eclipse, Galileu Galilei (1564-1642) utilizou suas observações das manchas solares como um poderoso argumento para combater o geocentrismo e a cosmologia então vigente. Por sua vez, naturalistas que se deslocaram para o continente americano acompanhando a colonização européia dos séculos XVII e XVIII não desperdiçaram a oportunidade de observar, registrar e descrever para seus colegas do outro lado do Atlântico eclipses totais do Sol visíveis apenas no hemisfério sul. Foi o caso, por exemplo, de George Marcgrave, que observou um eclipse total do Sol em Recife no dia 13 de novembro de 1640, e de Bento Sanchez Dorta, que fez o mesmo no Rio de Janeiro em 9 de fevereiro de 1785. De qualquer modo, até as primeiras décadas do século XIX a organização de expedições com a finalidade expressa de observar eclipses totais do Sol nos locais onde eles fossem visíveis ainda não era uma prática científica comum na astronomia, seja na América ou na Europa.Breve retrospectiva
A primeira geração de expedições realizadas em busca do Sol, situada entre 1840 e 1860, tinha como principais objetivos a observação visual e a descrição da coroa e das protuberâncias solares, além dos chamados “grãos de Baily” (pequenos pontos de luz brilhantes em torno do disco da Lua, registrados pela primeira vez durante o eclipse anular de 15 de maio de 1836). Nesse primeiro momento, contudo, apenas os eclipses totais visíveis na Europa, respectivamente em 8 de julho de 1842, quando foi aliás postulada a hipótese de uma origem solar para a coroa, e em 28 de julho de 1851, teriam efetivamente atraído a atenção dos astrônomos europeus a ponto de levá-los a organizar expedições científicas. A segunda geração de expedições foi inaugurada com o eclipse total de 18 de julho de 1860, visível em uma faixa que se estendia do norte dos Estados Unidos à Espanha. Mais de cento e cinqüenta astrônomos, de diferentes nacionalidades, teriam se dirigido aos locais de observação desse eclipse, dessa vez com planos de trabalho focados basicamente sobre questões relativas à constituição físico-química da coroa solar. Durante esse eclipse a fotografia foi utilizada pela primeira vez com sucesso, por Warren de la Rue (1815-1889), capitalista inglês e astrônomo amador. Na verdade, a despeito do crescente interesse científico despertado pelos eclipses, as expedições dessa segunda geração ainda eram realizadas freqüentemente por iniciativa dos próprios astrônomos e sem patrocínio oficial – do mesmo modo que as da geração anterior -, e não era rara a presença de amadores, como de la Rue, misturados aos profissionais.Finalmente, uma terceira geração de expedições se estendeu de 1880 até 1920, e foi caracterizada, de um lado, pela tendência à profissionalização dos seus membros, e de outro lado pelo aparato tecnológico e significativo patrocínio oficial disponíveis. Neste sentido, na Inglaterra por exemplo foram criados comitês interinstitucionais destinados à coordenação dos esforços individuais na busca de financiamento governamental, como o Joint Solar Eclipse Committee. Já nos Estados Unidos, partiu dos observatórios e sobretudo do Observatório de Lick, na Califórnia, a iniciativa na organização de expedições para observação de eclipses totais do Sol onde quer que eles fossem visíveis.O Brasil na rota dos eclipses do Sol
No período compreendido entre meados do século XIX e 1920, a chamada faixa de totalidade de um eclipse do Sol atravessou o território brasileiro em cinco ocasiões: 7 de setembro de 1858, 25 de abril de 1865, 16 de abril de 1893, 10 de outubro de 1912 e 29 de maio de 1919. Apenas nos três últimos casos o Brasil recebeu a visita de expedições estrangeiras com a finalidade de observar o fenômeno. Em contrapartida, em todas essas ocasiões foram enviadas expedições formadas por cientistas brasileiros aos locais de observação. A instituição responsável pela organização da grande maioria delas foi a mesma: o Observatório do Rio de Janeiro, hoje denominado Observatório Nacional.A expedição organizada pelo Observatório do Rio de Janeiro para a observação do eclipse de 1858 era originalmente formada pelo conselheiro e ex-ministro da Guerra Antônio Manuel de Mello (1802-1866), então diretor dessa instituição; pelo conselheiro Cândido Batista de Oliveira (1801-1865), na época diretor do Jardim Botânico e ex-professor da Academia Militar; e por quatro oficiais do Exército, os quais exerciam a função de ajudantes no Observatório. Às vésperas do embarque para Paranaguá, local previsto para a observação, a ela juntou-se mais um membro, o francês Emmanuel Liais (1826-1900), ex-astrônomo do Observatório de Paris que viera para o Brasil em caráter voluntário, com o pretexto de observar o eclipse. Finalmente, em Paranaguá, integraram-se à expedição alguns oficiais dos navios de guerra Pedro II e Tyetê, que haviam-na conduzido até lá.Os planos de trabalho e os resultados obtidos pela expedição brasileira foram registrados em relatório oficial e no relatório individual de Liais, este último publicado nos Comptes rendus da Academia de Ciências de Paris. Seu principal objetivo era observar a coroa, as protuberâncias e as manchas solares, em consonância com os avanços da astrofísica européia na época. Em linhas gerais, os brasileiros combateram a tese de que as protuberâncias solares eram de algum modo provocadas pelas manchas solares, pelo que receberam a aprovação da Academia Francesa. Fato igualmente digno de nota na Academia, devido ao seu pioneirismo, Liais obteve cerca de uma dúzia de fotografias do eclipse, e só não conseguiu uma imagem da totalidade porque esta teria terminado antes do tempo previsto. Para a observação do eclipse de 1865 – visível em plena Guerra do Paraguai, deve-se notar –, o Observatório organizou e enviou uma expedição à Camboriú, no litoral sul do Brasil. Entre seus integrantes estavam os conselheiros Manuel de Mello (ainda diretor da instituição) e Batista de Oliveira, e ainda Guilherme Schüch Capanema (1824-1908), além de oficiais e ajudantes do Observatório. Choveu na região durante o eclipse, razão pela qual não foi publicado um relatório oficial dessa expedição. Por outro lado as observações realizadas no Observatório do Rio de Janeiro, situado no limite da faixa de totalidade do fenômeno, por Camilo Maria Ferreira Armond (1815-1882), o barão de Prados, renderam um trabalho publicado nos Comptes rendus da Academia de Ciências de Paris e no relatório anual do instituto norte-americano de pesquisas Smithsonian. A primeira ocasião em que o Joint Solar Eclipse Committee britânico teve a oportunidade de atuar foi justamente durante a organização de duas expedições para a observação do eclipse total do Sol de 1893, uma delas dirigida para o atual Senegal, na época sob domínio francês, a outra para o Brasil. William Shackleton (1871-1921) e Albert Taylor (1865-1930) viajaram para o Brasil com a missão de fotografar a coroa solar, e instalaram-se em Paracuru, no litoral do Ceará. No relatório final redigido pelo primeiro e publicado nos anais da Royal Society estão contidos não apenas os resultados científicos das observações feitas durante o eclipse, mas também algumas informações interessantes sobre essa viagem. Assim é que através do relatório somos informados, por exemplo, que os sofisticados e frágeis instrumentos astronômicos trazidos de navio da Inglaterra foram descarregados no Brasil com a ajuda de catamarãs, tendo sido transportados por terra até o local escolhido em exóticos carros-de-boi.
Nessa época, os astrônomos do Observatório do Rio de Janeiro estavam envolvidos em outra expedição científica, denominada Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, cujo objetivo era definir a localização do quadrilátero onde deveria ser construída a nova capital do país. Mesmo assim a instituição brasileira deslocou para o Ceará uma pequena equipe chefiada pelo engenheiro e astrônomo Henrique Morize (1860-1930).
Fig.2 - O presidente Hermes da Fonseca na fazenda do Sr. Hess, em Passa Quatro Fotografia de Olyntho Barreto Fonte: Fon-fon, 19/10/1912 / Arquivo: BN
Nada menos do que oito expedições, das quais seis de origem estrangeira (duas inglesas, duas argentinas, uma francesa e uma chilena), se instalaram na divisa entre Minas Gerais e São Paulo para a observação do eclipse de 1912. Das duas expedições brasileiras, uma foi organizada pelo Observatório do Rio de Janeiro e era chefiada por Morize, a outra pelo Observatório de São Paulo, sob a direção de José Nunes Belfort de Mattos (1862-1926). Essa notável concentração de cientistas no interior do país seria amplamente noticiada na imprensa carioca, tanto pelos jornais diários quanto pelas revistas ilustradas, que não perderam aliás a ocasião de criticar o governo. A propósito, o presidente Hermes da Fonseca também dirigiu-se ao local de observação escolhido pelas expedições científicas inglesa, francesa e brasileira, em Passa Quatro, acompanhado de uma comitiva de quarenta pessoas. No entanto, choveu no dia do eclipse, frustrando as expectativas de todos – um ingrediente perfeito para esse comentário bem-humorado de J. Carlos na revista Careta: “O Sol quando nasce é para todos; e quando se oculta também. Nem o Marechal escapou.” (Careta, 19/10/1912)fig.3 - Caricatura de J. Carlos Fonte: Careta, 19/10/1912 / Arquivo: BN
O eclipse total do Sol mais conhecido dos brasileiros, que já foi inclusive pretexto para o roteiro de um filme (Casa de Areia, de 2005, dirigido por Andrucha Waddington com Fernanda Montenegro no elenco) foi visto no Ceará em 1919. O principal objetivo dos astrônomos ingleses que vieram ao Brasil observá-lo era a comprovação empírica da teoria da relatividade, de Albert Einstein. A expedição era formada por Andrew Crommelin (1865-1939) e Charles Davidson (1875-1970), e vale ressaltar que dessa vez, para evitar surpresas desagradáveis como a chuva de 1912, os ingleses tiveram o cuidado de enviar outra dupla de astrônomos, Arthur Eddington (1882-1944) e Edwin Cottingham (1869-1940), para a Ilha do Príncipe, no litoral da África. Foi pois do conjunto de fotografias tiradas em ambos os lados do Atlântico que se obteve a primeira comprovação empírica da teoria da relatividade.Fato menos conhecido dos brasileiros a respeito do famoso eclipse de 1919, o Observatório do Rio de Janeiro também enviou uma expedição científica a Sobral, onde ficaram instalados os ingleses, formada pelos astrônomos Morize, Domingos Costa, Allyrio de Mattos e Lélio Gama. Seu objetivo era fotografar e estudar a composição físico-química da coroa solar, de maneira similar à maioria das expedições astronômicas realizadas na época para a observação de eclipses. Os resultados científicos e as impressões de Morize sobre essa viagem foram divulgados em uma conferência proferida na Academia Brasileira de Ciências, e posteriormente publicados no periódico dessa sociedade.Considerações finais Como vimos, o interesse científico pelos eclipses totais do Sol é relativamente recente, tendo atingido seu apogeu na virada do século XIX para o século XX. A partir da década de 1950, quando a teoria da relatividade já havia sido comprovada através de inúmeras observações, não parou de diminuir. De fato, hoje é possível fazer observações detalhadas do Sol através de telescópios espaciais, como o Soho (Solar & Heliospheric Observatory), lançado em 1995 por uma parceria entre a Nasa e a ESA (Agência Espacial Européia). Por outro lado, vimos também que os astrônomos brasileiros, e sobretudo aqueles lotados no Observatório do Rio de Janeiro, preocuparam-se com a organização de expedições para a observação de eclipses totais do Sol em território brasileiro desde muito cedo, acompanhando pois bem de perto a tendência à consolidação dessa prática na Europa. Em outras palavras, a história dessas expedições nos permite concluir que a astronomia brasileira possui uma base institucional sólida, que remonta pelo menos a meados do século XIX.Cristina Helena Barboza é pesquisadora no Museu de Astronomia e Ciências Afins, ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Tem experiência na área de história, com ênfase em história das ciências.
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