Os debates da sociedade em geral em torno da ética na televisão por
muito tempo ficaram concentrados nos programas jornalísticos. Há alguns
anos, porém, a preocupação se ampliou para a programação de
entretenimento – principalmente novelas e programas de auditório. Mas,
recentemente, os olhares começaram a se voltar para a publicidade, mais
diretamente a publicidade direcionada a crianças e adolescentes.
No caso do jornalismo, a preocupação com a ética é (ou deveria ser)
quase que inerente à atividade profissional, pois está intimamente
associada à credibilidade e a um vínculo de confiança historicamente
estabelecido entre a imprensa e os leitores. Já no caso dos programas
de entretenimento, inicialmente acreditava-se que tudo era em nome da
alegria e do passa-tempo, mas quando negros, homossexuais, idosos,
deficientes e índios, por exemplo, começaram a ser expostos de forma
discriminatória e/ou ridicularizados diante de milhares de pessoas via
satélite, uma parcela da sociedade preocupada com a defesa dos direitos
humanos passou a se manifestar.
Para reunir as preocupações desse grupo é que foi criada há exatamente
quatro anos, em novembro de 2002, a campanha “Quem financia a baixaria
é contra a cidadania”. Trata-se de um conjunto de dezenas de entidades
que, em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados, fazem um acompanhamento da programação da
televisão com base em denúncias encaminhadas por qualquer cidadão pelo
telefone 0800 619 619 ou pelo site www.eticanatv.org.br. Nestes quatro anos o número de denúncias fundamentadas já passou de 30 mil.
A atuação mais recente da campanha está voltada para a publicidade
direcionada a crianças e adolescentes, um público que a princípio não
deveria ser de forma alguma alvo da publicidade comercial, pois está em
processo de formação de valores mais importantes para suas vidas do que
o de se tornarem consumidores.
Desde 2001 está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei
do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) que altera o artigo 37 do
Código de Defesa do Consumidor. Segundo a proposta: “É também proibida
a publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis, assim
considerados aqueles destinados apenas à criança". O entendimento da
conjuntura econômica e política do país indica que tal proposta não
teria a menor chance de aprovação no Congresso Nacional, daí o apoio
dado à relatora do projeto na Comissão de Defesa do Consumidor,
deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG). Ela reuniu vários setores da
sociedade em audiências públicas sobre o tema e chegou a uma proposta
de regulamentação da publicidade não somente para crianças, mas também
para adolescentes. (Leia o texto da deputada).
O mais viável no atual momento é que haja uma regulamentação da
atividade. Há especificidades e peculiaridades tão sutis na questão dos
efeitos da publicidade sobre as crianças que seria muito precipitado
simplesmente proibí-la. Devem ser ouvidos constantemente todos os lados
da questão: pais, educadores, crianças e adolescentes,
fabricantes/anunciantes de produtos, agências de publicidade, veículos
de comunicação, acadêmicos/especialistas, governo e organizações da
sociedade ligadas ao tema. O problema é que anunciantes, agências e
veículos sequer admitem o debate, pois alegam que a iniciativa se trata
de “censura”.
É preciso ficar claro que não há nenhuma posição contrária à televisão,
sequer à publicidade. O interesse é a favor de uma sociedade mais
justa, entendendo que os conteúdos da televisão deveriam simplesmente
atender aos princípios constitucionais de ter finalidade educativa,
artística, cultural e informativa; dentro do respeito aos valores
éticos e sociais.
Em muitos países com uma tradição liberal muito mais sólida que o
Brasil, como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália, Suécia,
Itália e muitos outros, a publicidade direcionada a crianças já é
regulada há muito tempo, sem traumas para o mercado e com muitas
vantagens para os espectadores.
A tendência internacional atual é a da regulamentação (e mesmo a
proibição) de publicidades ligadas ao problema da obesidade. O risco
dessa mudança de foco – da subjetividade para a obesidade
– é o da perda de uma série de conquistas aparentes quanto aos efeitos
na formação da personalidade das crianças, que é a criação de um ser
eminentemente consumista.
Um dos pontos mais importante em algumas regulamentações é o que se preocupa com o "nag factor";
trata-se daquele efeito gerado pela publicidades de levar a criança a
insistir muito com os pais para que comprem um determinado produto, e
se o pai não quiser – ou não puder mesmo –
atender ao pedido, passa a ser um vilão. A figura do herói fica
condicionada à compra do produto; e se o pai de um coleguinha comprar,
aí fica mais grave ainda. Mas o pior de tudo, principalmente entre
adolescentes, é que tal influência poder levar à violência, como o
roubo de um tênis ou uma bicicleta.
Outro exemplo anti-ético grave é quanto ao uso de efeitos especiais para mostrar que o produto – normalmente brinquedo – faz algo que na verdade só existe na ficção –
até uma certa idade as crianças não conseguem distinguir entre ficção e
realidade (ainda mais se exibida na televisão). E sobre esse aspecto da
realidade-ficção, é muito preocupante também o fato de uma
apresentadora de programa ou personagem fazer um comercial ou um
testemunhal de um produto ou serviço, pois a maioria das crianças não
tem claro que programa é uma coisa e intervalo comercial é outra. O
contrato de confiança que é estabelecido entre o emissor e o receptor
faz com que o espectador acredite naquela pessoa ou personagem como se
legitimada pelo meio, e não o é; durante o intervalo ou no testemunhal
o ator/apresentador ou personagem está ali como um mascate,
simplesmente vendendo um produto, e recebendo um alto cachê para isso.
No caso brasileiro, quem primeiro se apresentou como defensor da não
regulamentação foi o Conselho Nacional de Auto-regulamentação
Publicitária (Conar). Uma entidade que reúne grandes anunciantes,
proprietários de grandes agências de publicidade e representantes de
empresas de TV, rádio, jornal, revista e outdoor. O principal discurso
foi a retórica da defesa da liberdade de expressão comercial (?) e de
que qualquer tentativa de regulação do setor é ato de censura.
No entanto, o que deve ficar claro, primeiramente, é que a televisão é
um bem público, que funciona a partir de uma concessão pública. O
empresariado do setor faz questão de esconder esse detalhe e tratar
daquele espaço como terra de ninguém (ou só deles). O caso é que a TV é
terra de todos. Segundo, a liberdade de expressão não pertence aos
donos dos veículos –
como fizeram acreditar os proprietários de jornais do final do século
XIX ao desvirtuarem o texto da primeira emenda da Constituição
americana, se arvorando como "a voz do povo"; o conceito de liberdade
de expressão pertence à sociedade em geral. Terceiro, censura é o ato
de proibir algo sem direito a recurso, sequer debate. E por último,
esse discurso de que "o controle remoto" é a melhor arma do
telespectador contra a má qualidade ou os efeitos nocivos dos programas
ou da publicidade é enganoso, principalmente diante da estandardização
das grades de programação, onde há pouquíssimas opções de algo
diferente. O controle social é a melhor saída, contanto que seja feito
efetivamente com a participação da sociedade.
Há ainda a alegação de redução no faturamento das emissoras e crise na
indústria de produtos para crianças e adolescentes. Mas poucos observam
que o espaço destinado à programação infantil nas emissoras é muito mal
aproveitado, o valor dos anúncios durante tais programas é muito
pequeno, por isso não será uma perda tão grande caso a proposta seja a
de não haver publicidade durante os programas infantis.
Outro ponto é que o peso da publicidade de produtos infantis no bolo
publicitário é quase irrelevante, o grosso é varejo, indústria
automobilística, construtoras e governos; na lista divulgada pelo Ibope
sobre os investimentos publicitários no primeiro semestre de 2006, o
primeiro setor de produtos destinado a crianças e adolescentes que
aparece é o de refrigerantes, representando apenas 1,3% das verbas
gastas em TV, rádio, jornal, revista, outdoor e TV por assinatura;
sendo que o setor de brinquedos e acessórios não representa sequer 0,2%
do mercado anunciante.
E mais, publicitários e veículos sabem muito bem redirecionar sua
“criatividade” e espaço para continuarem a ganhar dinheiro, vide o caso
da publicidade de cigarro, que representava sim um peso importante nas
verbas; ninguém foi à falência por causa disso, pouco menos os
fabricantes.
O problema é que em uma realidade mais voltada para a corporocracia do
que para a democracia existe aquela máxima de que “em time que está
ganhando não se mexe". A questão é que o time que está perdendo é o da
sociedade, sempre se adequando às lógicas do lucro máximo a qualquer
preço. Neste caso específico, o preço é a formação de indivíduos, não
apenas futuros consumidores, mas futuros cidadãos.
Edgard Rebouças
é jornalista, doutor em comunicação social, professor de ética na
publicidade e na televisão da Universidade Federal de Pernambuco,
coordenador do Núcleo de Pesquisa de Políticas e Estratégias de
Comunicações da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação (Intercom) e membro da secretaria-executiva da campanha
“Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
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