“Não
contém produtos químicos”. Essa é uma afirmação equivocada, facilmente
encontrada nas embalagens de diferentes produtos, e que passa despercebida
diante dos olhares menos reflexivos. Para “demonstrar o quanto a química faz
parte do cotidiano”, a celebração do Ano Internacional da Química (2011) parte
do princípio de que “toda matéria encontrada no universo é composta pelos
elementos químicos e sua combinação molecular” e propõe o tema: “Chemistry – our life, our future”
(Química – nossa vida, nosso futuro), adaptado no Brasil como “Química para um mundo melhor”. Enxergar a presença da
química na composição da vida e de toda matéria que a cerca não é uma tarefa
fácil para um cidadão que não lida com a rotina de um farmacêutico ou de um
químico em seu laboratório. Quanto mais se olha em direção ao passado, mais
difícil parece ser esse exercício, devido às limitações técnico-científicas de
outrora. Porém, essa dificuldade não assustou àqueles que buscavam obter ouro
através de metais menos nobres ou desenvolver o elixir da vida, como era o caso dos alquimistas. Tampouco diminuiu os esforços
dos boticários em busca da cura para diferentes males e doenças.
Escritores como Machado de Assis (1839-1908)
e Lima Barreto (1881-1922) utilizaram-se de elementos reais para criar,
respectivamente, personagens ficcionais como Crispim Soares (do conto “O alienista”,
1822) e Raimundo Flamel (do conto “A nova Califórnia”, 1910) cuja maior
semelhança estava no ofício em comum: ambos eram boticários. De acordo com a professora Nadja
Paraense dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isso ocorre porque “no final do século XIX e início do
século XX, é forte a crença na ciência e a sua ligação com o progresso”. Nesse
contexto, tais autores criticam, em suas obras, a “racionalidade moderna e o
excessivo poder da ciência”. Segundo ela, Machado “trata da ciência de forma
discreta, pintando o tema com cores mais suaves e elegantes; mas nas crônicas
escritas no mesmo período, ele não se cansa de atacar frontalmente a medicina
de seu tempo”, uma indignação justificada pelo surgimento de “novíssimos
produtos farmacêuticos: os periódicos anunciavam a substituição de remédios que
não curavam mais, por outros que prometiam curar de tudo”. Assim, “Machado
começa a discutir, em seus textos jornalísticos, a irresponsabilidade dos
boticários, a profusão de remédios prometendo realizar curas milagrosas e o
elenco de sistemas medicinais que se sucediam, sem, no entanto, conseguir sanar
as doenças da época”, descrevendo “a transformação da medicina em comércio e
sua manipulação por mãos inescrupulosas”. Já Barreto, diz a pesquisadora,
utiliza-se “da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente”, trazendo
em associação à figura do boticário uma crítica à ganância.
Outro
consagrado escritor brasileiro também dedicou suas letras a retratar o ofício
do boticário: Visconde de Taunay (1843-1899). Em sua obra Inocência (1872), “Cirino, filho de um vendedor de drogas que se
intitulava boticário, seguindo os passos do pai, passa a atender a população e
a receitar medicamentos, unindo ciência e superstição. Médico ou curandeiro,
boticário ou charlatão, tem acesso a todas as famílias carentes que visita,
prometendo saúde, garantindo a cura de todos os males”, conta Nadja dos Santos.
Dessa forma, o autor aborda a “falta de médicos formados e competentes”, uma
realidade do século XIX que contrastava com o “progresso da medicina” e o “surgimento
de novas técnicas, medicamentos, teorias”, aponta a pesquisadora.
Segundo
a professora Verônica Pimenta Velloso, do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Taunay traça em Cirino o “perfil de um
boticário andarilho, que aprendera o seu ofício como caixeiro de uma botica e
resolvera viajar pelos sertões a ‘medicar, sangrar e retalhar’, sendo recebido
sempre como doutor”, refletindo “uma carência de assistência médica e
farmacêutica no interior do país, que muitas vezes era preenchida por esses
personagens”. Tal situação é confirmada através da consulta aos relatórios da
Junta Central de Higiene Pública (1850) – durante gestão do doutor em medicina José Pereira
Rego, no mesmo período da publicação do romance. Assim, “os romances, nos anos
de mil e oitocentos, ao retratarem o cotidiano da época, constituem fontes
ricas a serem consultadas”, desde que não se deixe de lado a “consulta à
legislação sanitária, aos periódicos farmacêuticos e médicos, aos jornais de
grande circulação, às memórias históricas das faculdades de medicina ou mesmo aos
livros didáticos utilizados na formação dos boticários”.
“O sentido
alquímico da farmácia permaneceu no imaginário popular, ou mesmo no cotidiano
do século XIX”, comenta Velloso, explicando que “a própria configuração das
boticas ou estabelecimentos farmacêuticos expressava uma aura de mistério, ao
separar o local de manipulação dos medicamentos do balcão de atendimento”.
Também contribuíam, segundo ela, “para alimentar ou mesmo manter a tradição de
um sentido oculto na química dos medicamentos, os chamados remédios secretos ou
de segredo”, cujas fórmulas não eram reveladas, cuja circulação era livre e cujas propagandas prometiam a “cura
para todos os males”, uma atitude condenada “por farmacêuticos considerados
homens de ciência, como o francês Eugène Soubeiran, autor de livros didáticos
de farmácia adotados em cursos da França, do Brasil e de Portugal”, completa.
Em
contrapartida, continua Velloso, “eles próprios (os farmacêuticos) acabavam por
aderir a essas práticas no seu cotidiano”, como no caso da homeopatia e das “especialidades
farmacêuticas (tinturas, pomadas, pastas) ou remédios secretos que, com o
processo de industrialização farmacêutica, multiplicaram-se nas prateleiras das
farmácias, buscando atender à população consumidora”. Segundo ela, é evidente “o
sentido comercial de suas atividades, já que a tendência era aumentar cada vez
mais a venda de medicamentos” para pronto uso que, em geral, eram importados e
mais baratos dos que os produzidos localmente; uma situação que contribuía para
a associação da figura do boticário ao símbolo do “mercador da saúde” – imagem recriminada
pelos farmacêuticos sob o argumento de que “a farmácia, como a medicina, era
uma ciência que lidava com vidas, devendo, por isso, ter um tratamento
diferenciado de outros ramos do comércio, pelos órgãos responsáveis pela
fiscalização e jurisprudência de suas atividades”, explica a pesquisadora.
O boticário Ezequiel
Correa dos Santos
Entre
os casos reais dessa prática, Ezequiel Correa dos Santos é o mais citado. Diplomado
boticário em 1819, praticou seu ofício na botica de José Caetano de Barros.
Como um dos fundadores da Sociedade Farmacêutica Brasileira (1851-1878),
pretendia “regularizar e garantir o exercício da farmácia no Brasil”. Assim,
“combateu o charlatanismo que invadia o mercado brasileiro de remédios”,
integrando “um seleto grupo que transformou suas farmácias em laboratórios de
pesquisa de novos medicamentos”, fato que o levou ao isolamento do “primeiro
alcalóide no Brasil, a pereirina, cujo preparado sob a forma de cloridrato foi
amplamente empregado no combate à malária até o início do século XX”, explica
Nadja dos Santos. Extraído
de Nadja Paraense dos Santos, "Passando da doutrina à prática: Ezequiel
Corrêa dos Santos e a farmácia nacional". Química Nova vol.30 nº4 São
Paulo Jul./Ago. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-40422007000400049&script=sci_arttext.
A
trajetória desse boticário, segundo Verônica Velloso, revela as “mudanças por
que passaram a farmácia e a química na transição entre o período joanino no
Brasil e a constituição do império brasileiro”. Titulado em fisicatura,
envolveu-se “com a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823 e a abdicação
de Dom Pedro I, em 1831, quando foi reivindicada a extinção de todas as
instituições representativas do Antigo Regime, incluindo a então denominada
Fisicatura-mor. Em 1829, Ezequiel dos Santos tornou-se proprietário e redator
do jornal Nova Luz Brasileira”,
figurando entre as lideranças dos “liberais exaltados, que faziam oposição
radical ao governo absolutista de Dom Pedro I”, conta a pesquisadora. Sua
botica, na “Rua das Mangueiras, atual Visconde de Maranguape, na Lapa, era o
local anunciado nas páginas de seu jornal para a realização das assinaturas e,
com certeza, servira de espaço para discussões políticas”, continua. Além
dessas ações, Ezequiel dos Santos também reivindicava a “elaboração de um
código farmacêutico brasileiro” e valorizava as “preparações e especialidades
farmacêuticas locais”, destaca Velloso.
Ela
conta que, filiado a diferentes “associações de cunho político e científico”,
em 1835, Ezequiel dos Santos presidiu a seção de farmácia da Academia Imperial
de Medicina. Em 1851, “como boticário da Casa Imperial”, participou da
“fundação da Sociedade Farmacêutica Brasileira, a qual presidiu até o seu
falecimento, em 1864”,
continua. Além dele, “muitos outros farmacêuticos dessa época e de gerações
seguintes poderiam ser citados, destacando os seus próprios filhos”: Ezequiel
Correa Santos Junior e Ernesto Frederico dos Santos, exemplificando “a farmácia
familiar” que, segundo a pesquisadora, pode ser interpretada “como uma herança
das boticas medievais, um ofício que passava de pai para filho e que era
executado nas suas próprias casas”. Outros nomes do século XIX também são
lembrados por Verônica Velloso: Theodoro Peckolt e seu filho, Gustavo Peckolt (autor
de História das plantas medicinais e úteis
do Brasil e História das plantas alimentares
e de gozo no Brasil); Edouard Jules Janvrot (na direção do Instituto
Farmacêutico do Rio de Janeiro); Eugênio Marques de Hollanda (também na direção
do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro e no Laboratório da Flora
Brasileira); além de Francisco Maria de Mello e Oliveira (no Laboratório de
Química Orgânica e Inorgânica da Escola Politécnica).
Boticários, farmacêuticos e químicos
Diante
desses exemplos da ficção e da realidade, bem como das contradições de uma
época que mesclava o progresso através da ciência a uma realidade social
brasileira que não correspondia de forma equivalente a tal desenvolvimento, é
inevitável a seguinte questão: como definir o ofício do boticário e
distinguí-lo daquele exercido pelo farmacêutico ou pelo químico? Segundo Verônica
Velloso, de acordo com o Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, a atividade do
boticário está ligada ao comércio; e o seu espaço, a botica, tem sua origem na
“palavra grega apotheke = depósito” e
na “mediação do francês com a palavra boutique”,
adquirindo a ideia de loja. Significação semelhante é oferecida pelo
dicionário de Raphael Bluteau, Vocabulário
português e latino, onde os boticários estão associados à posse de uma
botica, à venda de drogas medicinais e à realização de mesinhas, como se fossem
“cozinheiros dos médicos”; numa atividade que adquire status menor e subserviente
pelo seu caráter mecânico ligado à preparação e venda do medicamento, esclarece
Nadja dos Santos.
De acordo com ela, a botica e o boticário
surgiram na Europa, a partir do século VIII, através de uma “incipiente divisão
do trabalho médico”. No Brasil, os anos 1530 marcaram a chegada dos primeiros
“cirurgiões barbeiros, boticários e seus aprendizes”, que traziam “caixas de
botica” com “instrumentos de lancetar, sangrar, cortar e serrar, e mais os
remédios”. Assim, a função de farmacêutico era exercida pelos portadores de
tais “caixas”, os quais se tornaram “os primeiros ‘donos’ do ofício”. “A fiscalização
do exercício profissional e do comércio de drogas efetuou-se, nos três
primeiros séculos, através dos delegados ou comissários do Físico-mor e do
Cirurgião-mor do Reino, até 1782, quando o governo de D. Maria I criou a Junta
do Protomedicato, com sede em Lisboa e delegados no Brasil”, conta Nadja dos
Santos. Iniciada no século XVIII, a
“institucionalização e a profissionalização da ciência” trouxeram consigo “a
substituição dos práticos e boticários por farmacêuticos”, gerando “mudanças no
modelo de transmissão do conhecimento e de formação profissional”, continua. Ou
seja, em lugar do aprendiz, surge a universidade e, com ela, título, carreira e
status, considera a pesquisadora.
No
século XIX, farmacêuticos ligados às associações científico-profissionais
dedicavam-se à discussão de sua diferença em relação aos boticários, numa
tentativa de “afirmar o estatuto de ciência para a farmácia”, pois a designação
“farmacêutico” ganhou caráter oficial com a criação do respectivo curso de formação
no Rio de Janeiro e na Bahia, em 1832. “Quem se formava por esse curso deveria,
então, ser denominado de farmacêutico, formação distinta da do boticário, que
aprendia o seu ofício na prática, sem frequentar um curso acadêmico”, explica
Verônica Velloso.
Ela
conta que partir dos anos 1870, reuniões do Instituto Farmacêutico do Rio de
Janeiro passaram a interpretar a falta de distinção entre tais ofícios como “sinal
de atraso em relação a outros países”, associando “a terminologia e a figura do
boticário às corporações de ofício da Idade Média e ao praticante de alquimias excêntricas”.
Em oposição, o farmacêutico refletia “o moderno, o profissional que trabalhava
num laboratório e utilizava a química para comprovar a eficácia de suas
fórmulas”. Assim, procurava-se atentar para as distinções a fim de “denunciar o
exercício ilegal da farmácia”, esclarece. Em contrapartida, eram expedidas, por
parte do órgão governamental responsável, a Junta Central de Higiene Pública, licenças
para o exercício da farmácia por leigos. A alegação para tanto era de que “os
dois únicos cursos farmacêuticos que existiam no país eram insuficientes para
atender às necessidades”, fato que, na ótica de Verônica Velloso, tornava ficcional
“a distinção entre boticário e farmacêutico”.
Ela
aponta que outro fator dificultava o estabelecimento da distinção entre tais
ofícios. Além da titulação conferida aos farmacêuticos, havia “aquela dada aos
boticários pela Fisicatura, o órgão responsável pela fiscalização do exercício
das artes de curar e pela concessão de cartas a físicos, boticários, médicos
práticos e curandeiros”. A Fisicatura foi criada no reino português (1810), e
suas funções foram transferidas, no Brasil, para a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro e para a Junta Central de Higiene Pública. Com isso, não é surpresa
alguma o fato de que o “próprio presidente da primeira associação farmacêutica
no Brasil, a Sociedade Farmacêutica Brasileira, Ezequiel Corrêa dos Santos, fosse
um boticário” titulado quando ainda não havia cursos farmacêuticos. Na mesma
época, o químico – diferentemente do boticário e do farmacêutico – poderia ter qualquer
uma das formações anteriores e, até mesmo, a de médico ou de engenheiro, uma
vez que não existia curso superior na área em terras brasileiras, explica Velloso.
Na
mesma sociedade (posteriormente rebatizada como Instituto Farmacêutico do Rio
de Janeiro), a presença de “farmacêuticos/boticários, químicos, naturalistas,
botânicos, médicos clínicos e até mesmo droguistas” refletia a união e a tensão
existentes em tamanha heterogeneidade. Entre as discordâncias, por exemplo,
figuram a comercialização de “produtos químicos tóxicos” e a assistência à população
por parte das farmácias, invadindo o exercício legal da medicina garantido aos
médicos clínicos; esses últimos, por sua vez, “costumavam preparar medicamentos
mesmo havendo farmácias no local, burlando também as leis a respeito”, continua
a pesquisadora. Em contrapartida, concordavam com a “proposta de formação
acadêmica, o que lhes conferia a qualificação de homens de ciência, o apelo à
polícia médica para corrigir o exercício ilegal de suas ocupações, com fins de
diferenciarem-se de um mercado informal que crescia vertiginosamente”. Isto é, “o
farmacêutico não deixava de supervalorizar a disciplina da química na sua
formação, já que esta, ao permitir que ele testasse os seus medicamentos,
reforçava o sentido científico de suas atividades, de acordo com a concepção de
ciência na modernidade”, conclui Velloso.
Segundo
Nadja dos Santos, “os farmacêuticos e os químicos são personagens mais
difusos”, pois adentram, ao longo do tempo, instituições de perfis variados,
como “universidades, fábricas, laboratórios de pesquisa, farmácias oficinais,
drogarias, órgãos profissionais e ministérios estatais”. O último grupo é
composto por “egressos da medicina ou da farmácia, da metalurgia e de outras
áreas tecnológicas”, garantindo “uma diversidade imensa nas modalidades de
formação do químico”, diz a pesquisadora. Assim, “desde o início do século XVII,
há uma preparação formal teórica e prática do químico vinculada estreitamente,
como quimiatria, ao ensino da medicina e, mais tarde, como química aplicada, às
atividades tecnológicas”, levando a química ao “gradativo afastamento” da área
médica para outras áreas “ligadas à atividade econômica”, fator que “contribuiu
para o estabelecimento de uma química independente”, completa Nadja dos Santos.
Heranças dos boticários
Na atualidade, é possível observar
reflexos das ações dos antigos boticários em empresas que se consolidaram, ao
longo das décadas, adaptando-se às inovações técnicas e científicas ligadas à
prática da química. A Granado Pharmácias é um exemplo, resultado do trabalho de
três gerações da mesma família, cuja primeira botica foi fundada na cidade do
Rio de Janeiro, em 1870, pelo português José Antônio Coxito Granado. Com a
simpatia de Dom Pedro II, ganhou o título de Farmácia Oficial da Família Real
Brasileira. Entre os seus produtos mais conhecidos estão o Polvilho
Antisséptico (1903), cujo registro foi aprovado por Oswaldo Cruz. No campo das
ideias, a botica foi responsável pela edição do almanaque anual Pharol da Medicina, entre 1887 e 1940.
Hoje, de acordo com informações presentes em seu portal institucional, tal
empresa é presidida pelo inglês Christopher Freeman. À esquerda, a Granado Pharmácias no século XIX.À direita, a botica atualmente.
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