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Reportagem
O ofício dos boticários no século XIX
Por Maria Clara Rabelo
10/07/2011

“Não contém produtos químicos”. Essa é uma afirmação equivocada, facilmente encontrada nas embalagens de diferentes produtos, e que passa despercebida diante dos olhares menos reflexivos. Para “demonstrar o quanto a química faz parte do cotidiano”, a celebração do Ano Internacional da Química (2011) parte do princípio de que “toda matéria encontrada no universo é composta pelos elementos químicos e sua combinação molecular” e propõe o tema: “Chemistry – our life, our future” (Química – nossa vida, nosso futuro), adaptado no Brasil como “Química para um mundo melhor”. Enxergar a presença da química na composição da vida e de toda matéria que a cerca não é uma tarefa fácil para um cidadão que não lida com a rotina de um farmacêutico ou de um químico em seu laboratório. Quanto mais se olha em direção ao passado, mais difícil parece ser esse exercício, devido às limitações técnico-científicas de outrora. Porém, essa dificuldade não assustou àqueles que buscavam obter ouro através de metais menos nobres ou desenvolver o elixir da vida, como era o caso dos alquimistas. Tampouco diminuiu os esforços dos boticários em busca da cura para diferentes males e doenças.

Escritores como Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922) utilizaram-se de elementos reais para criar, respectivamente, personagens ficcionais como Crispim Soares (do conto “O alienista”, 1822) e Raimundo Flamel (do conto “A nova Califórnia”, 1910) cuja maior semelhança estava no ofício em comum: ambos eram boticários. De acordo com a professora Nadja Paraense dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isso ocorre porque “no final do século XIX e início do século XX, é forte a crença na ciência e a sua ligação com o progresso”. Nesse contexto, tais autores criticam, em suas obras, a “racionalidade moderna e o excessivo poder da ciência”. Segundo ela, Machado “trata da ciência de forma discreta, pintando o tema com cores mais suaves e elegantes; mas nas crônicas escritas no mesmo período, ele não se cansa de atacar frontalmente a medicina de seu tempo”, uma indignação justificada pelo surgimento de “novíssimos produtos farmacêuticos: os periódicos anunciavam a substituição de remédios que não curavam mais, por outros que prometiam curar de tudo”. Assim, “Machado começa a discutir, em seus textos jornalísticos, a irresponsabilidade dos boticários, a profusão de remédios prometendo realizar curas milagrosas e o elenco de sistemas medicinais que se sucediam, sem, no entanto, conseguir sanar as doenças da época”, descrevendo “a transformação da medicina em comércio e sua manipulação por mãos inescrupulosas”. Já Barreto, diz a pesquisadora, utiliza-se “da sátira, da ironia, da caricatura, da crítica contundente”, trazendo em associação à figura do boticário uma crítica à ganância.

Outro consagrado escritor brasileiro também dedicou suas letras a retratar o ofício do boticário: Visconde de Taunay (1843-1899). Em sua obra Inocência (1872), “Cirino, filho de um vendedor de drogas que se intitulava boticário, seguindo os passos do pai, passa a atender a população e a receitar medicamentos, unindo ciência e superstição. Médico ou curandeiro, boticário ou charlatão, tem acesso a todas as famílias carentes que visita, prometendo saúde, garantindo a cura de todos os males”, conta Nadja dos Santos. Dessa forma, o autor aborda a “falta de médicos formados e competentes”, uma realidade do século XIX que contrastava com o “progresso da medicina” e o “surgimento de novas técnicas, medicamentos, teorias”, aponta a pesquisadora.

Segundo a professora Verônica Pimenta Velloso, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Taunay traça em Cirino o “perfil de um boticário andarilho, que aprendera o seu ofício como caixeiro de uma botica e resolvera viajar pelos sertões a ‘medicar, sangrar e retalhar’, sendo recebido sempre como doutor”, refletindo “uma carência de assistência médica e farmacêutica no interior do país, que muitas vezes era preenchida por esses personagens”. Tal situação é confirmada através da consulta aos relatórios da Junta Central de Higiene Pública (1850) – durante gestão do doutor em medicina José Pereira Rego, no mesmo período da publicação do romance. Assim, “os romances, nos anos de mil e oitocentos, ao retratarem o cotidiano da época, constituem fontes ricas a serem consultadas”, desde que não se deixe de lado a “consulta à legislação sanitária, aos periódicos farmacêuticos e médicos, aos jornais de grande circulação, às memórias históricas das faculdades de medicina ou mesmo aos livros didáticos utilizados na formação dos boticários”.

“O sentido alquímico da farmácia permaneceu no imaginário popular, ou mesmo no cotidiano do século XIX”, comenta Velloso, explicando que “a própria configuração das boticas ou estabelecimentos farmacêuticos expressava uma aura de mistério, ao separar o local de manipulação dos medicamentos do balcão de atendimento”. Também contribuíam, segundo ela, “para alimentar ou mesmo manter a tradição de um sentido oculto na química dos medicamentos, os chamados remédios secretos ou de segredo”, cujas fórmulas não eram reveladas, cuja circulação era livre e cujas propagandas prometiam a “cura para todos os males”, uma atitude condenada “por farmacêuticos considerados homens de ciência, como o francês Eugène Soubeiran, autor de livros didáticos de farmácia adotados em cursos da França, do Brasil e de Portugal”, completa.

Em contrapartida, continua Velloso, “eles próprios (os farmacêuticos) acabavam por aderir a essas práticas no seu cotidiano”, como no caso da homeopatia e das “especialidades farmacêuticas (tinturas, pomadas, pastas) ou remédios secretos que, com o processo de industrialização farmacêutica, multiplicaram-se nas prateleiras das farmácias, buscando atender à população consumidora”. Segundo ela, é evidente “o sentido comercial de suas atividades, já que a tendência era aumentar cada vez mais a venda de medicamentos” para pronto uso que, em geral, eram importados e mais baratos dos que os produzidos localmente; uma situação que contribuía para a associação da figura do boticário ao símbolo do “mercador da saúde” – imagem recriminada pelos farmacêuticos sob o argumento de que “a farmácia, como a medicina, era uma ciência que lidava com vidas, devendo, por isso, ter um tratamento diferenciado de outros ramos do comércio, pelos órgãos responsáveis pela fiscalização e jurisprudência de suas atividades”, explica a pesquisadora.

O boticário Ezequiel Correa dos Santos

Entre os casos reais dessa prática, Ezequiel Correa dos Santos é o mais citado. Diplomado boticário em 1819, praticou seu ofício na botica de José Caetano de Barros. Como um dos fundadores da Sociedade Farmacêutica Brasileira (1851-1878), pretendia “regularizar e garantir o exercício da farmácia no Brasil”. Assim, “combateu o charlatanismo que invadia o mercado brasileiro de remédios”, integrando “um seleto grupo que transformou suas farmácias em laboratórios de pesquisa de novos medicamentos”, fato que o levou ao isolamento do “primeiro alcalóide no Brasil, a pereirina, cujo preparado sob a forma de cloridrato foi amplamente empregado no combate à malária até o início do século XX”, explica Nadja dos Santos.

Extraído de Nadja Paraense dos Santos, "Passando da doutrina à prática: Ezequiel Corrêa dos Santos e a farmácia nacional". Química Nova vol.30 nº4 São Paulo Jul./Ago. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-40422007000400049&script=sci_arttext.

A trajetória desse boticário, segundo Verônica Velloso, revela as “mudanças por que passaram a farmácia e a química na transição entre o período joanino no Brasil e a constituição do império brasileiro”. Titulado em fisicatura, envolveu-se “com a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823 e a abdicação de Dom Pedro I, em 1831, quando foi reivindicada a extinção de todas as instituições representativas do Antigo Regime, incluindo a então denominada Fisicatura-mor. Em 1829, Ezequiel dos Santos tornou-se proprietário e redator do jornal Nova Luz Brasileira”, figurando entre as lideranças dos “liberais exaltados, que faziam oposição radical ao governo absolutista de Dom Pedro I”, conta a pesquisadora. Sua botica, na “Rua das Mangueiras, atual Visconde de Maranguape, na Lapa, era o local anunciado nas páginas de seu jornal para a realização das assinaturas e, com certeza, servira de espaço para discussões políticas”, continua. Além dessas ações, Ezequiel dos Santos também reivindicava a “elaboração de um código farmacêutico brasileiro” e valorizava as “preparações e especialidades farmacêuticas locais”, destaca Velloso.

Ela conta que, filiado a diferentes “associações de cunho político e científico”, em 1835, Ezequiel dos Santos presidiu a seção de farmácia da Academia Imperial de Medicina. Em 1851, “como boticário da Casa Imperial”, participou da “fundação da Sociedade Farmacêutica Brasileira, a qual presidiu até o seu falecimento, em 1864”, continua. Além dele, “muitos outros farmacêuticos dessa época e de gerações seguintes poderiam ser citados, destacando os seus próprios filhos”: Ezequiel Correa Santos Junior e Ernesto Frederico dos Santos, exemplificando “a farmácia familiar” que, segundo a pesquisadora, pode ser interpretada “como uma herança das boticas medievais, um ofício que passava de pai para filho e que era executado nas suas próprias casas”. Outros nomes do século XIX também são lembrados por Verônica Velloso: Theodoro Peckolt e seu filho, Gustavo Peckolt (autor de História das plantas medicinais e úteis do Brasil e História das plantas alimentares e de gozo no Brasil); Edouard Jules Janvrot (na direção do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro); Eugênio Marques de Hollanda (também na direção do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro e no Laboratório da Flora Brasileira); além de Francisco Maria de Mello e Oliveira (no Laboratório de Química Orgânica e Inorgânica da Escola Politécnica).

Boticários, farmacêuticos e químicos

Diante desses exemplos da ficção e da realidade, bem como das contradições de uma época que mesclava o progresso através da ciência a uma realidade social brasileira que não correspondia de forma equivalente a tal desenvolvimento, é inevitável a seguinte questão: como definir o ofício do boticário e distinguí-lo daquele exercido pelo farmacêutico ou pelo químico? Segundo Verônica Velloso, de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, a atividade do boticário está ligada ao comércio; e o seu espaço, a botica, tem sua origem na “palavra grega apotheke = depósito” e na “mediação do francês com a palavra boutique”, adquirindo a ideia de loja. Significação semelhante é oferecida pelo dicionário de Raphael Bluteau, Vocabulário português e latino, onde os boticários estão associados à posse de uma botica, à venda de drogas medicinais e à realização de mesinhas, como se fossem “cozinheiros dos médicos”; numa atividade que adquire status menor e subserviente pelo seu caráter mecânico ligado à preparação e venda do medicamento, esclarece Nadja dos Santos.

De acordo com ela, a botica e o boticário surgiram na Europa, a partir do século VIII, através de uma “incipiente divisão do trabalho médico”. No Brasil, os anos 1530 marcaram a chegada dos primeiros “cirurgiões barbeiros, boticários e seus aprendizes”, que traziam “caixas de botica” com “instrumentos de lancetar, sangrar, cortar e serrar, e mais os remédios”. Assim, a função de farmacêutico era exercida pelos portadores de tais “caixas”, os quais se tornaram “os primeiros ‘donos’ do ofício”. “A fiscalização do exercício profissional e do comércio de drogas efetuou-se, nos três primeiros séculos, através dos delegados ou comissários do Físico-mor e do Cirurgião-mor do Reino, até 1782, quando o governo de D. Maria I criou a Junta do Protomedicato, com sede em Lisboa e delegados no Brasil”, conta Nadja dos Santos. Iniciada no século XVIII, a “institucionalização e a profissionalização da ciência” trouxeram consigo “a substituição dos práticos e boticários por farmacêuticos”, gerando “mudanças no modelo de transmissão do conhecimento e de formação profissional”, continua. Ou seja, em lugar do aprendiz, surge a universidade e, com ela, título, carreira e status, considera a pesquisadora.

No século XIX, farmacêuticos ligados às associações científico-profissionais dedicavam-se à discussão de sua diferença em relação aos boticários, numa tentativa de “afirmar o estatuto de ciência para a farmácia”, pois a designação “farmacêutico” ganhou caráter oficial com a criação do respectivo curso de formação no Rio de Janeiro e na Bahia, em 1832. “Quem se formava por esse curso deveria, então, ser denominado de farmacêutico, formação distinta da do boticário, que aprendia o seu ofício na prática, sem frequentar um curso acadêmico”, explica Verônica Velloso.

Ela conta que partir dos anos 1870, reuniões do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro passaram a interpretar a falta de distinção entre tais ofícios como “sinal de atraso em relação a outros países”, associando “a terminologia e a figura do boticário às corporações de ofício da Idade Média e ao praticante de alquimias excêntricas”. Em oposição, o farmacêutico refletia “o moderno, o profissional que trabalhava num laboratório e utilizava a química para comprovar a eficácia de suas fórmulas”. Assim, procurava-se atentar para as distinções a fim de “denunciar o exercício ilegal da farmácia”, esclarece. Em contrapartida, eram expedidas, por parte do órgão governamental responsável, a Junta Central de Higiene Pública, licenças para o exercício da farmácia por leigos. A alegação para tanto era de que “os dois únicos cursos farmacêuticos que existiam no país eram insuficientes para atender às necessidades”, fato que, na ótica de Verônica Velloso, tornava ficcional “a distinção entre boticário e farmacêutico”.

Ela aponta que outro fator dificultava o estabelecimento da distinção entre tais ofícios. Além da titulação conferida aos farmacêuticos, havia “aquela dada aos boticários pela Fisicatura, o órgão responsável pela fiscalização do exercício das artes de curar e pela concessão de cartas a físicos, boticários, médicos práticos e curandeiros”. A Fisicatura foi criada no reino português (1810), e suas funções foram transferidas, no Brasil, para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e para a Junta Central de Higiene Pública. Com isso, não é surpresa alguma o fato de que o “próprio presidente da primeira associação farmacêutica no Brasil, a Sociedade Farmacêutica Brasileira, Ezequiel Corrêa dos Santos, fosse um boticário” titulado quando ainda não havia cursos farmacêuticos. Na mesma época, o químico – diferentemente do boticário e do farmacêutico – poderia ter qualquer uma das formações anteriores e, até mesmo, a de médico ou de engenheiro, uma vez que não existia curso superior na área em terras brasileiras, explica Velloso.

Na mesma sociedade (posteriormente rebatizada como Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro), a presença de “farmacêuticos/boticários, químicos, naturalistas, botânicos, médicos clínicos e até mesmo droguistas” refletia a união e a tensão existentes em tamanha heterogeneidade. Entre as discordâncias, por exemplo, figuram a comercialização de “produtos químicos tóxicos” e a assistência à população por parte das farmácias, invadindo o exercício legal da medicina garantido aos médicos clínicos; esses últimos, por sua vez, “costumavam preparar medicamentos mesmo havendo farmácias no local, burlando também as leis a respeito”, continua a pesquisadora. Em contrapartida, concordavam com a “proposta de formação acadêmica, o que lhes conferia a qualificação de homens de ciência, o apelo à polícia médica para corrigir o exercício ilegal de suas ocupações, com fins de diferenciarem-se de um mercado informal que crescia vertiginosamente”. Isto é, “o farmacêutico não deixava de supervalorizar a disciplina da química na sua formação, já que esta, ao permitir que ele testasse os seus medicamentos, reforçava o sentido científico de suas atividades, de acordo com a concepção de ciência na modernidade”, conclui Velloso.

Segundo Nadja dos Santos, “os farmacêuticos e os químicos são personagens mais difusos”, pois adentram, ao longo do tempo, instituições de perfis variados, como “universidades, fábricas, laboratórios de pesquisa, farmácias oficinais, drogarias, órgãos profissionais e ministérios estatais”. O último grupo é composto por “egressos da medicina ou da farmácia, da metalurgia e de outras áreas tecnológicas”, garantindo “uma diversidade imensa nas modalidades de formação do químico”, diz a pesquisadora. Assim, “desde o início do século XVII, há uma preparação formal teórica e prática do químico vinculada estreitamente, como quimiatria, ao ensino da medicina e, mais tarde, como química aplicada, às atividades tecnológicas”, levando a química ao “gradativo afastamento” da área médica para outras áreas “ligadas à atividade econômica”, fator que “contribuiu para o estabelecimento de uma química independente”, completa Nadja dos Santos.

Heranças dos boticários

Na atualidade, é possível observar reflexos das ações dos antigos boticários em empresas que se consolidaram, ao longo das décadas, adaptando-se às inovações técnicas e científicas ligadas à prática da química. A Granado Pharmácias é um exemplo, resultado do trabalho de três gerações da mesma família, cuja primeira botica foi fundada na cidade do Rio de Janeiro, em 1870, pelo português José Antônio Coxito Granado. Com a simpatia de Dom Pedro II, ganhou o título de Farmácia Oficial da Família Real Brasileira. Entre os seus produtos mais conhecidos estão o Polvilho Antisséptico (1903), cujo registro foi aprovado por Oswaldo Cruz. No campo das ideias, a botica foi responsável pela edição do almanaque anual Pharol da Medicina, entre 1887 e 1940. Hoje, de acordo com informações presentes em seu portal institucional, tal empresa é presidida pelo inglês Christopher Freeman.

À esquerda, a Granado Pharmácias no século XIX.À direita, a botica atualmente.