O auditório de um grande hotel da capital dos EUA estava
lotado por uma platéia ansiosa. Era o dia quinze de
fevereiro de 1978, e a Associação Americana para
o
Progresso da Ciência (AAAS) promovia um simpósio
para a
discussão da sociobiologia, nova disciplina da biologia
comportamental que prometia construir uma ponte entre as
ciências
naturais e sociais, com base nos princípios
evolucionários
e darwinistas. Alguns de seus maiores defensores (como o
biólogo
evolutivo William D. Hamilton), e de seus críticos (como o
paleontólogo e escritor científico Stephen Jay
Gould),
estavam presentes.
O clima era tenso. A sociobiologia era um
sucesso de
público, mas estava sendo tratada, por amplos setores da
academia, como uma forma moderna de eugenia e de ciência
reacionária. Quando chegou a hora da
apresentação
de seu fundador mais ilustre, Edward O. Wilson (renomado naturalista
e maior autoridade mundial no estudo das formigas), o
auditório
foi invadido por manifestantes com palavras de ordem e cartazes, nos
quais apareciam os símbolos nazistas. Como complemento ao
protesto, o conteúdo de uma jarra
d’água foi
despejado na cabeça de Wilson.
Descontados o exagero e a inusitada
violência da
manifestação, é importante entendermos
como uma
questão científica pôde atingir um
nível
tão alto de radicalismo político. Por situar-se
em uma
fronteira epistemológica, o estudo biológico do
comportamento humano sempre representou uma interface entre a
biologia e as ciências sociais, sendo a história
da
controvérsia sociobiológica bastante reveladora
quanto
às possibilidades e limites das
relações entre
as duas áreas.
A sociobiologia
nasceu como um ramo da ciência do comportamento animal (a
etologia) que se interessa primariamente pelo comportamento social.
Sua metodologia está fundada na
utilização de
modelos neodarwinistas aplicados aos dados tradicionais da
própria
etologia e da psicologia, combinados à ecologia e
à
genética de populações, buscando
determinar como
os grupos sociais evoluem e se adaptam aos seus ambientes. É
uma disciplina francamente darwinista, no sentido de conceder
importância central à
evolução do
comportamento social com base no mecanismo da
seleção
natural. A sociobiologia é o corolário de uma
série
de novas teorias e modelos sobre o comportamento e sobre a
seleção
natural formulados nos anos sessenta e setenta, sistematizados em
duas obras de divulgação: Sociobiology:
the new
synthesis (1975), de Edward O. Wilson, e The
selfish gene
(1976), de Richard Dawkins.
Na origem da disciplina está a
tentativa de se
responder a uma das principais interrogações da
ciência
do comportamento: como é possível a
cooperação
e o altruísmo? Nesta tentativa a sociobiologia construiu uma
poderosa crítica às
explicações propostas
pela etologia clássica a respeito dos comportamentos
sociais.
Homens como Konrad Lorenz e Nicolaas Tinbergen (entre outros),
trabalhando em meados do século XX, adotavam uma
noção
rígida de “instinto” –
entendido como um
comportamento estereotipado e imutável – e na
idéia
de que a seleção natural atua não
sobre as
variações individuais, mas sobre grandes grupos
de
indivíduos, como as espécies e as
raças.
As adaptações
comportamentais seriam, neste ponto de vista, selecionadas com vista
ao “bem-da-espécie”. Um exemplo disso
era a
explicação para o fato de que os combates entre
indivíduos da mesma espécie assumem, muitas
vezes, uma
forma ritualizada, o que impede maiores danos e ferimentos. Isto era
visto como uma adaptação para o
benefício da
espécie como um todo, sem nenhuma
explicação dos
mecanismos através dos quais os indivíduos
poderiam
retirar algum benefício desta fidelidade ao conceito (muito
humano) de “espécie”.
A partir dos
anos sessenta uma série de autores (como George C. Williams,
John Maynard Smith, William D. Hamilton, Robert Trivers) passou a
criticar esta perspectiva “holística” em
alguns
artigos seminais. A premissa básica desses trabalhos era
–
ao contrário da teoria do
“bem-da-espécie”
– realmente baseada no darwinismo: a
seleção
natural atua sobre os genes e sobre suas “máquinas
de
sobrevivência” que são os organismos
individuais,
e jamais sobre as espécies, raças ou classes
sociais.
Partindo deste princípio, qualquer discussão
sobre as
sociedades animais – incluindo as humanas – deveria
fazer
referência às vantagens auferidas pelos
indivíduos.
Um exemplo típico do novo
paradigma foi o estudo
de John Maynard Smith, revelando que os combates ritualizados servem
para que os indivíduos avaliem a força ou os
recursos
do oponente e possam fazer opções
estratégicas,
como lutar até a desistência do
adversário mais
fraco ou desistir perante um mais forte. Baseando-se na Teoria dos
Jogos (um instrumento matemático desenvolvido nas
ciências
econômicas), Maynard Smith mostrou que os
indivíduos
buscam preservar a possibilidade de que seus genes possam ser
beneficiados em uma ocasião mais propícia.
É claro que os animais nada
sabem sobre genes: o
que acontece é que a seleção natural
eliminou
aqueles indivíduos que simplesmente se atiravam ao combate
sem
uma avaliação de suas possibilidades de
vitória,
e que eventualmente acabavam por serem mortos, e aqueles
indivíduos
que sempre fugiam, privilegiando assim os genes que levavam os
indivíduos a apresentarem um comportamento
estratégico
e oportunista. Isto acabou por se tornar um dos pontos
básicos
do raciocínio sociobiológico: os animais
não
agem por “instintos” (termo, aliás,
ausente na
maioria dos trabalhos de sociobiologia) imutáveis, mas antes
têm a possibilidade de fazer opções
dentro de uma
gama herdada de comportamentos possíveis.
A seleção natural
favorece aqueles
comportamentos que difundem os genes de um indivíduo
não
apenas ao aumentar o número de seus próprios
descendentes, mas também os de seus parentes
próximos,
como irmãos e irmãs, que possuem muitos dos
mesmos
genes. É isto que explica, em parte, a existência
de
indivíduos estéreis em várias
espécies
(como formigas e cupins): eles ajudam a reproduzir cópias de
seus genes através de indivíduos aparentados
férteis,
como a rainha em uma colméia.
A evolução
também permitiu o surgimento de comportamentos
altruísticos
dirigidos a indivíduos que não partilham os
mesmos
genes, o chamado altruísmo recíproco.
A seleção
favoreceu aqueles comportamentos baseados na estratégia do
“olho por olho”, privilegiando os genes que levam
os
indivíduos a ajudarem não aparentados na medida,
e
somente na medida, em que exista uma expectativa de reciprocidade por
parte do indivíduo que recebe o benefício.
Os indivíduos que sempre agiram
de forma
totalmente egoística, nunca retribuindo os
benefícios
recebidos, acabaram por não receber mais
benefícios,
deixando de produzir novas cópias de seus
próprios
genes. Contudo, sempre que houver a possibilidade oportunista de se
auferir algum benefício, sem a devida reciprocidade,
é
esperado pela teoria sociobiológica que surjam
indivíduos
abertamente egoístas. Características humanas
como a
ética, a religião ou as leis possuem, para a
sociobiologia, uma profunda razão de ser em termos de
seleção
natural: elas surgiram como mecanismos de punição
aos
indivíduos que procuram fugir da reciprocidade, fornecendo
uma
base para a vida social em uma espécie cuja principal
adaptação é a
produção de cultura.
A sociobiologia tornou-se o paradigma
dominante nos
estudos do comportamento social dos animais. Contudo, as tentativas
dos sociobiólogos em se utilizar desses esquemas
teóricos
para explicar comportamentos e instituições
humanas,
como o ciúme e o adultério, ou a monogamia e a
guerra,
foram claramente rechaçadas pelas ciências
sociais,
especialmente por antropólogos como Marshall Sahlins e
Clifford Geertz. Afinal, a sociobiologia negava alguns
princípios
que foram básicos para a constituição
das
ciências sociais como área do conhecimento.
Dentre esses
princípios está a
constatação de que os
homens apresentam óbvias semelhanças de
comportamento
no interior dos grupos sociais e diferenças marcantes entre
os
vários grupos. Estas diferenças entre os grupos
não
podem estar associadas a uma suposta diversidade biológica
(como queriam as teorias racio lógicas do século
XIX),
dados os inúmeros casos conhecidos de rápida
mudança
social e de trocas culturais entre grupos bem distintos.
Além
disso, a biologia contemporânea demonstrou que a maior parte
da
diversidade biológica se dá entre
indivíduos,
e não entre populações ou
“raças”.
Por outro lado,
as crianças nascem, em todos os lugares, com as mesmas
características e capacidades, e com as mesmas
potencialidades
em termos de desenvolvimento. Este é o princípio
conhecido como unidade psíquica da humanidade.
Ora, as
crianças são semelhantes, mas os adultos diferem
em um
alto grau. Como uma “constante” (a unidade
biológica)
não pode explicar uma
“variável” (as
diferenças entre os grupos), as ciências sociais
tendem
a considerar que a “natureza humana” não
pode ser
a causa da organização mental dos humanos
adultos, de
seus sistemas sociais, de suas culturas e de suas mudanças
históricas. Essas características devem ser
adquiridas
culturalmente, pelas crianças, no
decorrer do
desenvolvimento.
Para muitos cientistas sociais, a nova
biologia do
comportamento, quando aplicada aos humanos, desconsiderava a
diversidade cultural, naturalizava comportamentos e
instituições
ocidentais e confundia processos evolucionários de natureza
cultural e histórica com a evolução
darwiniana.
Como disse Clifford Geertz, “a sociobiologia é um
programa de pesquisa em degeneração, fadado a se
esgotar em suas próprias confusões”.
O fato é
que a oposição humano/animal
é algo
profundamente inscrito no pensamento ocidental, e a visão
que
temos sobre os animais é o fator constituinte
básico da
visão que temos sobre os homens. O dualismo
clássico da
tradição ocidental (mente/corpo; humano/animal;
natureza/cultura) reflete-se na divisão de trabalho das
disciplinas acadêmicas, ou seja, ciências
naturais/ciências sociais.
Desta forma, é certo dizer que
os sociobiólogos
foram com demasiada sede ao pote, e pagaram um preço bem
alto
por isso. A esperança dos fundadores da sociobiologia era a
de
que seus modelos se tornassem dominantes também nas
ciências
sociais, mas a sociobiologia acabou sendo percebida como mais uma
forma de darwinismo social. Os cientistas sociais desconsideraram a
revolução científica no estudo do
comportamento,
temendo a utilização política da
biologia, que
trouxe, no passado, conseqüências
terríveis para a
humanidade, como a eugenia e o nazismo.
É
verdade que a idéia de que somos como uma folha de papel em
branco, uma tábula rasa, não
mais se sustenta,
tendo em vista a constatação de que muitos
comportamentos humanos possuem uma base biológica.
Não
obstante, é também verdade que uma efetiva
incorporação
desse conhecimento ao estudo do comportamento humano somente
ocorrerá
quando este puder se articular com a noção de que
o
nosso ambiente é a cultura, e de que isso torna o
homem
uma espécie necessariamente distinta das outras. O campo
continua aberto para o diálogo, mas precisamos, talvez, de
uma
nova revolução.
João
Azevedo Fernandes é professor do Departamento de
História,
Universidade Federal da Paraíba.
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