Desde o século XVII que o
conhecimento e a técnica vêm se desenvolvendo de um modo
que, paulatinamente, vai quebrando paradigmas no campo do
conhecimento e do agir humanos. A biologia, sobretudo a genética
através da engenharia e da articulação com
outros setores tecnocientíficos, trazem a partir dessas
mudanças, questões inéditas para a humanidade.
Os filósofos da biologia de 30 anos atrás, para não
ir muito longe, foram visionários e recortaram um grave
território de preocupações no campo da moral e
da ética científica. Algumas delas foram concretizadas
na Segunda Guerra Mundial a partir das experiências médicas
genéticas dos nazistas.
O primeiro trabalho sobre a
estrutura da molécula DNA, “uma hélice dupla”
(sigla em inglês do ácido dessoxirribonucleico) foi
publicado na revista Nature em 1953. Os pioneiros da biologia
molecular foram Watson e Crick que constituem um marco no
desenvolvimento científico, e até compõem
personagens de obras literárias. Esses fatos já fazem
parte, inclusive da literatura nacional, quem não lembra de
João Ubaldo Ribeiro e o O sorriso do lagarto? Eis
quando se descobre o “coração da matéria” e
se abrem as portas para um novo olhar e um novo agir sobre a vida,
sobre a matéria, que coloca em risco o futuro da humanidade
pelo alto grau de intervencionismo nos seres vivos, cujas
conseqüências para o futuro são imprevisíveis.
A engenharia é
o conhecimento prático, a arte, a técnica, que permitia
antigamente e ainda permite a projeção, o desenho e a
construção de artefatos materiais de diversos graus de
complexidade para uso humano, que lhes facilitem a vida e
complementem o que a natureza oferece para a sobrevivência. É
preciso atravessar o rio, portanto é preciso construir uma
ponte, nem que seja com o tronco rústico de uma árvore,
ou com madeiras engenhosamente dispostas ou com a sofisticação
das pontes modernas das grandes cidades contemporâneas, onde é
necessário usar materiais: madeira, ferro, cimento e muitas
outras substâncias complementares. Os protótipos são
reversíveis na engenharia tradicional, pois são feitos
de matéria inerte. Um engenheiro pode construir e destruir mil
vezes sua construção original.
A diferença
entre a engenharia tradicional e a biológica/molecular/genética
é que na primeira os protótipos se fabricam com matéria
inerte, inorgânica, eles podem ser, mil vezes experimentados.
Na matéria viva, biológica, genética, qualquer
erro é definitivo, irreversível, irreparável.
Este fato é o que dá o diferencial fantástico da
VIDA e o que parece estabelecer um limite ontológico
definitivo para a ação humana sobre as espécies
e sobre si mesma.
Deste modo, a vida – transformada em novos produtos para o mercado – nas suas múltiplas e variadas expressões, com estruturas que contêm e transmitem a hereditariedade das várias espécies de seres vivos, transforma-se em objeto de manipulação tecnocientífica, seja no caso de modificação genética seja no caso das recombinações genéticas (genes de diferentes espécies).
O Projeto Genoma Humano é um exemplo relevante dos novos produtos (“originais ou derivados”) do mercado biotecnológico que deflagram disputas econômicas entre as grandes corporações. A procriação humana inclui-se também nessa vontade cultural de objetivação, re-desenhos dos corpos e mercantilização da vida molecular. Busca-se atingir, através da tecnologia reprodutiva e genética, o instante máximo de separação da sexualidade humana e da reprodução, e aprimora-se a exacerbação mecanicista da instrumentalização biológica de homens e mulheres. Os fatos tecnocientíficos abrem fronteiras inestimáveis de liberdade reprodutiva em territórios de absoluto niilismo ético. No campo da reprodução humana cabe indagar sobre a natureza dessa liberdade. Sua base é mercadológica e eugênica, dado que as novas gerações são objeto de melhoramento constante em função dos padrões e das demandas da cultura. Tende-se a acreditar que a genética desenha o destino das pessoas, que serão superiores ou inferiores, evitará a existência de seres defeituosos, deficientes ou fora de padrões considerados de elevada beleza ou inteligência ou, pelo contrário, poderá compor seres preparados para os trabalhos mais brutos, totalmente desumanizados.Nas últimas
décadas os eventos tecnocientíficos têm alcançado
tal dinamismo que proezas artificiais contemporâneas nos
permitem comer alimentos produzidos pelo entrecruzamento, no
laboratório, de genes de diferentes espécies ou de
espécies “melhoradas” (tomates com cheiro de limão
ou tomates que não amassam), de cereais diversos em um só,
de medicamentos personalizados que prometem descartar a possibilidade
de doenças hereditárias, entre outros.
A engenharia
genética promete uma inédita modificação
do corpo humano e ainda incipiente para cobrir as expectativas
imaginárias e econômicas de vários setores
ligados à medicina e áreas afins.
Entretanto,
essa modificação pode dar-se de forma “inadvertida”.
Por exemplo, através do uso de técnicas genéticas
ligadas à reprodução humana, tais como o
Diagnóstico Genético Pré-Implantacional (DGPI),
o rejuvenecimento de óvulos ou heteroplasmia mitocondrial, a
Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide
(ICSI). Estas, no contexto das Novas Tecnologias Reprodutivas, não
são técnicas de engenharia genética
propriamente ditas. A ICSI surgiu sem nenhuma experiência
prévia em animais, sendo realizada diretamente em humanos. Os
especialistas não têm consenso sobre os efeitos na saúde
dos bebês. Organizações não
governamentais, que atuam na área de ciência, tecnologia
e sociedade, da Europa e dos EUA apontam que essas técnicas,
embora não sejam de engenharia genética, são
técnicas de modificação genética
realizadas nas células germinativas. A heteroplasmia
mitocondrial pode dar lugar a mais de cem doenças, como
alterações no sistema nervoso, problemas
cardiovasculares, convulsões permanentes e demência. Na
realidade, ninguém sabe o que a introdução de
DNA mitocondrial pode causar, mas nem por isso a técnica deixa
de ser usada.
Na agricultura, os
procedimentos transgênicos foram pensados em função
de melhorar a relação da produção com a
natureza. Para aumentar o lucro, garantir a qualidade e evitar
riscos, os proprietários das grandes corporações
biotecnológicas decidiram “melhorar” a natureza no sentido
de evitar pragas e os obstáculos do desenvolvimento natural.
Em primeiro lugar foram os agrotóxicos, logo os transgênicos,
sem maiores análises e preocupações com os
efeitos sobre o meio ambiente e a saúde humana.
A idéia de
melhoramento está profundamente, diríamos,
epistemologicamente, arraigada nos procedimentos de tecnologia
recombinante: para que se “ recombinam” artificialmente as
espécies? Sabe-se que há animais que carregam genes
humanos, seja para a produção de leite ou de futuros
órgãos artificiais ou de produção de
medicamentos. Sem perceber vivemos uma fase de seres vivos mutantes.
Por que o uso cada vez mais banal do DGPI no campo da reprodução
humana? A primeira justificativa é para evitar doenças
graves (em nome do BEM), mas já são comuns as
declarações dos próprios cientistas no sentido
do uso da engenharia genética para melhoria da raça
humana e para aperfeiçoamento da espécie. Trata-se da
origem de um sistema eugênico tecnológico de muita
complexidade e sutileza para ser desmontado, pois sempre é
apresentado sob a justificativa do bem, da beleza e da justiça.
Evidentemente que haverá quem estabeleça os critérios,
os valores, o que é melhor para quem. Esses “quem” devem
ser postos politicamente num horizonte de muita claridade pois é
evidente que seus objetivos revertem positivamente para a sustentação
da fase neoliberal do capital contemporâneo. Quem se aproveita
da ciência e da tecnologia para a criação de um
mundo que começa a ultrapassar o horizonte do humano tal como
tem sido até agora?
Se bem é
verdade que nos últimos anos no campo ético, jurídico,
tem havido um movimento no sentido de permitir, favorecer a
apropriação e mercantilização da vida,
sobretudo através das leis de patenteamento, e tem se
transformado um campo rico de reflexão em uma bioética
cientificista, oficialista, oportunista e legitimadora da imbricação
da ciência, das novas tecnologias e do capital, nos resta como
seres humanos um novo e derradeiro olhar sobre a nossa natureza
É
fundamental recriar o debate entre ética, ciência e
sociedade e revisar, sob possíveis novos referenciais, a
epistemologia e ontologia do conhecimento contemporâneo sob a
ótica dos procedimentos tecnológicos de última
geração. O grande potencial é gerar capital em
novas formas. Os recursos biológicos, genéticos e o
imenso valor da informação por eles geradas na
intersetorialidade tecnocientífica que configuram novas fases
da economia. É preciso contextualizá-la em um universo
ético, válido basicamente para toda a humanidade. A
relação entre o conhecimento biológico/genético
com o capital conduz muito rapidamente a pensar nos resultados
eugênicos.
Um efeito eugênico
que salta a primeira vista é que novas tecnologias trazem
novas formas de eugenias, embutidas no uso de técnicas
avançadas. A medicina científica de alta complexidade
tecnológica é eugênica a partir da negação
do acesso às populações mais pobres.
O
aconselhamento genético, no campo da medicina científica,
constitui uma porta aberta ao uso da genética em um horizonte
interdisciplinar, especializado em informar para reduzir a incidência
de anomalias genéticas. Entretanto, sabemos que o
cientificismo de mercado nos faz suspeitar fortemente do uso ético
do aconselhamento genético. Trata-se de um campo crivado de
riscos, não só do ponto de vista da biologia molecular
mas, e sobretudo, dos valores sociais e éticos dos quais são
portadores tanto os profissionais quanto os pacientes. As decisões
devem ser tomadas a partir da identificação do que é
normal e anormal, as projeções dos riscos sobre as
gerações futuras, as bases éticas, culturais e
ideológicas que baseiam a decisão de interromper ou não
uma gestação, a condução dos valores
heterogêneos que caracterizam o grupo familiar, o respeito à
autonomia da mulher, entre outros. A eugenia pode ancorar na própria
relação entre profissional e paciente dessa área,
pode resultar em uma “melhoria” discriminatória da espécie
humana.
A reprodução
humana associada à engenharia genética perfila um mundo
difícil de precisar, pois indica a realização de
um passo além da humanidade dado pelo próprio ser
humano. Assinala um horizonte pós-humano, segundo alguns
estudiosos. Alguém pensou como seria no futuro uma família
transgênica? E o sentido do próprio conceito de eugenia
na família futura? Alguém conhece as esculturas de
Patricia Piccinini, uma escultora
australiana? Aconselhamos conhecê-las para continuar alargando,
através da reflexão e do agir críticos, o
profundo sentido de responsabilidade humana que devemos exercer.
Alejandra
Rotania é mestre em ciências sociais, doutora em
engenharia de produção e coordenadora executiva de
projetos e programas do Ser Mulher – Centro de Estudos e Ação
da Mulher.
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