Em
vários animais já foram descritos casos de
comportamentos inventados por um indivíduo e aprendidos por
outros do grupo. Há casos clássicos entre os
primatas.
Em chimpanzés têm sido observadas as
possibilidades
destes se reconhecerem e atribuírem individualidades a
outros
de sua espécie, de classificarem plantas e
selecioná-las
para sua alimentação, de usarem ferramentas para
obter
alimento, de ensinarem a seus filhotes, de cooperarem para solucionar
problemas e de criarem estratégias sociais de
comunicação,
inclusive aprendendo linguagens de sinais dos humanos. Esses
comportamentos descritos por pesquisadores das ciências
naturais escapam às explicações
genéticas
e têm sido associados à
noção de cultura
em animais. Mas seriam esses resultados suficientes para dizer que os
animais são seres culturais? A resposta à
questão
não parece ser simples mesmo para os pesquisadores. Para
alguns, afirmar categoricamente que animais não
têm
cultura é esquivar-se de um interessante debate que os
resultados dos estudos em comportamento animal podem promover.
O
uso da noção de cultura pelas
biociências
recoloca a discussão entre ciências naturais e
humanas,
em especial entre a biologia e a antropologia.
“Não
há mais consenso acerca de que os seres humanos sejam os
únicos a desenvolver vida coletiva complexa, produzir
cultura,
lutar por status e poder, reconhecer seus
semelhantes e
repassar conhecimentos para as gerações
futuras”,
comenta a cientista social Eliane Sebeika Rapchan, da
Universidade Estadual de Maringá. Para ela, esses resultados
colocam a necessidade de uma
aproximação
entre as áreas do conhecimento. Uma
aproximação,
entretanto, “difícil e delicada” porque
“tais
resultados têm o potencial de impactar as
representações
da natureza e, ao mesmo tempo, promover
alterações nas
relações entre as disciplinas envolvidas no
problema,
trazendo contribuições para o debate sobre as
relações
natureza/cultura ou ainda, para a redefinição das
fronteiras do que se entende por humano e
não-humano”,
argumenta.
Animais
têm cultura?
O
ecólogo Paulo Sérgio Moreira Carvalho de
Oliveira, do
Departamento de Zoologia, da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), diz que as pesquisas em comportamento animal têm
levado a uma resposta afirmativa para a questão, ou seja,
animais têm cultura. Oliveira define cultura como
“um
traço comportamental que passa para a
geração
seguinte por aprendizado ou por
imitação” e a
transmissão cultural como “a
transferência de
informação através do ensino ou do
aprendizado
social”. Apresenta vários exemplos observados em
animais: mães guepardo que machucam presas para ensinar os
filhotes a caçar; chimpanzés que usam folhas como
verdadeiras esponjas para recolher água de locais de
difícil
acesso, como troncos ocos de árvore; a
criação
de estratégias, por macacos, para quebrar frutos, batendo-os
contra pedras ou árvores; chimpanzés que usam
gravetos
para comer cupins, como se fossem “palitinhos de restaurante
chinês”. Estes comportamentos são
transmitidos
entre os indivíduos dos grupos por
imitação.
“Qual a diferença entre o que faz o
chimpanzé e
uma mãe que ensina uma criança a comer? Quando
ensinamos um filho a comer com um garfo, ou ensinamos um filho a
caçar, a buscar alimento, podemos considerar que esses
ensinamentos são traços culturais que estamos
transmitindo?”, pergunta-se o ecólogo.
“Bichos
fazem isso. Eles fabricam coisas, os filhos aprendem com os pais e o
uso dos instrumentos é perpetuado por
gerações,
por aprendizagem”, argumenta. (conheça mais do
pesquisador em sua
página pessoal).
Catação,
aprendizagem social, conflitos, cuidado parental, desenvolvimento de
técnicas de forrageamento, práticas sexuais,
posturas
corporais, criação e uso de ferramentas,
relações
entre mães e filhotes, hierarquia, são alguns dos
aspectos dos comportamentos animais que têm sido observados
por
estudiosos das ciências naturais e que são
relacionados
à noção de cultura.
Porém,
um dos problemas de se afirmar a existência de cultura em
animais, para o antropólogo Guilherme José da
Silva e
Sá, está na noção
“restrita”
de cultura que tem sido utilizada.
Perguntado se os
animais produzem e
transmitem cultura, respondeu: “Se cultura significa somente
produzir e transmitir práticas, com as quais nós
seres
humanos nos identificamos, eu diria que sim, mas tenho certeza de que
qualquer não-humano ficaria insatisfeito com as
limitações
implicadas nessa definição”. Afirmar
simplesmente
que os animais não têm cultura ou que cultura
é
exclusividade dos seres humanos é, para o
antropólogo,
esquivar-se de um debate importante para a biologia e antropologia. O
debate, que no Brasil atualmente não acontece, ou está
restrito a
pequenos fóruns, permitiria trazer discussões que
estão
na relação entre essas duas áreas do
conhecimento, bem como repensar suas formas de olhar e produzir
conhecimentos sobre humanos, não-humanos e suas
relações.
Guilherme
Sá, que faz
doutorado
em antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), e atua como professor na Universidade Federal de
Santa Maria, propõe
que toda e
qualquer discussão envolvendo a questão da
cultura em
não-humanos surja a partir de categorias próprias
aos
animais. “Nada muito diferente daquilo que conhecemos em
antropologia ao falar que uma determinada cultura tem seu significado
e lógica própria. É claro que isso se
torna
ainda mais árduo em função de nossa
inadequação
para operar do ponto de vista de um não-humano na sociedade
ocidental”, diz. Para o antropólogo, os animais
(não-humanos) sempre foram seres culturais, não
porque
apresentam este ou aquele traço específico, ou
porque
realizam determinada prática ou
função, mas
simplesmente porque há muito estão inseridos em
relações culturais. Ele sugere um deslocamento da
atenção dos termos humano e não-humano
para as
relações que os mediam, como possibilidade de se
encontrar cultura. “Uma idéia de cultura em
transformação e que relaciona esses coletivos de
humanos e não-humanos”, diz.
A
cientista social Eliane Rapchan também sugere que as
ciências
naturais ampliem a noção de cultura que
vêm
utilizando. No caso das “culturas de
chimpanzés”,
objeto de seu estudo de doutorado, ela identifica um isolamento na
forma como cada aspecto do comportamento é tratado pelos
pesquisadores. A ausência de estudos que focalizem as
interações de um comportamento sobre outro, no
interior
do mesmo grupo dificulta, na opinião de Rapchan,
“o
acesso à existência de algum tipo de sentido
nesses
comportamentos, caso exista. Esse é o outro aspecto
importante
pois o significado é algo central para a
noção
antropológica de cultura”. A pesquisadora ressalta
que,
para a etnografia, o registro do comportamento é incompleto
se
não estiver de algum modo associado aos seus
próprios
sentidos. Por isso a dimensão simbólica torna-se
central para a antropologia. Ela destaca os estudos que focalizam a
capacidade de simbolizar entre os não-humanos, como os
propostos por Steven Mithen, como uma “abordagem que melhor
atende ao debate sobre a existência ou não de
cultura
entre os chimpanzés”. (leia
mais no
artigo da
pesquisadora:
“Chimpanzés
possuem cultura? Questões para a antropologia sobre um tema
'bom para pensar'”
Bicho
também é gente
A
expressão acima leva ao extremo a idéia de
humanização
dos animais. Embora não seja nesse extremo que se situam os
estudos em comportamento animal, a biologia aposta na
humanização
dos animais como forma de compreender seus comportamentos. Os animais
usam ferramentas, tais como os humanos, ensinam os filhos, tais como
os humanos, fazem guerra e política, tais como os humanos.
Nesse caminho, também estão alguns movimentos em
defesa
dos animais, dos direitos dos animais, que apostam na
aproximação
entre humanos e animais para criar uma nova sensibilidade em
relação
aos não-humanos. O inverso também tem sido uma
aposta
das ciências biológicas: somos animais
também!
Entretanto, a antropologia aponta problemas nessa forma de
aproximação tanto para se pensar as
singularidades dos
humanos, quanto dos não-humanos.
Para
Guilherme Sá o problema reside em caracterizar cultura como
um
conjunto de práticas humanas e, mesmo sem perceber,
projetá-las sobre os não-humanos. O olhar
antropomorfizado (ver os animais como homens) limitaria a
compreensão
da cultura dos animais. “Certamente haverá muito
mais
cultura em um animal do que aquela a qual somos limitados a entender
enquanto humanos”, diz. O desafio seria pensar que, se os
animais possuem cultura, muitas coisas que eles fazem não
são
denominadas de “culturais” porque não se
assemelham com a cultura em humanos. “Para falar em
‘culturas
animais’ seria preciso pensá-la ontologicamente,
da
mesma forma que abordamos as culturas humanas. É preciso que
nos aprofundemos nas relações
intrínsecas
não-humanas, e para isso teremos que diminuir a
distância
que nos separa deles. Se o antropomorfismo é
incontornável,
que pelo menos este se dê na relação
que nos
aproxima enquanto condição, e não
naquilo que
nos distingue enquanto espécie”, sugere.
Já
Elenise Cristina Pires de Andrade, bióloga,
professora do ensino médio e doutoranda da Faculdade
de Educação da Unicamp, acredita que o uso da
noção
de cultura pelos estudos em comportamento animal irá
circunscrever o entendimento desses seres. “A
noção
de cultura limita o entendimento de humanos e não-humanos,
desenha uma estrutura de memória, visibilidade,
conhecimento,
sensibilidade. Cria uma bolha cultural identitária,
demarcatória dos indivíduos, sejam eles humanos
ou
não”, diz. Na opinião da pesquisadora, que
no mestrado buscou pensar “o ser ou o tornar-se
humano”
nos currículos de ciências, uma
ontologia dos não-humanos continuaria em busca da
essência
desses seres, assim como acontece com a noção de
cultura em humanos. “Como fazer um deslocamento que
não
procure as diferenças a partir de uma essência de
humanos e não-humanos?”, pergunta-se. E sugere que
talvez seja necessário pensar “que o humano passa
por
outros lugares, nas relações com todos os
seres-objetos, habitantes do mundo. A saída talvez seja
não
humanizar os animais, mas desumanizar o humano, não buscar
mais sua essência, suas características
intrínsecas,
mas tomá-lo em constante
transformação,
devir-qualquer-coisa”. (Conheça mais sobre as
idéias
da pesquisadora lendo o
artigo
“Vejo o que desejo, desejo o que vejo:
perturbações
curriculares com/nas/nos alunas, alunos e professora de pedagogia das
faculdades Network-SP”
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