I
Nasci em Sales Oliveira,
pequena e nada próspera cidade da velha Mogiana (com-g-, que era assim que os
trens e vagões traziam grafados o nome da companhia e levavam nossos sonhos de
conhecer mundos e vir para a capital). Mojiana (com -j-) era também o apelido
de um velho mendigo ranzinza que na juventude teria apostado muitas corridas
com trens de carga e de passageiros ganhando todas elas, não só na velocidade
mas também na altura do apito que seu peito soltava mais forte do que o de
vapor das máquinas.
Em Sales Oliveira, posta às margens da linha da
Mogiana com o progresso do café, cortada
pela estrada de rodagem que ligava São Paulo ao Triângulo Mineiro, em Sales Oliveira, de
onde acompanhamos, meninos, a passagem dos trens pela estação e a dos carros,
ônibus e caminhões que cruzavam a rua Voluntário Nélio Guimarães, a principal
da cidade, em Sales
Oliveira, pois, sentados nos degraus das portas da selaria de
meu pai e de meu tio Alberto, a mesma selaria, no mesmo casarão-sobrado que
fora de meu avô alsaciano, ali sonhamos viagens nos nomes das placas dos
caminhões; em Sales
Oliveira, descendente de alsacianos, alemães, italianos e
espanhóis, nasci no dia 6 de fevereiro de 1943.
No Grupo Escolar Capitão Getúlio Lima
fiz o primário. Como não havia ginasial na cidade, a prefeitura nos
transportava para Orlândia, 7
km distante, numa perua Opel dirigida pelo Amâncio. De 1954 a 1957 frequentei o ginásio
estadual de Orlândia e ali me diplomei. Em 1958 fui para Ribeirão Preto para
fazer o curso Clássico. Já queria vir para São Paulo, apesar das primeiras
paixões me convidarem a permanecer em Sales, ou nas vizinhanças. Meus pais
decidiram por mim. Era muito novo, São Paulo, longe, e a vida, perigosa. Fiquei
dois anos no Instituto de Educação Otoniel Mota. Finalmente, em 1960, vim para
a capital e concluí o curso Clássico no Colégio Estadual Presidente Roosevelt,
na rua São Joaquim, na Liberdade.
Em 1961, voltei para Sales Oliveira
até que em julho de 1962 tomei o trem na estação da Mogiana, retomei os estudos
em São Paulo e ingressei na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, à rua
Maria Antônia. Ingressei também na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Frequentava esta no período da manhã, e aquela no período da noite. Logo
abandonei o curso de direito: a gravata e o terno me incomodavam, e a
necessidade de trabalhar foi decisiva.
Na “Maria Antônia”, fiz o curso de letras
de 1962 a
1965 . Muitos fatores ajudaram a fazer com que o curso fosse apenas médio: o
gosto pelas leituras independentes, pelo cinema, pela política universitária
(fui presidente do Centro Acadêmico de Estudos Literários-Cael) e nacional, os
amores e o trabalho como professor.
Cedo comecei a dar aulas, muitas
aulas: no Departamento de Cursos do Grêmio da Filosofia, no Colégio Brasil
Europa.
Em 1966 só dei aulas. Em 1967,
comecei a frequentar, como ouvinte, o curso de 4º ano de teoria literária
oferecido pelo professor Antônio Cândido, de quem eu já fora aluno de teoria geral
da literatura, no 1º ano.
Mestre, primeiro, e depois também
amigo, o professor Antônio Cândido teria ao longo de minha vida pessoal
e intelectual um papel decisivo.
Quando acompanhei, em 1967, seu
curso sobre o romance Memórias
de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de
Almeida, compreendi definitivamente que estava diante não só de um grande
pesquisador, teórico e historiador da literatura mas também que tinha a rara e
feliz chance de conviver com um grande ser humano.
Em 1968, consegui desvencilhar-me
de algumas aulas e encontrar alguns vazios no trabalho, o que me permitiu,
ainda que restritamente, tentar inscrever-me num curso de pós-graduação. Falei
com o professor Antônio Cândido: fui aceito.
Foi um ano agitado esse de 1968, para
mim, para todos e principalmente para os jovens de minha geração. Inscrevi-me
na pós-graduação em letras, modalidade teoria literária, da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP. No primeiro ano, fiz o curso de teoria literária,
com o professor Antônio Cândido, e o curso de sociologia da literatura, com o
professor Rui Coelho.
Participei da ocupação da "Maria
Antônia", das “Paritárias”
e da resistência à invasão do CCC e da polícia aquartelados no Mackenzie. O
prédio foi incendiado, arquivos e bibliotecas violados pela direita oficial e
oficiosa; um estudante secundário foi morto na rua de nossos sonhos. Fomos
mudados para o prédio da Geografia e História, na Cidade Universitária.
Em 1969, fiz o 2º ano da pós-graduação
cursando teoria geral do cinema e teoria literária.
No ano anterior, a disciplina de teoria
literária havia sido oferecida sob a responsabilidade do professor Oswaldo
Elias Xidieh, pois o professor Cândido se encontrava em viagem ao exterior. Tive, então, a
oportunidade de conhecer, através de um curso magistral sobre literatura
popular e sobre fontes populares da literatura erudita, um homem dotado de uma
grande simplicidade aliada, de forma quase que paradoxal, a uma grande cultura
e erudição.
No curso de sociologia da literatura,
o cosmopolitismo e a cultura do professor Rui Coelho me fez viajar pelos
folhetins do século XIX e mergulhar em busca do tempo perdido com a
grande obra de Proust.
O curso de teoria literária, de 1969,
já com o professor Antônio Cândido de volta, foi todo sobre teorias críticas e
o meu trabalho de aproveitamento, um ensaio sobre o estruturalismo.
Foi nesse momento que passei a me
interessar de modo mais objetivo pela linguística, não ainda como um fim em si
mesmo, mas sobretudo como instrumento metodológico para o estudo da literatura.
Nos anos imediatamente anteriores
haviam estado em São Paulo
os professores Roman Jakobson e depois Tsvetan Todorov. Eram anos de apogeu do estruturalismo
europeu. As conferências no Teatro Aliança Francesa na rua General Jardim,
muito marcaram minhas opções intelectuais, sobretudo a do professor Jakobson
sobre a poesia de Fernando Pessoa, baseada num artigo escrito em colaboração
com a professora Luciana Stegagno Picchio publicado na revista Langages.
No meu curso de graduação, do ponto
de vista curricular, pouca atenção se dera à linguística, tanto que só fui
fazer um curso de introdução em 1965, já no 4º ano, embora já tivesse lido com
cuidado e minúcia, sob orientação do professor Isaac Nicolau Salum, na
disciplina de filologia românica, o fundamental Curso de Linguística Geral
de Ferdinando de Saussure.
Foi também em 1969 que comprei o que
viria a ser, durante todo o ano, uma espécie de bíblia da minha formação: o
livro Qu'est ce que le structuralisme? publicado pela Sueil e contendo
artigos de vários autores sobre o estruturalismo em diferentes áreas do
conhecimento. Foi nesse livro que primeiro vi o nome do professor Oswald Ducrot
responsável, aí, pelo trabalho sobre o estruturalismo em linguística.
De algum modo, esse contacto pela
leitura, visto mais tarde em flash-back, foi por mim
interpretado como o ponto de partida que me levaria a procurar o professor
Ducrot em Paris e a manter com ele
uma intensa relação
de amizade e de respeito humano e
intelectual.
Ainda em 1969, no curso de teoria e história
do cinema tive outra chance feliz: fui aluno do professor Paulo Emílio Sales
Gomes. Guardo o seu curso entre as melhores recordações da minha vida
intelectual e afetiva. Íamos, com a maior satisfação, alunos regulares e
ouvintes, convivendo com intelectuais e escritores de prestígio, toda
segunda-feira às 10 horas da manhã para o Teatro Aliança Francesa onde o curso
tinha lugar. Assistíamos à projeção de clássicos da história do cinema nacional
e internacional; vinham, em seguida, os debates e aí sim o brilho da inteligência,
da ironia, do espírito crítico e
polêmico do professor Paulo Emílio tomava conta do teatro, pelas observações
certeiras, pelo acertado das análises, pela sonoridade da gargalhada que sempre
coroava a graça e o humor que só ele, como ninguém, sabia achar nas mais
diversas situações.
Fiz, como trabalho de aproveitamento
para esse curso, uma análise de um filme japonês chamado A mulher de areia
que havia me impressionado bastante quando o vi e que sempre associei, por
caminhos mais afetivos do que intelectuais, à estória de Miguilim em Manuelzão
e Miguilim, de João Guimarães Rosa.
Voltando um pouco para trás, foi
também em 1968 que conheci um amigo que na época fazia cursinho para o
vestibular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Grande tocador de violão,
Naire procurava um parceiro letrista para as músicas que vinha fazendo.
Começamos a trabalhar juntos e fizemos várias composições, entre elas
"Senhora de luar" que recebeu o 3º lugar no Festival Universitário da
antiga TV Tupi. Algumas outras foram gravadas e, em 1969, em parceria com
Sorocabinha, um estudante de geologia
da USP compus "Urgente, urgentíssimo"
que recebeu o prêmio de 4º lugar no Festival Universitário desse ano.
Em 1967, a maior parte dos
professores do Cursinho do Grêmio, onde trabalhava há alguns anos, não aceitou a
intervenção que a diretoria do Grêmio da Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras da USP pretendia fazer no cursinho. Saímos quase todos e fundamos o
Equipe Vestibulares. A questão de fundo das diferenças estava ligada não só à
gestão do capital que o cursinho arrecadava mas também a pontos de vista
reversos, quando não contrários, quanto às formas de luta revolucionária e de
resistência aos governos militares. Muitos de meus colegas e amigos passaram para a clandestinidade da luta
armada, muitos morreram ou continuam desaparecidos, sem notícia exata de seus
destinos. Outros conseguiram
escapar, quando a
repressão recrudesceu o
empenho em destruí-los, e com eles me encontrei em Paris em 1971 e
depois no Chile, em 1973, alguns meses antes
do golpe de Pinochet. Outros ainda entregaram-se às
drogas, ou passaram a viver a utopia do pacifismo hippie.
Outros, como eu, seguiram no paciente
jogo de espera e de atuação democrática, a ver se um dia conseguiríamos ajudar
a mudar o estado de coisas reinantes no país do medo e da euforia: medo de
grande parte da população, euforia da classe média com o
milagre econômico e daquela mesma população com medo, diante dos
símbolos mais fáceis da grandeza do
país, a conquista do tri-campeonato mundial de futebol, no México, por exemplo.
Em 1966, fiz concurso para o ingresso
no magistério secundário. Obtive uma classificação não muito promissora, já que
não havia me preparado o suficiente e não tinha intenção firme de seguir essa
carreira. Em 1967 fui chamado para a escolha da escola onde deveria ensinar. O
mais próximo de São Paulo que consegui foi Porangaba, cidadezinha próxima a
Tatuí e não longe de Sorocaba. Fui, tomei posse no Ginásio Estadual Aldo
Angelim, para começar a lecionar no ano seguinte. A sensação que tomava conta
de mim, nessa perspectiva, era a de que estava voltando para Sales Oliveira e
pondo abaixo as esperanças de retomar os meus estudos.
Uma colega que lecionava comigo no
Colégio Brasil-Europa sugeriu-me que tentasse ficar lotado em São Paulo,
respondendo pelo expediente de uma diretoria das classes de extensão que,
então, se criavam e já eram muitas na capital. Foi o que consegui: a partir de
1º de março de 1968 começaria a responder pelo expediente da diretoria
das classes de extensão do Colégio Estadual e Escola Normal Jácomo
Stávale, que funcionariam no Grupo Escolar Almirante Marquês de Tamandaré, em Morro Grande, lá para
os lados da Freguesia do Ó.
Nessa função, fiquei menos de
dois meses. O que me levou a requerer minha exoneração do magistério secundário
foram dois fatores, fundamentalmente: o primeiro, e mais forte deles, a
situação de carência e quase abandono em que funcionavam as extensões. Não
tínhamos material, não havia funcionários, grande parte dos estudantes
trabalhava durante o dia como office-boys e à noite estavam mais para
o sono do que para a atenção. O único PM que tomava conta da escola para
impedir o assédio de marginais, que não eram poucos, fazia os serviços de inspetor
de alunos, recolhendo, carimbando e devolvendo suas cadernetas de notas e frequência.
Mesmo assim, recebíamos instruções regulares da Secretaria de Educação sobre as
comemorações e festividades pátrias, sempre explicitadas e enfatizadas as
obrigações de ensaios e a necessidade imperiosa de cumprí-las. Eram um pouco
demais. Comecei a me desgostar da função. Acrescido este desgosto com o fato ?
esse foi o segundo fator ? de que via, ainda que em São Paulo, dificultada a
possibilidade de realizar a pós-graduação em teoria literária, para a qual já
havia sido aceito, decidi-me e acabei me exonerando.
Os amigos não entendiam meu
gesto e me reafirmavam a loucura de tê-lo feito; deixar um cargo público
daquela maneira não tinha cabimento, ou, em falas mais idealistas, era preciso
permanecer nos postos e lutar de todos os pontos e de todas as formas, desde
que de dentro, para mudar o sistema. Não fui convencido.
Em 1969, deixei também o
Colégio Brasil-Europa. Continuei a lecionar português e literatura brasileira
no Equipe Vestibulares, tendo aceitado dar algumas aulas de português no Curso
Anglo-Latino.
II
No meu curso de graduação fui
aluno, na cadeira de francês, do professor Albert Audubert. Sempre tive por ele
uma grande admiração intelectual e um grande carinho. Penso que, nas proporções
devidas, era correspondido. Penso também que essa afeição mútua tenha tido
origem por ocasião do exame vestibular que prestei para ingressar no curso de letras
da "Maria Antônia".
Na época, havia ainda exame
oral para os candidatos. Na prova de francês, fui arguido pelo professor
Audubert e tive a felicidade de sortear como tema de exame Balzac e sua obra.
Era um dos autores franceses que mais conhecia na época e um dos que mais
admirava. Conhecia os múltiplos aspectos de sua vasta produção e havia lido não
só seus principais romances, como também folhetins e obras mais secundárias.
Foi um sucesso total. Desde, então, o professor Audubert, que tinha fama de
durão e de irascível, passou a tratar-me com uma cordialidade e uma atenção que
desmentiam, com justiça, a sua fama. Todas as vezes que nos encontrávamos
dizia-me que eu devia retomar o francês e que iria mandar-me para a França,
mesmo contra minha vontade.
No meio do ano de 1969,
encontrei-me com o professor Audubert no prédio da Geografia e História, na
Cidade Universitária. Confirmei-lhe minha disposição em aceitar o seu convite.
Combinamos um encontro em seu apartamento na alameda Santos. Quando fui
visitá-lo em agosto deu-me a notícia que mudaria definitivamente os rumos de
minha vida intelectual: tinha algo mais interessante a me propor. Estava sendo
criado, na jovem Universidade Estadual de Campinas, o Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas em cujo organograma estava previsto um Departamento de Linguística.
Era para este departamento que ele queria indicar o meu nome. O projeto era
contratar quatro professores, enviá-los imediatamente para Besançon, na França,
para fazerem uma licenciatura em linguística e, depois, um mestrado, na
mesma área.
Resolvia-se, desse modo, o
problema da parcimônia da bolsa que antes ele me oferecia, ao mesmo tempo em
que me engajava com um projeto que me dava a segurança de um trabalho atraente
e cheio de perspectivas, quando de meu retorno.
Talvez não consiga reproduzir
agora, passados já tantos anos desse acontecimento, a alegria sincera que
experimentei. Disse-lhe, contudo, que não era um especialista e nem tinha formação suficiente para aceitar a
responsabilidade de responder por cursos e de ajudar a criar um Departamento de
Linguística. Reafirmou-me que só começaríamos a trabalhar de fato na Unicamp depois do estágio de formação e treinamento
na França.
Aceitei o convite. O
professor Audubert deu-me uma carta de apresentação, dizendo-me que fosse
procurar em Campinas o professor Fausto Castilho, responsável pela direção e
pela implantação do IFCH.
Foi o que fiz. Procurei-o em
sua casa, conversamos, falou-me do projeto. Tinha estado em Besançon como
leitor da Faculté des Lettres et Sciences Humaines. Lá conhecera o professor Yves
Gentilhomme, que já estava convidado a vir a Campinas, no ano seguinte, e era
responsável pelos cursos de linguística geral na Univesidade de Besançon. O
projeto era de que tivéssemos não só uma formação em linguística, mas também em
matemática para que tivéssemos condições de desenvolver na Unicamp um departamento
que, além de suas atribuições específicas na área, pudesse ainda fornecer as
linhas metodológicas de integração das diferentes ciências humanas. Eram os
anos em que o estruturalismo, Levi-Strauss principalmente, havia alçado a linguística
à condição de ciência-piloto.
O professor Fausto Castilho
pediu-me que lhe desse mais informações a meu respeito. Quando soube que eu era
aluno do professor Antônio Cândido ficou muito satisfeito porque ele era uma
das pessoas responsáveis em orientar a formação do que viria, mais tarde, a ser
chamado Grupo de Campinas.
De volta a São Paulo, fui
procurar o professor Cândido para falar-lhe de meu contacto com o professor
Fausto Castilho e da indicação que havia sido feita pelo professor Audubert.
O incentivo que recebi foi
total e envolvente. Antes mesmo que lhe falasse da carta de referência,
anunciou-me que a escreveria. Esse é um documento que tenho como uma espécie de
totem de minhas transformações.
No dia 23 de outubro de 1969,
o professor Fausto Castilho solicitou ao
professor Zeferino Vaz, então reitor da Unicamp, a minha e a contratação de
três outros colegas — Carlos Franchi, Haquira Osakabe e Rodolfo Ilari — como instrutores,
em regime de tempo parcial, junto ao
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Em 1º de novembro, já estava contratado e
começava a preparar-me para a viagem.
Além do contrato, tivemos as
passagens e uma bolsa da Fapesp que, durante os dois anos letivos de nossa
permanência na França, significou um apoio, ao qual sou eternamente grato e
devedor.
No termo de compromisso
assinado com a Unicamp, a ida para Besançon me obrigava, como aos outros, a
obter primeiro a licenciatura
(1969-1970) e, em seguida, o mestrado,
na Universidade de Besançon, ou em outra universidade francesa, explicitando
que o título seria reconhecido pela Unicamp.
Deveríamos voltar ao Brasil
até o dia 15 de julho de 1971, assumindo funções no IFCH, em regime de dedicação exclusiva.
A partir dessa data, nossas
obrigações de atividades na Unicamp, sempre segundo o termo de compromisso,
seriam:
a) ministrar aulas
de linguística no "Studium Generale" de Ciências
Humanas;
b) ser aprovado, no mais tardar
três anos após o regresso ao Brasil, em uma das disciplinas do Grupo Ciências
Humanas dos dois anos do "Studium Generale", em obediência às normas
de integração interdisciplinar adotadas pelo IFCH;
c) ministrar, no IFCH, ou nos cursos de complementação curricular
dados pelo instituto junto a outras unidades de ensino e pesquisa, aulas de linguística
ou de outra disciplina para a qual tivéssemos qualificação hábil;
d) colaborar no ensino e na pesquisa desenvolvida pelo
CLA — Centro de Lingüística Aplicada — órgão anexo ao IFCH.
O projeto do professor Fausto
Castilho revelava o grande idealismo humanista de seu coordenador e fazia juz à
inteligência, à imaginação e ao empenho que sempre predicaram a sua vida, desde
os tempos em que mocinho, participava, com outros intelectuais, das reuniões na
casa de Oswald de Andrade e que certamente contribuíram para provocar, quando
esteve no Brasil nos anos 60,
a ida de Sartre a Araraquara, onde, então, lecionava filosofia
o professor Castilho.
Não se falava ainda em
Departamento de Linguística. Isto viria
mais tarde, com o tempo, com as lutas, com as necessidades surgidas ao longo do
processo, com as mudanças de rotas, que não foram poucas.
III
No dia 04 de janeiro de 1970,
tomei o avião da Varig com destino a Paris. No mesmo voo seguiam os outros três
colegas.
Em Paris, nos esperava o
professor Luiz Orlandi, da filosofia, que juntamente com os professores
Arantes, da antropologia, Villalobos, da sociologia e Barone, da matemática,
constituíam o primeiro grupo do projeto
do professor Castilho para a formação de um instituto de integração das ciências
humanas.
Em Besançon, onde chegamos
dois dias depois, encontramos os cursos já em andamento, pois, como se sabe, o
ano letivo na França começa em setembro.
Dificuldades e processos de
adaptação, cada um a seu modo, foram sendo vencidas umas e realizados outros.
O inverno foi bravo naquele
ano, sobretudo para quem só tinha visto e vivido neve em filmes, livros ou
cartão postal.
Fomos morar na Planoise, uma cité
distante uns 5 km
do centro da cidade, que, por sinal, é
muito bonita, cortado pelo Doub, rio alongando-se em peniches que o
cortavam, apontando para europas ainda desconhecidas.
Estávamos no Jura, perto de
Lausanne e de Généve, na Suíça.
Começamos, então, a
frequentar os cursos com vistas à obtenção da Licence és Lettres de
Linguistique. Eram vários os que
compunham o certificado (C1) de linguística geral: linguística matemática, com
o professor Gentilhomme, sintaxe, com a professora Fisher, semântica, com a
professora Gazal e fonética e fonologia, com a professora Konopchensky. Este último integrava também o
certificado (C1) de linguística francesa, que contava ainda com o curso de poética,
dado pelo professor Aron e o curso de estilística do francês, com o professor
Peytard.
Alguns desses
professores — Gentilhomme, Konopchensky e
Peytard — estiveram na Unicamp,
em épocas diferentes e contribuíram, cada um a seu modo, para a implantação e o
desenvolvimento das atividades em nosso departamento.
Obtive minha Licence
és Lettres, com ênfase em linguística francesa, e em lingüística geral.
Tinha cumprido a primeira
parte de meus compromissos, no que dizia
respeito à viagem à França.
De todos esses cursos o que
mais me atraiu foi o do professor Peytard. Certamente porque trabalhava com linguística
e literatura e porque sempre teve uma forma inteligente e intrigante de
utilizar o instrumental linguístico no tratamento do fenômeno literário.
O curso de fonética e fonologia
era muito bem estruturado e madame Konop, como era chamada, tinha rara
competência e dedicação no seu trabalho. Mas não era esse o meu assunto.
Os cursos de sintaxe e de semântica
voltavam-se ambos para a discussão do problema dos modelos teóricos de análise
e como as duas professoras eram ambas alunas do professor Culioli, em Paris, os
cursos eram muito parecidos na intenção, diferentes na realização e confusos
nos resultados.
Monsieur Aron era um
professor correto, objetivo e dotado de um forte espírito analítico. Dava,
contudo, a impressão de que não se sentia seguro no que fazia, de que não
vestia bem as roupas de suas funções em Besançon. Alguma
coisa estava fora de lugar, o quê, eu nunca soube e, certamente, não saberei jamais, descontando, é lógico, a real
possibilidade de que tudo possa ter sido apenas impressão errada de estrangeiro
ainda bastante depaysé em terra estranha, procurando os rumos de sua
identidade entre gente alheia.
Monsieur Gentilhomme,
responsável pela disciplina de linguística geral, ao contrário, era
descontraído, ágil e atento como um jovem que aprendesse a viver, embora
estivesse, ao menos na aparência, para além dos seus cinquenta anos. Dominava
bem a matemática, principalmente a teoria dos conjuntos e navegava à vontade
pela linguística funcional de Martinet e pela semântica de Pottier.
Seu curso, contudo,
concentrava-se mais em exercícios de tradução de expressões linguísticas para
fórmulas matemáticas do que na atividade crítica e teórica da reflexão sobre essas relações.
Fazia uma linguística mais
ou menos na
linha de Salomon Marcus, cuja
obra vim logo a conhecer, por obrigação curricular, e cujo autor conheci em
1975 no congresso da Linguistic Society of America, em Tampa, Flórida, e depois
voltei a encontrar em 1981, num congresso em Bruxelas sobre a semiótica do
teatro.
O professor Peytard, ligado
ao professor Dubois e ao Grupo de Nanterre, apesar, às vezes, de seu
estruturalismo um pouco dogmático, mostrava-se mais cheio de invenções, de
formação humanista e política, de aventuras e hermenêuticas e, sobretudo, de um
grande amor pela literatura.
É evidente que tudo são
impressões de viagens: viagem
sentimental, ao redor do meu quarto, ao redor de mim mesmo, ao redor dos
outros de mim, ao redor do outro dos outros, eu mesmo.
Como tinha obtido o certificado
de Licence és Lettres de Linguistique
e obtido a equivalência de minha licenciatura no Brasil com vistas à inscrição
na maitrise de lettres modernes, optei por
realizá-la sob a orientação do professor Jean Peytard.
Esta opção teve, se bem me lembro,
duas motivações principais: a primeira é aquela que acabo de expor; a segunda,
a possibilidade, logo acentada pelo professor Peytard, de que eu poderia ir
para Paris, se quisesse, fazer ali outros cursos, apresentar-lhe um relatório
de minhas atividades e a minha dissertação de mestrado, cujo tema eu teria
inteira liberdade de escolher.
Aceitei o generoso
oferecimento do professor Peytard e, assim, ficou decidido o caminho formal
para a realização de meu mestrado. Estava ao mesmo tempo traçando, sem que
soubesse, o caminho para o encontro com o professor Oswald Ducrot.
Comecei a percorrer os cursos
que eram oferecidos nas diversas universidades de Paris, na École des Hautes
Études, no Collége de France, e acabei mesmo me fixando de modo regular nos seminários
do professor Oswald Ducrot, na então famosa VIe Section-Sciences Économiques et
Sociales da École Pratique des Hautes Études, 54, Rue de Varenne, Paris, 7º.
Os cursos e seminários do
professor Oswald Ducrot funcionavam, contudo, numa sala do Collége de France,
na Rue des Écoles, a quinhentos metros do studio da Rue des Carmes.
Depois de uma entrevista com
o professor Ducrot que, na época, era directeur
d'études suppléant na EPHE, fui admitido como estudante de troisième
cycle.
Aos poucos, na medida em que assistia aos seminários, fui
identificando no professor Ducrot algumas origens intelectuais que para mim já
eram muito caras: a literatura, a filosofia, Saussure e Benveniste. Só mais
tarde, quando por minha conta comecei a descobrir a filosofia analítica inglesa, é que percebi que em suas análises e
discussões dos temas dos seminários já despontavam caminhos que nasciam em
Austin e em outros filósofos de Oxford, Strawson, entre eles.
Lógica e linguagem natural
foi o tema predominante desses seminários. O contraponto de todas as discussões
era, contudo, a gramática gerativo-transformacional de Noam Chomsky que fazia
muito sucesso também na França.
Desde Besançon, me vi às
voltas com a necessidade de estudar lógica. Aprofundei um pouco meus conhecimentos
e já conseguia, se não operar com os seus símbolos e derivações, ao menos
entendê-los e acompanhar-lhes o sentido.
Frege, Russell e Strawson
constituíram durante algum tempo o meu Triângulo das Bermudas. Nele naufraguei
frequentemente, mas sempre me saí náufrago recolhido pela ajuda de colegas e
sobretudo do professor Ducrot.
Ainda em Besançon, havia lido
Syntactic structures, de Chomsky. O original era de 1957 e a tradução
francesa a que tive acesso, de 1969. Lera também o livro de Nicolas Ruwet, Introduction
à la grammaire générative, de 1967, livro que mais tarde eu traduziria e
adaptaria para o português e que sairia publicado pela Editora Perspectiva e
pela Editora da Universidade de São Paulo, em 1975.
Havia começado a ler Cartesian
linguistics, 1966, de Chomsky e me inteirava das polêmicas que envolviam a semântica
e o seu lugar ontológico e metodológico numa teoria linguística.
Nos seminários acompanhava as análises de detalhe que o
professor Ducrot contrapunha às propostas dos gerativistas.
Depois de ler Aspects of
the theory of syntax, 1965, no qual Chomsky, como que em resposta às
críticas que lhe haviam sido feitas, dava uma importância ao componente
semântico, que este não conhecera em Synctactic structures e depois de
ler artigos de Lakoff e McCawley e de outros linguistas americanos, Katz, entre
eles, sempre por motivações dos seminários fui sendo, quase que
imperceptivelmente, conduzido a definir o assunto da minha tese de mestrado que
deveria apresentar para o professor Peytard na Universidade de Besançon: ia
tratar da polêmica envolvendo as duas tendências semânticas que, então, se
contrapunham no interior da gramática transformacional: semântica interpretativa
versus semântica gerativa.
Assim que conheci
pessoalmente o professor Ducrot, na entrevista, ele passou-me alguns de seus
artigos sobre a noção de pressuposição. Li-os com o maior interesse, vendo em
cada um deles a possibilidade de fazer uma linguística que não me distanciasse
demais da literatura. Nos seminários, as discussões em torno dessa noção eram
as mais estimulantes, porque aguerridas.
Estava, contudo, decidido a
me situar melhor dentro dos pressupostos e das análises gerativistas,
contrapondo-lhes as críticas que, aos poucos, ia sendo capaz de formular por
influência marcante das posições do professor Ducrot, em particular no que
dizia respeito à contraposição de um tratamento semântico-linguístico a um
tratamento puramente lógico para os problemas de significação em línguas
naturais.
Ao mesmo tempo em que frequentava
esses seminários, frequentava também os cursos de Greimas e as grandes sessões
em que se constituíam as aulas de Roland Barthes, acompanhadas sempre por uma
plateia enorme que as transformava, mal comparando, a grandes espetáculos de
teatro, pelo formidável do autor, ator, narrador e personagem que as vivia como
ninguém. Balzac, Flaubert, Proust, grandes temas de literatura, de semiologia e
de mitologias modernas pude acompanhar atento e apaixonado, satisfazendo a
curiosidade e confirmando a admiração intelectual que desde o Brasil me foram
provocadas pela leitura de seus Elementos de semiologia e de suas Mitologias e de seu Grau zero da escritura.
Fui muito ao cinema,
sobretudo à Cinemateca, conversei muito com colegas, fiz amizades, participei
com os exilados de muitos encontros e debates sobre a situação política no
Brasil e nunca me esqueço das conversas longas, suaves e críticas que mantinha todas as sextas-feiras
com Rodolfo Ilari, num café da
Rue des Écoles, depois que saíamos dos seminários do professor Ducrot.
A tese estava caminhando; ia
tomando forma; os relatórios para a Fapesp ganhavam corpo e já falavam de
resultados mais palpáveis do que nos anteriores, nos quais o substancial eram
os cursos, os trabalhos de aproveitamento e as aprovações.
O professor Fausto Castilho
queria que convidássemos um intelectual de peso para a linguística na Unicamp.
Sugeri-lhe o nome do professor Ducrot. Aceitou. Lembro-me bem da noite em que
fui ao apartamento de Ducrot na Rue Cambronne. Era um domingo, ele tinha
recém-chegado em casa e a sua expressão ao me atender era de surpresa e de
diversão diante do entusiasmo com que lhe transmiti a notícia do convite.
Aceitou. Viria, então, à Unicamp, pela primeira vez, em 1972.
Defendi minha tese de mestrado
— “Une introduction au probléme de la sémantique
dans la grammaire générative” —
em Besançon e no dia 17 tomei o trem para Dijon e, daí, um outro até Cannes; no
dia 19 embarquei no Augusto C;
treze dias depois descia no porto de Santos.
IV
Foi desse modo que vim a
conhecer a Fapesp e que a Fapesp cruzou definitivamente o caminho das decisões
que marcaram os rumos de minha vida intelectual e acadêmica.
Recebi, como tantos de nós
professores e pesquisadores do estado de São Paulo, outros apoios importantes da
instituição.
Mas aqui nessa história entro
pelas duas pontas — sem atá-las — da narrativa que os diversos depoimentos
integrantes do livro vão tecendo como um mosaico de fatos, impressões,
lembranças, representações, memória.
A professora Amélia Hamburger,
organizadora do volume, pediu-me que lhe escrevesse uma introdução, já que
cheguei à Fapesp, como presidente (a outra ponta), no dia 13 de junho de 2002,
ano em que o período abarcado pela obra termina.
Amélia, por delicada
generosidade, considerou que eu deveria participar da edição e acabou por me
convencer a fazê-lo.
E fazendo-o, vejo o quanto a
inscrição da Fapesp na minha história de vida, pelos diferentes papéis que
foram sendo constituídos, aos poucos excedeu a sua importância profissional para
instalar-se definitivamente como referência ética, afetiva e intelectual no
universo de valores das relações pessoais e institucionais que com ela aprendi
a prezar e a respeitar.
Se como no romance de Machado
de Assis, Dom Casmurro, não é possível atar as duas pontas da vida, quer
dizer da história, ou seja da história de vida, porque tudo falta, até mesmo o
personagem a ela atado, no caso das instituições, e mais particularmente no
caso da Fapesp, nossa passagem por ela é obrigação de ser breve, mas na
brevidade sermos duradouros no reconhecimento e eternos na obrigação de
preservá-la e desenvolvê-la em sua missão de excelência no apoio à ciência, à
cultura e à tecnologia.
V
A Fapesp, no dia 23 de maio
de 2012, completará meio século de efetivo funcionamento e 50 anos de plenas
realizações.
Modelo e origem do sistema de
FAP’s hoje espalhados por quase todos os estados da federação (só 3 estados ?
Rondônia, Roraima e Amapá ? não têm ainda suas fundações de amparo à pesquisa),
a Fapesp contribui fortemente para a situação distinguida que São Paulo ocupa
no cenário da produção científica do país.
No começo de abril deste ano,
no dia 1º , morreu em São
Paulo, aos 78 anos, Amélia Hamburger, física, pesquisadora,
professora e divulgadora incansável da cultura científica.
A história de vida de Amélia
está, sob várias formas, ligada à história de sucesso do desempenho da Fapesp
no fomento à pesquisa e à formação de competência no estado de São Paulo e no
Brasil, não fosse já o importante livro por ela organizado e editado por
ocasião dos 40 anos da Fundação, no qual tive a honra de participar, a seu
convite, com o texto que agora aqui, na ComCiência,
se republica.
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