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Editorial
Memorial da Fapesp*
Por Carlos Vogt
10/06/2011

I

Nasci em Sales Oliveira, pequena e nada próspera cidade da velha Mogiana (com-g-, que era assim que os trens e vagões traziam grafados o nome da companhia e levavam nossos sonhos de conhecer mundos e vir para a capital). Mojiana (com -j-) era também o apelido de um velho mendigo ranzinza que na juventude teria apostado muitas corridas com trens de carga e de passageiros ganhando todas elas, não só na velocidade mas também na altura do apito que seu peito soltava mais forte do que o de vapor das máquinas.

Em Sales Oliveira, posta às margens da linha da Mogiana com o progresso do café, cortada pela estrada de rodagem que ligava São Paulo ao Triângulo Mineiro, em Sales Oliveira, de onde acompanhamos, meninos, a passagem dos trens pela estação e a dos carros, ônibus e caminhões que cruzavam a rua Voluntário Nélio Guimarães, a principal da cidade, em Sales Oliveira, pois, sentados nos degraus das portas da selaria de meu pai e de meu tio Alberto, a mesma selaria, no mesmo casarão-sobrado que fora de meu avô alsaciano, ali sonhamos viagens nos nomes das placas dos caminhões; em Sales Oliveira, descendente de alsacianos, alemães, italianos e espanhóis, nasci no dia 6 de fevereiro de 1943.

No Grupo Escolar Capitão Getúlio Lima fiz o primário. Como não havia ginasial na cidade, a prefeitura nos transportava para Orlândia, 7 km distante, numa perua Opel dirigida pelo Amâncio. De 1954 a 1957 frequentei o ginásio estadual de Orlândia e ali me diplomei. Em 1958 fui para Ribeirão Preto para fazer o curso Clássico. Já queria vir para São Paulo, apesar das primeiras paixões me convidarem a permanecer em Sales, ou nas vizinhanças. Meus pais decidiram por mim. Era muito novo, São Paulo, longe, e a vida, perigosa. Fiquei dois anos no Instituto de Educação Otoniel Mota. Finalmente, em 1960, vim para a capital e concluí o curso Clássico no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, na rua São Joaquim, na Liberdade.

Em 1961, voltei para Sales Oliveira até que em julho de 1962 tomei o trem na estação da Mogiana, retomei os estudos em São Paulo e ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, à rua Maria Antônia. Ingressei também na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Frequentava esta no período da manhã, e aquela no período da noite. Logo abandonei o curso de direito: a gravata e o terno me incomodavam, e a necessidade de trabalhar foi decisiva.

Na “Maria Antônia”, fiz o curso de letras de 1962 a 1965 . Muitos fatores ajudaram a fazer com que o curso fosse apenas médio: o gosto pelas leituras independentes, pelo cinema, pela política universitária (fui presidente do Centro Acadêmico de Estudos Literários-Cael) e nacional, os amores e o trabalho como professor.

Cedo comecei a dar aulas, muitas aulas: no Departamento de Cursos do Grêmio da Filosofia, no Colégio Brasil Europa.

Em 1966 só dei aulas. Em 1967, comecei a frequentar, como ouvinte, o curso de 4º ano de teoria literária oferecido pelo professor Antônio Cândido, de quem eu já fora aluno de teoria geral da literatura, no 1º ano.

Mestre, primeiro, e depois também amigo, o professor Antônio Cândido teria ao longo de minha vida pessoal e intelectual um papel decisivo.

Quando acompanhei, em 1967, seu curso sobre o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, compreendi definitivamente que estava diante não só de um grande pesquisador, teórico e historiador da literatura mas também que tinha a rara e feliz chance de conviver com um grande ser humano.

Em 1968, consegui desvencilhar-me de algumas aulas e encontrar alguns vazios no trabalho, o que me permitiu, ainda que restritamente, tentar inscrever-me num curso de pós-graduação. Falei com o professor Antônio Cândido: fui aceito.

Foi um ano agitado esse de 1968, para mim, para todos e principalmente para os jovens de minha geração. Inscrevi-me na pós-graduação em letras, modalidade teoria literária, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. No primeiro ano, fiz o curso de teoria literária, com o professor Antônio Cândido, e o curso de sociologia da literatura, com o professor Rui Coelho.

Participei da ocupação da "Maria Antônia", das “Paritárias” e da resistência à invasão do CCC e da polícia aquartelados no Mackenzie. O prédio foi incendiado, arquivos e bibliotecas violados pela direita oficial e oficiosa; um estudante secundário foi morto na rua de nossos sonhos. Fomos mudados para o prédio da Geografia e História, na Cidade Universitária.

Em 1969, fiz o 2º ano da pós-graduação cursando teoria geral do cinema e teoria literária.

No ano anterior, a disciplina de teoria literária havia sido oferecida sob a responsabilidade do professor Oswaldo Elias Xidieh, pois o professor Cândido se encontrava em viagem ao exterior. Tive, então, a oportunidade de conhecer, através de um curso magistral sobre literatura popular e sobre fontes populares da literatura erudita, um homem dotado de uma grande simplicidade aliada, de forma quase que paradoxal, a uma grande cultura e erudição.

No curso de sociologia da literatura, o cosmopolitismo e a cultura do professor Rui Coelho me fez viajar pelos folhetins do século XIX e mergulhar em busca do tempo perdido com a grande obra de Proust.

O curso de teoria literária, de 1969, já com o professor Antônio Cândido de volta, foi todo sobre teorias críticas e o meu trabalho de aproveitamento, um ensaio sobre o estruturalismo.

Foi nesse momento que passei a me interessar de modo mais objetivo pela linguística, não ainda como um fim em si mesmo, mas sobretudo como instrumento metodológico para o estudo da literatura.

Nos anos imediatamente anteriores haviam estado em São Paulo os professores Roman Jakobson e depois Tsvetan Todorov. Eram anos de apogeu do estruturalismo europeu. As conferências no Teatro Aliança Francesa na rua General Jardim, muito marcaram minhas opções intelectuais, sobretudo a do professor Jakobson sobre a poesia de Fernando Pessoa, baseada num artigo escrito em colaboração com a professora Luciana Stegagno Picchio publicado na revista Langages.

No meu curso de graduação, do ponto de vista curricular, pouca atenção se dera à linguística, tanto que só fui fazer um curso de introdução em 1965, já no 4º ano, embora já tivesse lido com cuidado e minúcia, sob orientação do professor Isaac Nicolau Salum, na disciplina de filologia românica, o fundamental Curso de Linguística Geral de Ferdinando de Saussure.

Foi também em 1969 que comprei o que viria a ser, durante todo o ano, uma espécie de bíblia da minha formação: o livro Qu'est ce que le structuralisme? publicado pela Sueil e contendo artigos de vários autores sobre o estruturalismo em diferentes áreas do conhecimento. Foi nesse livro que primeiro vi o nome do professor Oswald Ducrot responsável, aí, pelo trabalho sobre o estruturalismo em linguística.

De algum modo, esse contacto pela leitura, visto mais tarde em flash-back, foi por mim interpretado como o ponto de partida que me levaria a procurar o professor Ducrot em Paris e a manter com ele uma intensa relação de amizade e de respeito humano e intelectual.

Ainda em 1969, no curso de teoria e história do cinema tive outra chance feliz: fui aluno do professor Paulo Emílio Sales Gomes. Guardo o seu curso entre as melhores recordações da minha vida intelectual e afetiva. Íamos, com a maior satisfação, alunos regulares e ouvintes, convivendo com intelectuais e escritores de prestígio, toda segunda-feira às 10 horas da manhã para o Teatro Aliança Francesa onde o curso tinha lugar. Assistíamos à projeção de clássicos da história do cinema nacional e internacional; vinham, em seguida, os debates e aí sim o brilho da inteligência, da ironia, do espírito crítico e polêmico do professor Paulo Emílio tomava conta do teatro, pelas observações certeiras, pelo acertado das análises, pela sonoridade da gargalhada que sempre coroava a graça e o humor que só ele, como ninguém, sabia achar nas mais diversas situações.

Fiz, como trabalho de aproveitamento para esse curso, uma análise de um filme japonês chamado A mulher de areia que havia me impressionado bastante quando o vi e que sempre associei, por caminhos mais afetivos do que intelectuais, à estória de Miguilim em Manuelzão e Miguilim, de João Guimarães Rosa.

Voltando um pouco para trás, foi também em 1968 que conheci um amigo que na época fazia cursinho para o vestibular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Grande tocador de violão, Naire procurava um parceiro letrista para as músicas que vinha fazendo. Começamos a trabalhar juntos e fizemos várias composições, entre elas "Senhora de luar" que recebeu o 3º lugar no Festival Universitário da antiga TV Tupi. Algumas outras foram gravadas e, em 1969, em parceria com Sorocabinha, um estudante de geologia da USP compus "Urgente, urgentíssimo" que recebeu o prêmio de 4º lugar no Festival Universitário desse ano.

Em 1967, a maior parte dos professores do Cursinho do Grêmio, onde trabalhava há alguns anos, não aceitou a intervenção que a diretoria do Grêmio da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP pretendia fazer no cursinho. Saímos quase todos e fundamos o Equipe Vestibulares. A questão de fundo das diferenças estava ligada não só à gestão do capital que o cursinho arrecadava mas também a pontos de vista reversos, quando não contrários, quanto às formas de luta revolucionária e de resistência aos governos militares. Muitos de meus colegas e amigos passaram para a clandestinidade da luta armada, muitos morreram ou continuam desaparecidos, sem notícia exata de seus destinos. Outros conseguiram escapar, quando a repressão recrudesceu o empenho em destruí-los, e com eles me encontrei em Paris em 1971 e depois no Chile, em 1973, alguns meses antes do golpe de Pinochet. Outros ainda entregaram-se às drogas, ou passaram a viver a utopia do pacifismo hippie.

Outros, como eu, seguiram no paciente jogo de espera e de atuação democrática, a ver se um dia conseguiríamos ajudar a mudar o estado de coisas reinantes no país do medo e da euforia: medo de grande parte da população, euforia da classe média com o milagre econômico e daquela mesma população com medo, diante dos símbolos mais fáceis da grandeza do país, a conquista do tri-campeonato mundial de futebol, no México, por exemplo.

Em 1966, fiz concurso para o ingresso no magistério secundário. Obtive uma classificação não muito promissora, já que não havia me preparado o suficiente e não tinha intenção firme de seguir essa carreira. Em 1967 fui chamado para a escolha da escola onde deveria ensinar. O mais próximo de São Paulo que consegui foi Porangaba, cidadezinha próxima a Tatuí e não longe de Sorocaba. Fui, tomei posse no Ginásio Estadual Aldo Angelim, para começar a lecionar no ano seguinte. A sensação que tomava conta de mim, nessa perspectiva, era a de que estava voltando para Sales Oliveira e pondo abaixo as esperanças de retomar os meus estudos.

Uma colega que lecionava comigo no Colégio Brasil-Europa sugeriu-me que tentasse ficar lotado em São Paulo, respondendo pelo expediente de uma diretoria das classes de extensão que, então, se criavam e já eram muitas na capital. Foi o que consegui: a partir de 1º de março de 1968 começaria a responder pelo expediente da diretoria das classes de extensão do Colégio Estadual e Escola Normal Jácomo Stávale, que funcionariam no Grupo Escolar Almirante Marquês de Tamandaré, em Morro Grande, lá para os lados da Freguesia do Ó.

Nessa função, fiquei menos de dois meses. O que me levou a requerer minha exoneração do magistério secundário foram dois fatores, fundamentalmente: o primeiro, e mais forte deles, a situação de carência e quase abandono em que funcionavam as extensões. Não tínhamos material, não havia funcionários, grande parte dos estudantes trabalhava durante o dia como office-boys e à noite estavam mais para o sono do que para a atenção. O único PM que tomava conta da escola para impedir o assédio de marginais, que não eram poucos, fazia os serviços de inspetor de alunos, recolhendo, carimbando e devolvendo suas cadernetas de notas e frequência. Mesmo assim, recebíamos instruções regulares da Secretaria de Educação sobre as comemorações e festividades pátrias, sempre explicitadas e enfatizadas as obrigações de ensaios e a necessidade imperiosa de cumprí-las. Eram um pouco demais. Comecei a me desgostar da função. Acrescido este desgosto com o fato ? esse foi o segundo fator ? de que via, ainda que em São Paulo, dificultada a possibilidade de realizar a pós-graduação em teoria literária, para a qual já havia sido aceito, decidi-me e acabei me exonerando.

Os amigos não entendiam meu gesto e me reafirmavam a loucura de tê-lo feito; deixar um cargo público daquela maneira não tinha cabimento, ou, em falas mais idealistas, era preciso permanecer nos postos e lutar de todos os pontos e de todas as formas, desde que de dentro, para mudar o sistema. Não fui convencido.

Em 1969, deixei também o Colégio Brasil-Europa. Continuei a lecionar português e literatura brasileira no Equipe Vestibulares, tendo aceitado dar algumas aulas de português no Curso Anglo-Latino.

II

No meu curso de graduação fui aluno, na cadeira de francês, do professor Albert Audubert. Sempre tive por ele uma grande admiração intelectual e um grande carinho. Penso que, nas proporções devidas, era correspondido. Penso também que essa afeição mútua tenha tido origem por ocasião do exame vestibular que prestei para ingressar no curso de letras da "Maria Antônia".

Na época, havia ainda exame oral para os candidatos. Na prova de francês, fui arguido pelo professor Audubert e tive a felicidade de sortear como tema de exame Balzac e sua obra. Era um dos autores franceses que mais conhecia na época e um dos que mais admirava. Conhecia os múltiplos aspectos de sua vasta produção e havia lido não só seus principais romances, como também folhetins e obras mais secundárias. Foi um sucesso total. Desde, então, o professor Audubert, que tinha fama de durão e de irascível, passou a tratar-me com uma cordialidade e uma atenção que desmentiam, com justiça, a sua fama. Todas as vezes que nos encontrávamos dizia-me que eu devia retomar o francês e que iria mandar-me para a França, mesmo contra minha vontade.

No meio do ano de 1969, encontrei-me com o professor Audubert no prédio da Geografia e História, na Cidade Universitária. Confirmei-lhe minha disposição em aceitar o seu convite. Combinamos um encontro em seu apartamento na alameda Santos. Quando fui visitá-lo em agosto deu-me a notícia que mudaria definitivamente os rumos de minha vida intelectual: tinha algo mais interessante a me propor. Estava sendo criado, na jovem Universidade Estadual de Campinas, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas em cujo organograma estava previsto um Departamento de Linguística. Era para este departamento que ele queria indicar o meu nome. O projeto era contratar quatro professores, enviá-los imediatamente para Besançon, na França, para fazerem uma licenciatura em linguística e, depois, um mestrado, na mesma área.

Resolvia-se, desse modo, o problema da parcimônia da bolsa que antes ele me oferecia, ao mesmo tempo em que me engajava com um projeto que me dava a segurança de um trabalho atraente e cheio de perspectivas, quando de meu retorno.

Talvez não consiga reproduzir agora, passados já tantos anos desse acontecimento, a alegria sincera que experimentei. Disse-lhe, contudo, que não era um especialista e nem tinha formação suficiente para aceitar a responsabilidade de responder por cursos e de ajudar a criar um Departamento de Linguística. Reafirmou-me que só começaríamos a trabalhar de fato na Unicamp depois do estágio de formação e treinamento na França.

Aceitei o convite. O professor Audubert deu-me uma carta de apresentação, dizendo-me que fosse procurar em Campinas o professor Fausto Castilho, responsável pela direção e pela implantação do IFCH.

Foi o que fiz. Procurei-o em sua casa, conversamos, falou-me do projeto. Tinha estado em Besançon como leitor da Faculté des Lettres et Sciences Humaines. Lá conhecera o professor Yves Gentilhomme, que já estava convidado a vir a Campinas, no ano seguinte, e era responsável pelos cursos de linguística geral na Univesidade de Besançon. O projeto era de que tivéssemos não só uma formação em linguística, mas também em matemática para que tivéssemos condições de desenvolver na Unicamp um departamento que, além de suas atribuições específicas na área, pudesse ainda fornecer as linhas metodológicas de integração das diferentes ciências humanas. Eram os anos em que o estruturalismo, Levi-Strauss principalmente, havia alçado a linguística à condição de ciência-piloto.

O professor Fausto Castilho pediu-me que lhe desse mais informações a meu respeito. Quando soube que eu era aluno do professor Antônio Cândido ficou muito satisfeito porque ele era uma das pessoas responsáveis em orientar a formação do que viria, mais tarde, a ser chamado Grupo de Campinas.

De volta a São Paulo, fui procurar o professor Cândido para falar-lhe de meu contacto com o professor Fausto Castilho e da indicação que havia sido feita pelo professor Audubert.

O incentivo que recebi foi total e envolvente. Antes mesmo que lhe falasse da carta de referência, anunciou-me que a escreveria. Esse é um documento que tenho como uma espécie de totem de minhas transformações.

No dia 23 de outubro de 1969, o professor Fausto Castilho solicitou ao professor Zeferino Vaz, então reitor da Unicamp, a minha e a contratação de três outros colegas — Carlos Franchi, Haquira Osakabe e Rodolfo Ilari — como instrutores, em regime de tempo parcial, junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Em 1º de novembro, já estava contratado e começava a preparar-me para a viagem.

Além do contrato, tivemos as passagens e uma bolsa da Fapesp que, durante os dois anos letivos de nossa permanência na França, significou um apoio, ao qual sou eternamente grato e devedor.

No termo de compromisso assinado com a Unicamp, a ida para Besançon me obrigava, como aos outros, a obter primeiro a licenciatura (1969-1970) e, em seguida, o mestrado, na Universidade de Besançon, ou em outra universidade francesa, explicitando que o título seria reconhecido pela Unicamp.

Deveríamos voltar ao Brasil até o dia 15 de julho de 1971, assumindo funções no IFCH, em regime de dedicação exclusiva.

A partir dessa data, nossas obrigações de atividades na Unicamp, sempre segundo o termo de compromisso, seriam:

a) ministrar aulas de linguística no "Studium Generale" de Ciências Humanas;

b) ser aprovado, no mais tardar três anos após o regresso ao Brasil, em uma das disciplinas do Grupo Ciências Humanas dos dois anos do "Studium Generale", em obediência às normas de integração interdisciplinar adotadas pelo IFCH;

c) ministrar, no IFCH, ou nos cursos de complementação curricular dados pelo instituto junto a outras unidades de ensino e pesquisa, aulas de linguística ou de outra disciplina para a qual tivéssemos qualificação hábil;

d) colaborar no ensino e na pesquisa desenvolvida pelo CLA — Centro de Lingüística Aplicada — órgão anexo ao IFCH.

O projeto do professor Fausto Castilho revelava o grande idealismo humanista de seu coordenador e fazia juz à inteligência, à imaginação e ao empenho que sempre predicaram a sua vida, desde os tempos em que mocinho, participava, com outros intelectuais, das reuniões na casa de Oswald de Andrade e que certamente contribuíram para provocar, quando esteve no Brasil nos anos 60, a ida de Sartre a Araraquara, onde, então, lecionava filosofia o professor Castilho.

Não se falava ainda em Departamento de Linguística. Isto viria mais tarde, com o tempo, com as lutas, com as necessidades surgidas ao longo do processo, com as mudanças de rotas, que não foram poucas.

III

No dia 04 de janeiro de 1970, tomei o avião da Varig com destino a Paris. No mesmo voo seguiam os outros três colegas.

Em Paris, nos esperava o professor Luiz Orlandi, da filosofia, que juntamente com os professores Arantes, da antropologia, Villalobos, da sociologia e Barone, da matemática, constituíam o primeiro grupo do projeto do professor Castilho para a formação de um instituto de integração das ciências humanas.

Em Besançon, onde chegamos dois dias depois, encontramos os cursos já em andamento, pois, como se sabe, o ano letivo na França começa em setembro.

Dificuldades e processos de adaptação, cada um a seu modo, foram sendo vencidas umas e realizados outros.

O inverno foi bravo naquele ano, sobretudo para quem só tinha visto e vivido neve em filmes, livros ou cartão postal.

Fomos morar na Planoise, uma cité distante uns 5 km do centro da cidade, que, por sinal, é muito bonita, cortado pelo Doub, rio alongando-se em peniches que o cortavam, apontando para europas ainda desconhecidas.

Estávamos no Jura, perto de Lausanne e de Généve, na Suíça.

Começamos, então, a frequentar os cursos com vistas à obtenção da Licence és Lettres de Linguistique. Eram vários os que compunham o certificado (C1) de linguística geral: linguística matemática, com o professor Gentilhomme, sintaxe, com a professora Fisher, semântica, com a professora Gazal e fonética e fonologia, com a professora Konopchensky. Este último integrava também o certificado (C1) de linguística francesa, que contava ainda com o curso de poética, dado pelo professor Aron e o curso de estilística do francês, com o professor Peytard.

Alguns desses professores — Gentilhomme, Konopchensky e Peytard — estiveram na Unicamp, em épocas diferentes e contribuíram, cada um a seu modo, para a implantação e o desenvolvimento das atividades em nosso departamento.

Obtive minha Licence és Lettres, com ênfase em linguística francesa, e em lingüística geral.

Tinha cumprido a primeira parte de meus compromissos, no que dizia respeito à viagem à França.

De todos esses cursos o que mais me atraiu foi o do professor Peytard. Certamente porque trabalhava com linguística e literatura e porque sempre teve uma forma inteligente e intrigante de utilizar o instrumental linguístico no tratamento do fenômeno literário.

O curso de fonética e fonologia era muito bem estruturado e madame Konop, como era chamada, tinha rara competência e dedicação no seu trabalho. Mas não era esse o meu assunto.

Os cursos de sintaxe e de semântica voltavam-se ambos para a discussão do problema dos modelos teóricos de análise e como as duas professoras eram ambas alunas do professor Culioli, em Paris, os cursos eram muito parecidos na intenção, diferentes na realização e confusos nos resultados.

Monsieur Aron era um professor correto, objetivo e dotado de um forte espírito analítico. Dava, contudo, a impressão de que não se sentia seguro no que fazia, de que não vestia bem as roupas de suas funções em Besançon. Alguma coisa estava fora de lugar, o quê, eu nunca soube e, certamente, não saberei jamais, descontando, é lógico, a real possibilidade de que tudo possa ter sido apenas impressão errada de estrangeiro ainda bastante depaysé em terra estranha, procurando os rumos de sua identidade entre gente alheia.

Monsieur Gentilhomme, responsável pela disciplina de linguística geral, ao contrário, era descontraído, ágil e atento como um jovem que aprendesse a viver, embora estivesse, ao menos na aparência, para além dos seus cinquenta anos. Dominava bem a matemática, principalmente a teoria dos conjuntos e navegava à vontade pela linguística funcional de Martinet e pela semântica de Pottier.

Seu curso, contudo, concentrava-se mais em exercícios de tradução de expressões linguísticas para fórmulas matemáticas do que na atividade crítica e teórica da reflexão sobre essas relações. Fazia uma linguística mais ou menos na linha de Salomon Marcus, cuja obra vim logo a conhecer, por obrigação curricular, e cujo autor conheci em 1975 no congresso da Linguistic Society of America, em Tampa, Flórida, e depois voltei a encontrar em 1981, num congresso em Bruxelas sobre a semiótica do teatro.

O professor Peytard, ligado ao professor Dubois e ao Grupo de Nanterre, apesar, às vezes, de seu estruturalismo um pouco dogmático, mostrava-se mais cheio de invenções, de formação humanista e política, de aventuras e hermenêuticas e, sobretudo, de um grande amor pela literatura.

É evidente que tudo são impressões de viagens: viagem sentimental, ao redor do meu quarto, ao redor de mim mesmo, ao redor dos outros de mim, ao redor do outro dos outros, eu mesmo.

Como tinha obtido o certificado de Licence és Lettres de Linguistique e obtido a equivalência de minha licenciatura no Brasil com vistas à inscrição na maitrise de lettres modernes, optei por realizá-la sob a orientação do professor Jean Peytard.

Esta opção teve, se bem me lembro, duas motivações principais: a primeira é aquela que acabo de expor; a segunda, a possibilidade, logo acentada pelo professor Peytard, de que eu poderia ir para Paris, se quisesse, fazer ali outros cursos, apresentar-lhe um relatório de minhas atividades e a minha dissertação de mestrado, cujo tema eu teria inteira liberdade de escolher.

Aceitei o generoso oferecimento do professor Peytard e, assim, ficou decidido o caminho formal para a realização de meu mestrado. Estava ao mesmo tempo traçando, sem que soubesse, o caminho para o encontro com o professor Oswald Ducrot.

Comecei a percorrer os cursos que eram oferecidos nas diversas universidades de Paris, na École des Hautes Études, no Collége de France, e acabei mesmo me fixando de modo regular nos seminários do professor Oswald Ducrot, na então famosa VIe Section-Sciences Économiques et Sociales da École Pratique des Hautes Études, 54, Rue de Varenne, Paris, 7º.

Os cursos e seminários do professor Oswald Ducrot funcionavam, contudo, numa sala do Collége de France, na Rue des Écoles, a quinhentos metros do studio da Rue des Carmes.

Depois de uma entrevista com o professor Ducrot que, na época, era directeur d'études suppléant na EPHE, fui admitido como estudante de troisième cycle.

Aos poucos, na medida em que assistia aos seminários, fui identificando no professor Ducrot algumas origens intelectuais que para mim já eram muito caras: a literatura, a filosofia, Saussure e Benveniste. Só mais tarde, quando por minha conta comecei a descobrir a filosofia analítica inglesa, é que percebi que em suas análises e discussões dos temas dos seminários já despontavam caminhos que nasciam em Austin e em outros filósofos de Oxford, Strawson, entre eles.

Lógica e linguagem natural foi o tema predominante desses seminários. O contraponto de todas as discussões era, contudo, a gramática gerativo-transformacional de Noam Chomsky que fazia muito sucesso também na França.

Desde Besançon, me vi às voltas com a necessidade de estudar lógica. Aprofundei um pouco meus conhecimentos e já conseguia, se não operar com os seus símbolos e derivações, ao menos entendê-los e acompanhar-lhes o sentido.

Frege, Russell e Strawson constituíram durante algum tempo o meu Triângulo das Bermudas. Nele naufraguei frequentemente, mas sempre me saí náufrago recolhido pela ajuda de colegas e sobretudo do professor Ducrot.

Ainda em Besançon, havia lido Syntactic structures, de Chomsky. O original era de 1957 e a tradução francesa a que tive acesso, de 1969. Lera também o livro de Nicolas Ruwet, Introduction à la grammaire générative, de 1967, livro que mais tarde eu traduziria e adaptaria para o português e que sairia publicado pela Editora Perspectiva e pela Editora da Universidade de São Paulo, em 1975.

Havia começado a ler Cartesian linguistics, 1966, de Chomsky e me inteirava das polêmicas que envolviam a semântica e o seu lugar ontológico e metodológico numa teoria linguística.

Nos seminários acompanhava as análises de detalhe que o professor Ducrot contrapunha às propostas dos gerativistas.

Depois de ler Aspects of the theory of syntax, 1965, no qual Chomsky, como que em resposta às críticas que lhe haviam sido feitas, dava uma importância ao componente semântico, que este não conhecera em Synctactic structures e depois de ler artigos de Lakoff e McCawley e de outros linguistas americanos, Katz, entre eles, sempre por motivações dos seminários fui sendo, quase que imperceptivelmente, conduzido a definir o assunto da minha tese de mestrado que deveria apresentar para o professor Peytard na Universidade de Besançon: ia tratar da polêmica envolvendo as duas tendências semânticas que, então, se contrapunham no interior da gramática transformacional: semântica interpretativa versus semântica gerativa.

Assim que conheci pessoalmente o professor Ducrot, na entrevista, ele passou-me alguns de seus artigos sobre a noção de pressuposição. Li-os com o maior interesse, vendo em cada um deles a possibilidade de fazer uma linguística que não me distanciasse demais da literatura. Nos seminários, as discussões em torno dessa noção eram as mais estimulantes, porque aguerridas.

Estava, contudo, decidido a me situar melhor dentro dos pressupostos e das análises gerativistas, contrapondo-lhes as críticas que, aos poucos, ia sendo capaz de formular por influência marcante das posições do professor Ducrot, em particular no que dizia respeito à contraposição de um tratamento semântico-linguístico a um tratamento puramente lógico para os problemas de significação em línguas naturais.

Ao mesmo tempo em que frequentava esses seminários, frequentava também os cursos de Greimas e as grandes sessões em que se constituíam as aulas de Roland Barthes, acompanhadas sempre por uma plateia enorme que as transformava, mal comparando, a grandes espetáculos de teatro, pelo formidável do autor, ator, narrador e personagem que as vivia como ninguém. Balzac, Flaubert, Proust, grandes temas de literatura, de semiologia e de mitologias modernas pude acompanhar atento e apaixonado, satisfazendo a curiosidade e confirmando a admiração intelectual que desde o Brasil me foram provocadas pela leitura de seus Elementos de semiologia e de suas Mitologias e de seu Grau zero da escritura.

Fui muito ao cinema, sobretudo à Cinemateca, conversei muito com colegas, fiz amizades, participei com os exilados de muitos encontros e debates sobre a situação política no Brasil e nunca me esqueço das conversas longas, suaves e críticas que mantinha todas as sextas-feiras com Rodolfo Ilari, num café da Rue des Écoles, depois que saíamos dos seminários do professor Ducrot.

A tese estava caminhando; ia tomando forma; os relatórios para a Fapesp ganhavam corpo e já falavam de resultados mais palpáveis do que nos anteriores, nos quais o substancial eram os cursos, os trabalhos de aproveitamento e as aprovações.

O professor Fausto Castilho queria que convidássemos um intelectual de peso para a linguística na Unicamp. Sugeri-lhe o nome do professor Ducrot. Aceitou. Lembro-me bem da noite em que fui ao apartamento de Ducrot na Rue Cambronne. Era um domingo, ele tinha recém-chegado em casa e a sua expressão ao me atender era de surpresa e de diversão diante do entusiasmo com que lhe transmiti a notícia do convite. Aceitou. Viria, então, à Unicamp, pela primeira vez, em 1972.

Defendi minha tese de mestrado — “Une introduction au probléme de la sémantique dans la grammaire générative” — em Besançon e no dia 17 tomei o trem para Dijon e, daí, um outro até Cannes; no dia 19 embarquei no Augusto C; treze dias depois descia no porto de Santos.

IV

Foi desse modo que vim a conhecer a Fapesp e que a Fapesp cruzou definitivamente o caminho das decisões que marcaram os rumos de minha vida intelectual e acadêmica.

Recebi, como tantos de nós professores e pesquisadores do estado de São Paulo, outros apoios importantes da instituição.

Mas aqui nessa história entro pelas duas pontas — sem atá-las — da narrativa que os diversos depoimentos integrantes do livro vão tecendo como um mosaico de fatos, impressões, lembranças, representações, memória.

A professora Amélia Hamburger, organizadora do volume, pediu-me que lhe escrevesse uma introdução, já que cheguei à Fapesp, como presidente (a outra ponta), no dia 13 de junho de 2002, ano em que o período abarcado pela obra termina.

Amélia, por delicada generosidade, considerou que eu deveria participar da edição e acabou por me convencer a fazê-lo.

E fazendo-o, vejo o quanto a inscrição da Fapesp na minha história de vida, pelos diferentes papéis que foram sendo constituídos, aos poucos excedeu a sua importância profissional para instalar-se definitivamente como referência ética, afetiva e intelectual no universo de valores das relações pessoais e institucionais que com ela aprendi a prezar e a respeitar.

Se como no romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, não é possível atar as duas pontas da vida, quer dizer da história, ou seja da história de vida, porque tudo falta, até mesmo o personagem a ela atado, no caso das instituições, e mais particularmente no caso da Fapesp, nossa passagem por ela é obrigação de ser breve, mas na brevidade sermos duradouros no reconhecimento e eternos na obrigação de preservá-la e desenvolvê-la em sua missão de excelência no apoio à ciência, à cultura e à tecnologia.

V

A Fapesp, no dia 23 de maio de 2012, completará meio século de efetivo funcionamento e 50 anos de plenas realizações.

Modelo e origem do sistema de FAP’s hoje espalhados por quase todos os estados da federação (só 3 estados ? Rondônia, Roraima e Amapá ? não têm ainda suas fundações de amparo à pesquisa), a Fapesp contribui fortemente para a situação distinguida que São Paulo ocupa no cenário da produção científica do país.

No começo de abril deste ano, no dia 1º , morreu em São Paulo, aos 78 anos, Amélia Hamburger, física, pesquisadora, professora e divulgadora incansável da cultura científica.

A história de vida de Amélia está, sob várias formas, ligada à história de sucesso do desempenho da Fapesp no fomento à pesquisa e à formação de competência no estado de São Paulo e no Brasil, não fosse já o importante livro por ela organizado e editado por ocasião dos 40 anos da Fundação, no qual tive a honra de participar, a seu convite, com o texto que agora aqui, na ComCiência, se republica.



* Publicado originalmente in: Hamburger, Amélia Império (Org. e Ed.). Fapesp 40 anos abrindo fronteiras. São Paulo: Edusp, 2004. p. 29-40.