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Reportagem
Risco zero – a medida do possível
Por Susana Dias
10/12/2008

A narrativa de combate ao risco marca a experiência contemporânea. A tônica é: não podemos mais conviver com o risco. Ao mesmo tempo há uma proliferação de novos riscos associados às ciências e tecnologias. Medir, calcular, prever, combater são as palavras de ordem. Ordenamentos que têm sido cada vez mais direcionados aos indivíduos, dos quais se identificam comportamentos, corpos, estilos de vida de risco e se exigem atitudes responsáveis que garantam a sobrevivência de nossa geração e das futuras. Quando o assunto é meio ambiente e saúde a narrativa de controle do risco focaliza o sujeito e enfraquece o papel do Estado. As ciências e tecnologias são consideradas úteis nesse processo, pois participam desde a definição do risco – a partir de verdades e certezas que estabelecem o que é seguro ou arriscado – ao desenvolvimento de objetos, técnicas e conhecimentos que visam uma gestão dos riscos.

Ciências e cientistas ganham não apenas apoio financeiro do Estado, mas legitimidade para participar das instâncias do governo e status de heróis, chamados a responder a cada catástrofe. Entender os efeitos do imperativo moderno da previsibilidade, a colonização do risco pelas ciências e pelo mercado e as conseqüências do deslocamento da relação risco-Estado para risco-indivíduo tem mobilizado pesquisadores das áreas mais diversas numa busca distinta: não o combate ao risco, mas um combate às narrativas que constroem o risco como algo a ser medido, calculado, governado e zerado.

Uma necessária abertura a um “risco poético”, é o que aposta Beatriz Furtado, da Universidade Federal do Ceará, que encontra no trabalho de alguns artistas, como o israelense Yael Bartana, a criação de zonas de risco. Em que se “abre ao impensável desse espaço, desse lócus, dessa imagem. Não há confirmação, nada se constata. É uma obra de risco, um risco poético, um risco que vem do movimento que nos faz entrar na imagem enquanto ela entra em nós. E a partir de então se dá o risco da experimentação, o lugar do possível” (leia o artigo “Imagens em risco”, publicado em agosto de 2008 na revista Doc On line – Revista Digital de Cinema Documentário).

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/risco/rpsusana/susana1e2.jpg

Saúde - Estado riscado do mapa

Na área da saúde, a pesquisadora Sandra Caponi, do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), avalia que o risco e o Estado estavam imbricados no século XIX e houve um deslocamento dos riscos para as mãos das pessoas nos últimos anos – particularmente nos anos 1970 e de forma mais aguda a partir nos anos 1990. “Cabia ao Estado criar estruturas de proteção social. Ao mesmo tempo em que essa estrutura foi se debilitando, cada vez mais, as responsabilidades e a culpabilização foram deslocadas para o indivíduo e, atualmente, o Estado está ausente em relação ao risco”, analisa.

Na obra de Luis David Castiel e Carlos Álvarez-Dardet, A saúde persecutória: os limites da responsabilidade, publicado o ano passado pela Fiocruz, os autores tratam exatamente dessa passagem, de como há uma perseguição à saúde e uma insistência na necessidade de sermos mais responsáveis com nossas ações. Seguir à risca o que os estudos epidemiológicos e ou genéticos elevaram ao estatuto de verdades evidentes; mudar comportamentos para adequar aos novos riscos; defender estilos de vida considerados desejáveis ou condenar estilos de vida considerados indesejáveis. “Atingir esse objetivo implica o conhecimento dos riscos, isto é, implica estarmos informados das últimas descobertas científicas, conhecer os discursos normativos que se derivam dessas supostas verdades e agir de modo responsável no cuidado de nosso corpo e de nossa saúde”, diz Caponi em resenha do livro de Castiel e Álvarez-Dardet.

No site destinado à pesquisa e ensino de bioética, do Núcleo Interinstitucional de Bioética, o coordenador e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), José Roberto Goldim, manifesta sua preocupação com a percepção do risco, que, segundo várias pesquisas é superestimado pela população, percebida sempre muito superior ao que é calculado (leia reportagem sobre pesquisas de percepção do risco). “Uma explicação possível para esta ocorrência pode ser a característica cultural brasileira de evitar incertezas, de não saber conviver com riscos, paradoxalmente à realidade”, arrisca o médico Goldim.

Amortecimento do risco

No âmbito da questão ambiental a responsabilização dos indivíduos aparece como estratégia de negócios e o risco é capturado pelo mercado. “Há um amortecimento do risco quando se trata de sustentabilidade e economia-negócios”, analisa Leandro Belinaso Guimarães, biólogo e professor do programa de pós-graduação em educação da UFSC. Em seu projeto de pesquisa mais recente, ele investiga como as questões de sustentabilidade aparecem nas narrativas jornalísticas dos cadernos de economia e negócios do Estado de S. Paulo e do Valor Econômico. Na seleção que fez dos jornais, o pesquisador percebe que é na abordagem de assuntos relacionados à comunidade e projetos sociais que esses cadernos cedem espaço para as matérias sobre sustentabilidade, enquanto que nos espaços voltados à temática do meio ambiente o enfoque é o dos riscos oferecidos pelos modos de vida humanos ao planeta: catástrofes, desmatamentos, queimadas.

Para Belinaso, quando entram em jogo os negócios “ocorre um deslize de um humano que se configura como intruso – usando uma idéia do pensador francês Jean Luc-Nancy – para um humano que aparece aliado ao planeta. Uma aliança que se dá pelos benefícios tecnológicos, pelos saberes científicos, pela redução máxima do risco e que leva ao apaziguamento do mercado”. A saída, segundo ele, é a subjetividade responsável, de um indivíduo que se percebe como ambientalmente responsável. Se a abordagem do risco ambiental como perigo iminente termina por disseminar mais medo entre as pessoas, do que gerar a tão almejada sensibilização, o discurso do risco zero, pelo engajamento de pessoas e empresas nas causas ambientais, reduz o problema ao nível individual e à criação de projetos com a marca do social e ambientalmente correto.

Ao mesmo tempo em que o risco é amortecido e apresentado “sob controle”, quando a questão ambiental está atrelada ao desenvolvimento econômico – em jornais, revistas, cinema etc – os cientistas são apresentados como aqueles que se arriscam e oferecem argumentos e soluções. A aventura marca a série de vídeos do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo (Biota), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Esse é um dos elementos que Érica Speglich, bióloga e doutoranda da Faculdade de Educação da Unicamp, destacou em sua apresentação na mesa redonda “Quando a natureza é objeto expositivo” durante o seminário MULTICIPLIimagens que aconteceu no início de dezembro no Centro Estadual de Educação Supletiva Paulo Decourt, na Unicamp: “Caminhonetes e jipes encobertos de lama andando em estradinhas lamacentas em meio à floresta ou em campos perdidos no meio do cerrado. Equipamentos nos bolsos como revólveres na cintura de um cowboy. Caminhadas sem fim pelas matas. Imagens que ecoam sacrifícios, obstinação, aventura”. Os movimentos de medir, coletar, organizar, inventariar e catalogar a natureza se misturam à aventura e “naturalistas e pesquisadores se transformam em heróis, em prol da ciência, a lutar contra a fome, o calor, a sede, e insetos”, analisa Speglich.

Madel Teresinha Luz, num artigo em que debate “Risco, perigo e aventura na sociedade da (in)segurança: breve comentário” mostra como vivemos numa sociedade entre a obsessiva tentativa de cálculo probabilístico dos riscos, sobretudo na economia, e um cultivo do risco associado à coragem, bravura, espírito de equipe e solidariedade. Ambos constroem uma narrativa de um grande jogo de azar, no qual o Estado é incapaz de atuar, a economia é extremamente frágil, a ciência dará a solução, e cada um é convidado a gerir os seus riscos.

(Ar)riscar a verdade: ciências, mercado e Estado

A definição de risco aparece intimamente associada à definição de verdade. Para Sandra Caponi “a proliferação de riscos, temores e medos parece estar diretamente vinculada à multiplicação de discursos de verdade. Discursos nos quais se reconhece, sem a menor crítica ou questionamento, um estatuto de cientificidade que parece indiscutível”. Caponi destaca que, cada vez mais, as ciências, os conhecimentos científicos e os cientistas fazem parte do Estado. O Estado, em contrapartida, investe vigorosamente em algumas linhas de pesquisa, laboratórios e a narrativa do risco confere legitimidade a determinadas pesquisas. “No campo da saúde, por exemplo, há pouco comprometimento da indústria com a produção de pesquisas e medicamentos para doenças que não são lucrativas – como malária, chagas, etc – e o Estado precisa, no mínimo, exigir uma contrapartida”, avalia.

O fato de nosso entendimento sobre o que é verdade estar associado também aos riscos que assumimos, às resistências que sustentamos, é enfatizado por Cesar Candiotto, do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Em artigo em que explora a história crítica da verdade, ele discute como, para o filósofo francês Michel Foucault, “a verdade tanto pode ser reivindicada como justificação racional para aqueles que procuram governar a conduta de outrem, quanto instrumento de resistência para aqueles que enfrentam tal condução a partir de uma contra-conduta ou atitude crítica”.

A complexidade das relações entre risco, ciência, mercado e Estado colocam em cheque a fórmula risco=perigo e as verdades dadas sobre o combate ao risco. A narrativa de combate ao risco aparece como potencialmente útil à governança das populações, ao mundo dos negócios, à aquisição de recursos e a definição de políticas públicas.