02/06/2006
A
crônica de uma expedição científica. O
diário de campo de um etnólogo. A introdução
de uma densa etnografia de povos indígenas da região da
tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa.
Todas essas definições cabem ao volume I da obra Do
Roraima ao Orinoco – Observações de uma viagem pelo
norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913,
do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. A
expedição partiu de Roraima para alcançar as
nascentes do rio Orinoco, na Venezuela. Percorreu, a pé ou em
canoas, numa região que até hoje é de difícil
acesso, numerosos rios e perigosas cachoeiras, escalando montanhas,
visitando fazendas e aldeias da região, improvisando
acampamentos. Por conta da falta de recursos, a viagem não
alcançou seu objetivo, retomado, mais tarde, pela expedição
do norte-americano Hamilton Rice da qual Koch-Grünberg
participou, vindo nela falecer, em 1924, vítima de malária,
aos 52 anos.
Koch-Grünberg
já possuía conhecimento sobre as populações
indígenas sul-americanas quando desembarcou em Manaus, em maio
de 1911, e se dirigiu para Boa Vista, de onde iniciaria sua viagem. Já
havia acumulado experiência de campo ao participar de uma
expedição pelo Brasil Central entre 1898 e 1900. Nesse
mesmo ano, defendeu o seu doutorado sobre os Kadiweo e, entre 1903 e
1905, realizou uma expedição entre os povos indígenas
do alto rio Negro, publicando uma série de artigos e uma
monografia. Sua carreira profissional na Alemanha esteve ligada aos
museus etnográficos dentre os quais ocupou, antes de sua
última viagem, o cargo de diretor do Museu Etnológico
de Sttutgart.
Com
a expedição do Roraima ao Orinoco, Koch-Grünberg
volta o foco de sua investigação para os povos
indígenas de língua Karib – conhecidos como Pemon –
e realiza, assim, uma extensa etnografia que, até os dias de
hoje, constitui-se numa fonte importante para a antropologia,
especialmente para estudos da etnologia contemporânea relativos
aos povos da região. “Podemos concordar com a definição
dada pelo autor às suas ‘observações de
viagem’ apenas em um sentido bastante restrito, uma vez que, em
teoria e método, seu trabalho constitui um momento de
transição entre o relato de viagem e a etnografia, tal
como o gênero viria a se consolidar no século XX”,
escrevem os antropólogos Nádia Farage e Paulo Santilli,
no prefácio da obra.
O
cotidiano
Logo
no início de seu diário de viagem, Koch-Grünberg
nos lembra que a região por ele percorrida é uma região
de conflitos. A bacia do Rio Branco – que recorta o estado de
Roraima – desde o período colonial, era considerada
propriedade do Estado, dividida em três fazendas – São
Bento, São José e São Marcos – cujas terras se
sobrepunham aos territórios indígenas. O deslocamento
de migrantes por causa da seca no Nordeste e a decadência da
borracha – que começa a ser substituída pela pecuária
– intensificavam a grilagem de terras e o trabalho escravo na
região, no começo do século XX.
Esse
cenário político de convivência conflituosa entre
fazendeiros, indígenas, missionários e governo (através
do recém criado Serviço de Proteção aos
Índios) é descrito por Koch-Grünberg,
principalmente nos capítulos do livro dedicados ao cotidiano
na Fazenda São Marcos, que serviu como base de apoio para a
expedição. A narrativa do etnólogo nos faz
lembrar que o passado por ele registrado não está tão
distante assim: mesmo após a homologação da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em abril de 2005, as
populações indígenas da região ainda
sofrem com a resistência de agricultores, latifundiários
e políticos interessados em suas terras. O diário de
Koch-Grünberg constitui, por isso, uma fonte importante tanto
para a história indígena quanto para a história
política de Roraima, lembram os autores do prefácio.
Além
das fazendas estatais, diversas aldeias indígenas foram
visitadas durante a viagem. Nelas, o etnólogo registra casos
de trabalho forçado e violência contra os seus
moradores, narrados, dentre outros, pelo chefe macuxi Pitá, da
aldeia Koimélemong.“Quando jovem, Pitá teve
experiências ruins com os brancos. Conta que o velho Campos, um
dos colonos mais antigos do rio Uraricoera, sogro de Bamberg, hoje
um homem bastante honrado, atraiu-o e a outros 35 índios
Makuschí e Wapischána, a Manaus, com promessas
mentirosas. Que lá foram embarcados num vapor que,
supostamente, deveria trazê-los de volta para o rio Branco.
Quando o vapor virou e seguiu rio abaixo para o Amazonas, eles
choraram e não comeram nada por dois dias. Trabalharam seis
anos nos seringais insalubres do rio Purus, e vinte deles morreram de
febre. É assim que os índios são enganados pelos
brancos!”
Além
das histórias, tristes e alegres, contadas à noite, na
beira da fogueira, os banhos no riacho próximo à
aldeia, a companhia constante das crianças, as refeições
providas com peixes da região (como o tucunaré e
a traíra) e caças das savanas (como tatus e
jabutis), as festas nas quais se dança o parischerá
fazem parte do cotidiano em Koimélemong, assim como o
“comércio”: preocupado em formar uma coleção
etnográfica para o Instituto Baessler, que patrocinava a
viagem, Koch-Grünberg “comprava” objetos como esteiras,
abanos, cestos de folha de palmeira, panelas e potes de cerâmica,
trocados por miçangas, espelhos, anzóis, fósforos,
facas e tesouras.
Nesse
sentido, da convivência diária com os indígenas
sobrevém tanto uma dimensão mais afetiva quanto a
preocupação quase obsessiva do etnólogo com a
coleta e o registro de dados etnográficos. “Dedicamos horas
sérias aos registros lingüísticos. Sento-me com
Pirokaí e meu Wapischána da serra do Panelão,
cujo nome indígena é Jáni e que não
fala uma só palavra de português, e trabalhamos até
nossa cabeça ferver. De vez em quando, a cozinheira nos ajuda
e, nesse ponto, ela é muito mais inteligente do que os meus
dois rapazes”, escreve o etnólogo.
O
registro não é feito apenas no caderno de anotações.
Se, para os naturalistas alemães do século XIX, como
Humboldt, Martius ou Spix, a pintura e o desenho, juntamente com as
descrições textuais, eram imprescindíveis para a
tentativa de retratar os lugares visitados em sua totalidade, Koch-Grünberg traz em sua bagagem chapas fotográficas e
um fonógrafo, inaugurando um novo tipo de representação:
o registro sonoro.
Nas
fotografias podemos ver não só paisagens naturais
repletas das serras, montanhas e rios percorridos – como o
majestoso e belíssimo Monte Roraima – mas também
homens, mulheres e crianças de diferentes grupos indígenas
em poses premeditadas pelo etnógrafo ou em atitudes mais
espontâneas, caçando com zarabatanas, retornando de uma
boa pescaria ou arrastando canoas pelas rochas durante a subida de
alguma pequena cachoeira.
Com
o fonógrafo, Koch-Grünberg toca polcas e operetas para as
pessoas reunidas em sua cabana – “para acostumá-las com o
fato de o aparelho reproduzir a voz humana” – registra canções
de dança e, o que era inédito até então,
encantações e cantos xamânicos. “A meu pedido,
o chefe arrasta o xamã Katúra até nós. No
começo, ele resiste a cantar na máquina, que é
como os índios chamam todos os meus instrumentos mágicos.
Ele me pergunta, desconfiado, por que quero levar sua voz comigo. Eu
lhe prometo uma faca grande. Então ele consente, mas sob a
condição de que tudo se realize com o máximo de
sigilo e que depois eu não toque seus cantos para ‘as
pessoas’. Pelo visto, se não for assim, teme perder sua
influência. Pitá põe todo mundo para fora da
cabana. Fechamos as entradas e as aberturas das janelas e, no recinto
à meia-luz, acontece a mágica”.
Etnografia
da fala
Além
da importância dos mitos, lendas e cantos xamânicos,
coletados por Koch-Grünberg, para a antropologia, sua obra
também causou impactos na literatura. Os mitos transcritos
pelo etnólogo alemão foram utilizados por Mário
de Andrade na composição de Macunaíma – o
herói sem nenhum caráter (1928), um marco do
modernismo brasileiro. Muitos dos episódios protagonizados por
Makunaíma, os irmãos mais velhos Ma’nápe
e Zigé, pelo primeiro xamã Piaimã,
pelo trapaceiro Kalawunség, pelo destemido Kone’wó
e pela segunda cabeça do urubu-rei Etetó foram
transpostos, por Mário de Andrade, literalmente, das
narrativas Pemon registradas por Koch-Grünberg.
Dos
cinco volumes da edição alemã de Do Roraima
ao Orinoco, Mário de Andrade teve como principal fonte de
inspiração para a composição de Macunaíma
o segundo volume intitulado “Mitos e lendas dos índios
Taulipáng e Arekuná”. “Nesse volume, Koch-Grünberg
transcreveu as narrativas proferidas por dois acompanhantes de
viagem, Mösecuaípu, um jovem xamã arekuna,
e Mayuluaípu, um taulipáng batizado com o nome
José, que verteu as narrativas para o português e,
posteriormente, ditou-as em sua própria língua para que
fossem transcritas foneticamente”, lembra Paulo Santilli,
antropólogo e professor da Universidade Estadual Paulista
(Unesp).
Essas
traduções interlineares e livres dos contos míticos,
assim dos cantos e fórmulas mágicas reunidos por
Koch-Grünberg no terceiro volume de sua obra revelam, segundo
Santilli, mais do que um registro atento e minucioso das palavras e
expressões indígenas: uma primorosa etnografia da fala
Pemon.
E
uma etnografia da fala seria o principal propósito de Mário
de Andrade em Macunaíma. “A sua rapsódia macunaímica
é uma composição, como ele mesmo definiu, de
incidentes expressos em locuções, fórmulas
sintáticas, processos de pontuação oral e
modismos característicos da fala no Brasil”. Nesse sentido é
que as obras de Koch-Grünberg e Mário de Andrade se
encontram. “É possível entrever uma relação
excepcional entre o trabalho primoroso de registro da arte verbal
Pemon de um etnógrafo com grande sensibilidade e sólida
formação filológica e lingüística, e
a criatividade fecunda de um escritor dedicado à pesquisa da
língua falada no país, que mobilizou seu talento em
concebê-lo, segundo suas próprias palavras, em ‘um
concerto étnico, nacional e geográfico’”, afirma
Santilli.
Do Roraima ao Orinoco – Observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913
Volume I
Theodor Koch-Grünberg
Tradução: Cristina Camargo Alberts
Editora da Unesp
Instituto Martius-Staden
2006
376 páginas
|