As
respostas que vêm sendo construídas para o controle da epidemia de
HIV/Aids, em termos globais e nacionais, têm constituído um dos
capítulos mais desafiantes, interessantes e inovadores da saúde pública
contemporânea. Contudo, ainda está longe de equacionar um de seus
maiores desafios: a superação do estigma e da discriminação sofridos
pelas pessoas vivendo com o HIV, ou doentes de Aids.
O
estigma e a discriminação são processos de desvalorização dos sujeitos,
que produzem iniqüidades sociais e reforçam aquelas já existentes.
Viver livre do estigma e de qualquer tipo de discriminação é um direito
humano básico e que deve ser respeitado. Ser portador do HIV/Aids não
pode e não deve ser motivo para desrespeitar esse direito.
O
estigma pode ser dividido, em termos gerais, em duas categorias
interrelacionadas: o estigma sentido e o estigma sofrido. Estigma
sentido é a percepção de depreciação e/ou exclusão pelo indivíduo
portador de alguma característica ou condição socialmente
desvalorizada, o que acarreta sentimentos prejudiciais como vergonha,
medo, ansiedade, depressão. Por estigma sofrido nos referimos às ações,
atitudes ou omissões concretas que provocam danos ou limitam benefícios
às pessoas estigmatizadas. Em poucas palavras, o estigma sofrido é a
discriminação negativa, caracterizada como crime no plano jurídico
nacional e internacional.
A
despeito de suas diferenças, ambos os processos causam impacto na vida
dos portadores do HIV, violando seus direitos e interferindo
severamente no modo como organizam seu cotidiano, e nas possibilidades
de serem felizes, saudáveis e gozarem de boa qualidade de vida.
Esta
questão é extremamente relevante para as estratégias de cuidado das
pessoas vivendo com HIV e Aids, muito particularmente para crianças e
jovens, no seu processo de crescimento, socialização e construção de
identidade. Essas crianças e jovens estão constantemente expostas a
situações de discriminação e estigmatização em sua vivência em família,
na vizinhança, na escola e até nos serviços de saúde. Alguns aspectos
são bastante críticos nesse sentido, e merecem especial atenção:
A descoberta da soropositividade e sua revelação
Muitos
– senão a totalidade – de crianças, jovens e aqueles que cuidam deles,
pais, parentes, cuidadores de casas de apoio, revelam que sentiram e
viveram o estigma no momento exato em que descobriram o seu
diagnóstico. Os sentimentos estigmatizantes mobilizam forças
contraditórias. De um lado, é preciso "levar a vida", reagrupar forças
para cuidar de si e dos seus; de outro, emerge uma vontade de desistir,
uma forte sensação de desesperança.
A
descoberta da soropositividade é comumente relatada como um dos
momentos críticos, quando emergem medos, situações de rejeição e
negligência.
Mesmo
com todos os avanços no diagnóstico e tratamento, ainda persiste a
idéia de Aids como morte. Esta idéia estigmatizante pode afastar o
jovem e seus cuidadores do pleno usufruto da sua vida pessoal e social.
O estigma, sentido ou vivido, produz sofrimento físico e mental, além
de trazer limitações sociais importantes.
A
atitude dos profissionais de saúde diante da revelação diagnóstica é
outra situação bastante sensível para a questão do estigma. São ainda
comuns situações em que a revelação é feita de modo intempestivo,
descuidado, quando não mesmo agressiva e em tom acusatório (do jovem ou
da mãe, no caso da transmissão mãe-criança).
A
força dos sentimentos estigmatizantes e seus impactos no modo de vida
das pessoas talvez repouse no reconhecimento, por si mesmo e pelos
outros, de que a condição de portador poderá ser alvo de preconceito e
eventual discriminação, de agressão aberta à integridade física e
mental do jovem.
A
nossa socialização histórico-cultural em todos os preconceitos faz com
que os portadores percebam, de forma antecipada e internalizada,
eventuais situações em que podem ser estigmatizados. Isso faz com que
as pessoas mudem drasticamente suas vidas, restringindo, às vezes
ativamente, sua participação afetiva e social em suas famílias e
comunidades, deixando de usufruir de seus legítimos direitos como ser
humano e como cidadão.
A interdição de práticas cotidianas e de planos futuros
A
convivência com a condição de portador leva crianças e jovens e seus
cuidadores a evitarem contextos que podem oferecer problemas de
estigmatização. Antecipando possíveis discriminações, algumas
interdições passam a ser corriqueiras. Pode haver restrições de
situações cotidianas como ir a escola, trabalhar, freqüentar serviços
de saúde, praticar esportes e freqüentar festas ou outros espaços de
lazer.
A
morte aparece, novamente com a força de estigma, como um dos grandes
fatores de interdição para o estabelecimento de planos futuros. A
estabilização do quadro clínico das pessoas vivendo com o HIV,
propiciada pelos recentes avanços no tratamento da infecção pelo HIV e
pelo acesso a esses recursos oferecidos por programas como o do Brasil,
ainda não conseguiram suplantar a imagem de um destino fatal para os
portadores da infecção. A morte antecipada acaba por transformar-se em
fator que denega direitos para os jovens portadores, levando jovens e
cuidadores a não acreditarem e investirem em seu futuro.
Por
outro lado, a experiência vem fazendo com que muitas crianças, jovens e
cuidadores venham, corajosa e criativamente, enfrentando o estigma e a
discriminação, descobrindo (e inventando) formas cultural, política e
juridicamente de lutar contra eles.
Jovens e cuidadores enfrentando o estigma
A
luta contra o estigma é uma luta dolorosa, desgastante, diária que é
(re)feita com toda a gama de recursos e depende de um conjunto de
fatores. Há uma maior facilidade para esse enfrentamento entre aqueles
portadores que vivem numa condição de cidadania mais plena (os de maior
renda, escolaridade e acesso à justiça). Mas mesmo entre os
desfavorecidos vão se criando pequenas, mas importantes estratégias de
“sobrevivência” ao estigma, e que não devem ser desprezadas ou
desconsideradas.
A
omissão da condição de soropositividade, por exemplo, pode servir como
estratégia, em alguns momentos, para evitar as situações de
discriminação e processos de estigmatização. É um modo de manter o
segredo e a privacidade, sem estabelecer conflitos abertos. Outras
estratégias têm sido utilizadas para enfrentar o estigma de modo
aberto, encarando os conflitos. Por exemplo, para evitar uma situação
de exclusão escolar de uma criança, pode-se recorrer ao apoio de
autoridades de saúde para esclarecer a verdade sobre os improváveis
riscos de transmissão no ambiente escolar ou os cuidados que se deve
ter para apoiar a criança portadora. Psicólogos ou outros educadores
podem auxiliar professores e funcionários a criar uma cultura não
discriminatória na escola, e até advogados podem ser convocados para
evitar a situação extrema de violação do direito fundamental da criança
à educação.
É
preocupante, porém, o ceticismo que muitos cuidadores e jovens ainda
têm em relação à possibilidade de contar com esse apoio e seus
resultados. E isso é até justificável, pois muitas vezes é o próprio
serviço de saúde, primeiro apoio com que deveriam contar, que age de
modo estigmatizante. São freqüentes os relatos de discriminação sofrida
no contato com pessoal de enfermagem, médicos, psicólogos, assistentes
sociais etc.
Em
alguns casos, essa discriminação chega a obstaculizar o acesso dos
portadores a recursos ou ações disponíveis na rede de saúde, negando
cuidado e tratamento para outras condições clínicas, que não a Aids,
tais como cirurgias, tratamentos dentários, entre outros, alegando
riscos inexistentes ou por acreditar que trariam benefícios
“irrelevantes” frente à situação “fatal” da infecção.
Familiares,
amigos, serviços de saúde, escolas, crianças e jovens devem ter em
mente a realidade da discriminação e do estigma, mas não devem
desanimar com ela. É preciso – e possível – sempre buscar suporte nos
profissionais e nas redes afetivas e sociais de que dispomos. Combater,
por meio de ações culturais ou legais, o estigma e a discriminação, é
uma tarefa de todos nós.
Com base nesse desafio, os autores deste texto e um grupo de profissionais de diversas instituições de saúde1
elaboraram um manual com um conjunto de recomendações e proposições
práticas para os serviços que atendem a crianças e jovens vivendo com
HIV/Aids, de modo a facilitar a incorporação do combate ao estigma e
discriminação aos cuidados com a sua saúde. O manual está disponível na
página do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, em: www.crt.saude.sp.gov.br/down/ManualECI_final.pdf. Como síntese do conteúdo ali desenvolvido, destacamos aqui as seguintes recomendações:
- Divulgar e conscientizar jovens, cuidadores e profissionais acerca dos direitos das crianças e adolescentes;
-
Ampliar o debate acerca do estigma e discriminação relacionados à
infecção pelo HIV, recusando toda exclusão ou restrição baseada no
estado sorológico;
-
Prover os jovens com informações, espaço de reflexão e apoios diversos,
relacionados a aspectos relevantes para sua saúde, para além do cuidado
clínico;
- Cuidar ativa e atentamente do processo de revelação do diagnóstico a crianças e jovens vivendo com HIV;
-
Apoiar ativamente a tomada de decisão dos jovens e suas famílias acerca
de como, quando e para quem revelar a condição de soropositividade, em
particular no que se refere à vida sexual e afetiva;
-
Promover e estimular ações intersetoriais (saúde, educação, bem-estar
social, cultura, justiça etc) e apoiar grupos comunitários voltados
para crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids.
José Ricardo Ayres é médico, professor da Faculdade de Medicina da USP,
Ivan França Junior é médico, professor da Faculdade de Saúde Pública da
USP e Vera Paiva é psicóloga, professora do Instituto de Psicologia da
USP.
1
Aluisio Segurado (Faculdade de Medicina da USP - Casa da Aids); Eliana
Galano (Programa Estadual de DST/AIDS de São Paulo); Heloisa Helena de
Souza Marques (Instituto da Criança – Hospital das Clínicas – USP);
Mariliza Henrique da Silva (Programa Estadual de DST/AIDS de São
Paulo); Marinella Della Negra (Instituto de Infectologia Emílio Ribas);
Neide Gravato da Silva (Programa Municipal de DST/AIDS de Santos);
Pilar Lecussan Gutierrez (Instituto da Criança – Hospital das Clínicas
– USP); Regina Lacerda (Programa Municipal de DST/AIDS de Santos).
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