Reformas – ou acordos, como preferem alguns – ortográficos
não são privilégio brasileiro. Nem as polêmicas que geralmente as acompanham.
Os idiomas francês e alemão também já receberam propostas de modificação que
foram motivo de discussão e polêmica entre vários grupos, assim como ocorreu e
ainda ocorre com as alterações sugeridas para o português (leia reportagem sobre o tema reforma ortográfica nos países de língua portuguesa).
“É natural que esse tipo de reação ocorra”, opina José Luiz Fiorin, doutor em linguística e pós-doutor pela
École des Hautes Études em
Sciences Sociales (Paris) e pela Universidade de Bucareste.
“A França, por exemplo, ensaia uma tímida reforma há quase vinte anos. Mas a população não aceita essa proposta porque a ortografia alcança dimensão simbólica”, afirma.
Fiorin aprofunda esse comentário
em seu artigo “O acordo ortográfico: uma questão de política linguística”. De acordo com o professor, as propostas de reforma ou acordo ortográficos miram a unificação da ortografia, ou seja, da convenção por
meio da qual se representam graficamente as formas faladas da língua. “O que se pretende unificar é a escrita e não a língua. Esta última varia de uma região
para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra, de uma faixa etária para outra”, explica. “A variação é um fenômeno
inerente à língua, porque a sociedade em que ela é falada é heterogênea. É impossível uniformizar a língua”. Assim, não é difícil prever os possíveis
motivos de discordância em torno de propostas de mudança de ortografia.
Em outros países
Há
pouco mais de três anos – em agosto de 2006 – novas regras para a ortografia
alemã passaram a vigorar em escolas e repartições públicas. No entanto, para o
redator Klaus Dahmann, da empresa de comunicação Deutsche Welle, a reforma não atingiu a meta de facilitar a
escrita através de regras simples, entre elas aquelas que fazem a
correspondência entre letras e sons e o uso de maiúsculas. Ele faz essa
observação em seu artigo “Caos e anarquia:
entra em vigor a nova ortografia alemã”, reforçando que, em 1998, quase 600 filólogos e especialistas em literatura publicaram uma carta aberta contra as novas propostas. “Não se pode esquecer que a concorrência entre germanistas é uma das mais acirradas no mundo
acadêmico. As trincheiras pró e contra a reforma eram praticamente
inevitáveis”, afirma o autor. “O assunto em questão envolve profundas emoções
ligadas ao idioma materno”, continua o autor.
Com o idioma francês, não é diferente. A paixão francesa pela forma escrita
de sua língua é tema de livro lançado em setembro deste ano pelo jornalista e
escritor François de Closets. Zéro faute: l’orthographe, une passion française (editora Mille et une Nuits) traça a história da ortografia francesa e demonstra como ela tornou-se uma religião de estado real. Tânia Hirata, diretora pedagógica da Aliança Francesa, acredita que o grande apego do povo francês à forma escrita de seu idioma está relacionado ao domínio e precisão do discurso.
Naquele país, a polêmica em torno de mudanças ortográficas recomendadas na década de 1990 ainda existe. A história desse tipo de proposta começou em 1893, quando a Academia Francesa – que, à
época, tinha poder de decisão sobre as mudanças ortográficas – analisou a primeira solicitação nesse sentido, que sugeria facilitar a escrita alterando o uso de hiíens e acentos, por exemplo. “Mas, a partir de 1991, o poder político começou a intervir no assunto, aconselhando maior tolerância com aqueles que
pecavam no uso do particípio passado, por exemplo”, explica Tânia.
O idioma francês utiliza dois verbos – avoir (ter/haver) e être (ser) – como auxiliares em tempos verbais do passado, como o passé composé (passado composto). Esse fator, ao lado de outros, complica o
ensino da língua não só para estrangeiros, mas também para os próprios franceses.
Tanto é fato que a sugestão de reforma proposta na década de 1990 partiu
dos próprios professores franceses. Esse movimento resultou em um documento, o Rapport de 1990 sur les rectifications orthographiques (relatório de 1990 sobre as retificações ortográficas), validado
pelas autoridades linguísticas da Bélgica e do Canadá e aprovado por
unanimidade pela Academia Francesa. Essa última reforçou que essas eram apenas recomendações e que as velhas grafias
continuariam a ser consideradas corretas, ao lado das novas. No documento, uma
das recomendações abole o uso do trait d’union (o hifen, também
defenestrado do português nessa última reforma) em algumas palavras e outra
propõe a incorporação de elementos de outras línguas, a exemplo de taliatelle
(tagliatelle) e paélia (paella).
Há ainda outro aspecto que ajuda a esquentar a polêmica em torno da paixão
francesa: enquanto avaliações acadêmicas, como o baccalauréat – que pode ser considerando o equivalente ao
vestibular brasileiro ou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – não dá grande peso à ortografia na nota final da prova, um candidato a emprego que envia seu currículo com escorregões na ortografia é desclassificado imediatamente
pelo responsável pela seleção.
“Essas
contradições podem ser entendidas porque a língua é viva, dinâmica e evolui.
Acho que esse é um debate que nunca terá fim justamente porque esse processo é
contínuo”, afirma Tânia, cuja observação concorda com a opinião do escritor
alemão Johann Gottfried Herder, citado no artigo de Fiorin: cada
língua é a expressão viva, orgânica, do espírito do povo.
Para saber mais:
- A enciclopédia online e aberta Wikipédia faz um apanhado do panorama
de mudanças ortográficas em regiões do mundo, enfocando, principalmente, os
casos alemão, francês e neerlandês.
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