Em novembro
de 1847 desembarca no Rio de Janeiro um jovem naturalista e
farmacêutico alemão, Theodoro Peckolt (1822-1912). Veio
ao Brasil, influenciado pelos cientistas August Wilhelm Eichler e
Karl Friedrich von Martius, com a finalidade de estudar a flora
tropical e remeter o material colecionado para complementar a
monumental obra Flora Brasiliensis (1840-1906). Peckolt não
retornou à sua terra natal e permaneceu no Brasil os restantes
65 anos de sua vida, legando-nos uma obra de cento e setenta
publicações, entre artigos em periódicos e
livros, com dados de suas análises de cerca de duas mil
plantas, em sua maioria pertencentes ao domínio da Mata
Atlântica.
Retrato de Theodoro Peckolt
O impacto que
a flora brasileira causou ao jovem cientista, ele mesmo nos deixou em
relato de 1871:
“Não
é agora a ocasião de descrever a impressão que
experimentei no ano de 1847 ao entrar na magnífica baía
do Rio de Janeiro (sic); o aspecto da vegetação
tropical produziu-me uma sensação que desisto de
descrever”.
Sua
contribuição ao desenvolvimento da farmacognosia e da
fitoquímica é imensa e ainda hoje suas obras são
utilizadas como referências em publicações sobre
fitoquímica, química dos produtos naturais e
farmacologia.
Após
um curto período de permanência na cidade do Rio de
Janeiro, trabalhando numa farmácia, Peckolt aprimora o seu
conhecimento da língua portuguesa, que havia aprendido através
de um pequeno dicionário, e junta o dinheiro necessário
para comprar um animal de sela e fazer arranjos de viagem para fora
da Corte. Parte em setembro de 1848, percorrendo as províncias
do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
estudando-lhes a flora. No início de 1850, passou algum tempo
com os índios botocudos do Rio Doce, realizando excursões
através da Serra dos Órgãos e pelo vale do rio
Paraíba. Ao retornar ao Rio, em julho de 1851, foi aprovado no
exame farmacêutico da Escola de Medicina do Rio de Janeiro.
Peckolt irá
estabelecer-se na cidade de Cantagalo, onde viveu durante 17 anos.
Nesse período adquiriu profundo conhecimento da flora local,
montando em sua farmácia um laboratório e um herbário
onde realizou cerca de quinhentas análises quantitativas de
extratos de plantas da flora brasileira. Destas, 437 foram publicadas
em revistas internacionais, principalmente alemãs, entre 1850
e 1868. Apesar de já ser reconhecido no exterior pela
qualidade de seu trabalho, o que pode ser constatado pelo grande
número de honrarias acadêmicas estrangeiras que recebeu
nesse período, no Brasil, sua produção só
teria visibilidade após sua participação na
Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1861) e o envio
de sua coleção de farmacognosia, com cerca de 220
produtos, para a Exposição Universal de Londres (1862),
onde recebeu a medalha de ouro na classe de substâncias e
produtos químicos e processos farmacêuticos.
Ao retornar
ao Rio de Janeiro, irá estabelecer-se com a Pharmácia
Imperial, na rua da Quitanda, conhecida também como Drogaria e
Laboratorio de Productos Chimicos e Pharmaceuticos de T. Peckolt &
cia, onde comercializava alguns dos produtos apresentados nas
exposições nacionais (1861, 1866) e universais (1862,
1867): pós de doliarina, preparação de leite da
gameleira, agoniadina fluida, extratos de caroba, salsaparrilha e
japecanga. Nesse laboratório Peckolt continuou a analisar as
nossas plantas, montando em sua residência, no bairro da
Tijuca, um herbário. Ele estudou plantas brasileiras de
diversas famílias, observando as condições nas
quais vivem e se multiplicam, e recolheu dos nativos informações
sobre nomes triviais, usos e propriedades farmacêuticas. O
herbário fornecia-lhe os meios para a comparação
morfológica das numerosas espécies e, no laboratório,
Peckolt aprofundava o trabalho, obtendo informações
detalhadas sobre a composição química das
plantas medicinais, seus alcalóides e outras substâncias
de extração.
Anúncio da farmácia de Peckolt
Durante um
curto período, de abril de 1874 a janeiro de 1876, foi
contratado por Ladislau de Souza Mello e Netto, então diretor
do Museu Nacional, para organizar a seção de química
analítica, sendo responsável pelo laboratório
químico. Podemos inferir que sua curta permanência à
frente desse Laboratório deve-se ao fato que as funções
que deveria exercer não se enquadravam em seu perfil de
pesquisador, especialista nos estudos fitoquímicos de plantas
brasileiras.
A
contribuição de Theodoro Peckolt para a Flora
Brasiliensis de Von Martius foi vultuosa, distinguindo-o este
cientista com a máxima confiança. Sua colaboração
não se limitou ao fornecimento de materiais: Von Martius e
seus colaboradores enviavam-lhe as provas tipográficas de
textos para que fossem comentados e corrigidos.
Inegavelmente,
é de Theodoro Peckolt o recorde brasileiro de análises
químicas das plantas da flora nacional do século XIX e
acreditamos que essa marca permaneça imbatível ainda
hoje. As publicações internacionais surgem no período
entre 1859 e 1911. As primeiras obras em português foram as
explicações que acompanhavam as coleções
enviadas às exposições nacionais. Os estudos
entre 1859 a 1899 compreendem as espécies da flora brasileira
de maior interesse na Europa. A partir de 1899, o estudo de plantas
medicinais brasileiras tornou-se a tônica de sua obra publicada
fora do país. Em nossas pesquisas conseguimos localizar 170
publicações entre artigos e livros. Destacam-se entre
as suas obras: Análises da matéria médica
brasileira (1868), História das plantas alimentares e
de gozo do Brasil, cinco fascículos (1871 a 1884) e a
História das plantas medicinais e úteis do Brasil,
em oito fascículos, escrita em colaboração com
seu filho, também farmacêutico, Gustavo Peckolt. Este
trabalho contém a classificação botânica e
descreve, por exemplo, as técnicas de cultura, as partes
próprias para uso, a composição química,
o emprego em diversas moléstias, as doses e os usos
industriais.
Em suas obras
Peckolt fez anotações importantes sobre diversos
assuntos: geografia, topografia, geologia, hidrografia, clima e solos
dos estados brasileiros. Ele considerava o homem como o agente mais
perigoso do grupo dos modificadores dos terrenos e já previa,
assim como outros naturalistas brasileiros da época, a futura
necessidade de recuperação do solo destruído
pela prática das queimadas. Outra situação
analisada quimicamente por Peckolt e que, ainda hoje, permanece
bastante atual são os efeitos das queimadas no ar que
respiramos e o conseqüente aumento da temperatura.
É
singular que os resultados obtidos por esse incansável
cientista tivessem sido tão pouco conhecidos e apreciados no
país que ele considerava como sua segunda pátria.
Ainda hoje no
Brasil são raros os trabalhos de pesquisa associando
antropologia e farmacologia. O descaso brasileiro abre caminho para a
biopirataria, o roubo de plantas e animais, levando a patentes no
exterior de remédios pelos quais os brasileiros terão
de pagar caro. Conforme já nos dizia Peckolt em 1888:
“Ao
publicarmos o resultado dos nossos estudos, não é nosso
intuito apresentar a última palavra sobre tudo o que se refere
aos vegetais indígenas e exóticos aclimatados entre
nós; mas unicamente fornecer um ponto de partida para
trabalhos de maior fôlego, que tenham o poder de significar que
os médicos e farmacêuticos brasileiros compreendam que
não lhes é lícito conservar-se inativos,
concorrendo, assim, para que continuem a ser feitas no estrangeiro a
maior parte das investigações sobre a Flora
Brasileira.”
Os
leitores interessados na documentação usada neste texto
devem consultar o meu artigo “Theodoro Peckolt: a produção
científica de um pioneiro da fotoquímica no Brasil”,
publicado na revista História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, v.12 n.2, p.515-33, mai-ago. 2005.
Nadja
Paraense dos Santos é pesquisadora do Instituto de Química
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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