A
indústria química quer se reinventar e reverter uma imagem mais associada aos
riscos de seus produtos do que aos benefícios que eles representam para a
sociedade. No imaginário social, poucos se lembram que as tintas que colorem as
casas, os tubos de PVC usado nas construções ou as inúmeras aplicações do
plástico em brinquedos, automóveis e eletroeletrônicos são resultantes de um
processo que começa na indústria química de base. Suspeitas – e até mesmo
comprovações – dos perigos da indústria química à saúde humana e ao meio
ambiente já não são mais novidade há muito tempo. Pelo menos desde a década de 1960,
com o início da preocupação relacionada à poluição industrial e aos acidentes
nas fábricas, o sinal vermelho é aceso frequentemente para esse setor
industrial. Um dos avisos mais recentes parte do relatório divulgado em junho
deste ano pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos, listando a substância
formaldeído, entre pelo menos outras oito, como causadora de câncer. O
formaldeído, base do formol, é usado em produtos para alisamento de cabelos,
esmaltes para unhas e perfumes, entre outros.
No
Brasil, os cosméticos, assim como outros produtos – a exemplo dos defensivos
agrícolas, químicos de uso industrial, petroquímicos e farmacêuticos –, formam
o corpo dessa indústria gigante que, apesar de atualmente deficitária, é a
quarta em importância na formação do PIB industrial brasileiro, segundo dados
de 2008 da Pesquisa Anual Industrial do IBGE. Estima-se que, em 2010, esse
setor industrial brasileiro tenha faturado US$ 130,2 bilhões, de acordo com a Associação
Brasileira da Indústria Química (Abiquim), o que lhe garante a oitava posição
no ranking das dez maiores do mundo, em termos de faturamento.
Um
estudo encomendado pela Abiquim, o Pacto Nacional da Indústria Química, quer
elevar ainda mais a posição do setor industrial brasileiro nesse ranking,
colocando-o entre os cindo maiores do mundo. Esse objetivo seria alcançado como
resultado do intento estratégico de tornar o Brasil superavitário em produtos
químicos e líder em química verde. Para tanto, esse estudo prevê um conjunto de
compromissos da indústria química com inovação, desenvolvimento econômico e
social do país e com o estabelecimento de condições favoráveis para o potencial
investimento de US$ 167 bilhões até 2020. “Para se ter uma ideia da magnitude
desse desafio, números da Abiquim e do BNDES indicam investimentos confirmados
em valor médio anual de US$ 4,1 bilhão no período 2010-2013, soma que dobra a
média histórica da indústria”, diz o estudo “Desempenho recente da balança
comercial e os limites ao crescimento da indústria química”, do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), disponível no site da
organização.
São
somas altas, justificadas pelo alto desempenho dessa indústria, responsável por
prover vários dos produtos utilizados não apenas em setores produtivos, mas
também na vida cotidiana. É impossível desassociar o uso de seus produtos à
funcionalidade do dia a dia, principalmente em centros urbanos, onde, aliás,
está concentrada a maior parte da população brasileira. Desde a sala ao
banheiro de uma casa, passando pela área de serviço, em cima de móveis ou
dentro de armários, estão os produtos químicos ou aqueles que derivam dessa
indústria e que facilitam o modo de vida da sociedade contemporânea. Embalagens
alimentícias, produtos de limpeza e shampoos são alguns dos que fazem parte de
uma lista quase infindável.
“A
química está presente no nosso dia a dia em praticamente tudo o que fazemos e
participa dos avanços realizados nos mais diferentes campos científicos,
tecnológicos e industriais. Ela contribui para a busca de novas soluções para o
cotidiano e para inovações sustentáveis”, opina Fátima Giovanna Coviello
Ferreira, diretora de economia e estatística da Abiquim.
Embora
a indústria química tenha trazido avanços inegáveis, sem os quais a sociedade
atual não seria a mesma, esse mesmo progresso implica em riscos à saúde e ao meio
ambiente. “Infelizmente, ainda grande parte das pessoas associa a indústria
química aos riscos, já que muitos processos envolvem produtos inflamáveis e/ou
explosivos”, diz Wagner Aparecido Contrera Lopes, gerente de fiscalização do
Conselho Regional de Química – 4ª Região, cuja jurisdição abrange o estado de
São Paulo, onde está a maior parte das empresas e dos profissionais da
indústria química brasileira.
Tem
fundamento a preocupação sobre os danos causados pelos produtos químicos por
parte de diferentes representantes da sociedade, desde consumidores a ativistas
ambientais e, inclusive, representantes de governos e de alguns empresários do
setor industrial químico. Um exemplo é o desconhecimento sobre as substâncias
químicas. De acordo com informações disponíveis no site da Organização
Pan-Americana de Saúde, que atua como escritório regional da Organização
Mundial da Saúde para as Américas e integra os sistemas da Organização dos
Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas (ONU), existem
atualmente cerca de dez milhões de substâncias químicas, das quais cerca de 100
mil são de uso difundido. Dessas últimas, apenas algumas centenas foram
avaliadas plenamente quanto aos seus riscos para a saúde e ao meio ambiente.
Nesse
cenário, a busca por uma atuação mais responsável por parte da indústria
química, em termos de saúde, segurança, meio ambiente, qualidade e
responsabilidade social, é objeto de um programa da Abiquim, como explica
Fátima Ferreira, diretora da entidade. Adotado pela Abiquim em 1992, o programa
Atuação Responsável foi inspirado no programa internacional Responsible Care,
criado no Canadá pela Canadian Chemical Producers Association. De acordo com
informações disponíveis no site da Abiquim, o Responsible
Care fornece mecanismos que permitem o desenvolvimento de sistemas e
metodologias para cada etapa da gestão da saúde, da segurança e do meio
ambiente das empresas químicas e das cadeias produtivas ligadas a ela.
Até
1998, as empresas associadas à Abiquim participavam voluntariamente do programa
Atuação Responsável. A partir daquele ano, a adesão passou a ser condição de
filiação à entidade, que atualmente tem 133 indústrias associadas. Entre os 12
princípios diretivos mencionados pela diretora da Abiquim e que estabelecem a
base ética do programa está o gerenciamento dos riscos inerentes às atividades
e produtos da empresa, a partir da adoção das melhores práticas disponíveis a
fim de eliminar acidentes e controlar os aspectos que possam impactar
negativamente a sociedade e o meio ambiente. As empresas filiadas à Abiquim
devem enviar anualmente os resultados dos seus indicadores de desempenho,
medidos por uma avaliação realizada pela própria organização. Para auxiliar as
empresas químicas associadas na auditoria de seus sistemas de gestão, a Abiquim
faz uma verificação que é aplicada por 15 organismos de avaliação de
conformidade – ou certificadores –, através de profissionais de empresas
associadas e representantes de comunidades vizinhas às empresas químicas
verificadas, todos treinados nos procedimentos do sistema. Em 2010, foram
feitas 25 verificações em 18 empresas.
Pesquisa e inovação
Entre
os compromissos estabelecidos pelo Pacto Nacional das Indústrias Químicas está
o desenvolvimento de tecnologias, inovação de produtos e soluções avançadas. Como
diz o estudo, a recuperação do déficit comercial do setor – de US$ 9,3 bilhões
entre janeiro e maio deste ano, valor 28,4% superior ao do mesmo período de 2010
– requer uma estratégia agressiva de solução de debilidades aliada ao
desenvolvimento de mercados hoje pouco familiares à indústria brasileira. “Não
é por acaso que, em muitos países, as políticas de desenvolvimento e de apoio à
exportação se tornem redutos para a promoção da inovação”, aponta o estudo.
Um dos
benefícios do alcance desse objetivo seria, ainda de acordo com o estudo, a
criação e desenvolvimento de tecnologia, com cultura de inovação e pesquisa. Para
concretizá-lo, está previsto o investimento de US$ 32 bilhões em pesquisa, desenvolvimento
e inovação, o equivalente a cerca de 1,5% do faturamento líquido previsto para
2020. Parte desse investimento será executado em cooperação com instituições
educacionais e de ciência e tecnologia.
Para Fátima
Ferreira, diretora da Abiquim, a indústria química está colocada hoje frente
aos grandes desafios da sustentabilidade, das matérias-primas renováveis e dos
produtos e processos inovadores. “As empresas químicas são fortemente baseadas
em conhecimento e tecnologia, mas as oportunidades e desafios são muitos mais
amplos do que qualquer empresa pode enfrentar de modo isolado”, comenta. É por
essa razão, de acordo com ela, que as empresas estão buscando cada vez mais
colaborações, seja com outras empresas ou com instituições de ensino e
pesquisa. “Os investimentos dependem de cada empresa, das suas áreas de
negócios e das suas trajetórias, mas é possível dizer que todas estão cada vez
mais conscientes do tema inovação e possuem algumas preocupações comuns, a
exemplo da busca por sustentabilidade e fontes renováveis”.
Brasil discute segurança química
Nosso
país ainda não possui uma política nacional com metas destinadas ao aperfeiçoamento
da gestão de substâncias químicas. Mas aspectos da formulação dessa política já
são discutidos no âmbito da Comissão Nacional de Segurança Química (Conasq),
coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e integrada por instituições
públicas, privadas, representantes da sociedade civil – entre elas, a própria
Abiquim – e de universidades.
Uma das
finalidades dessa comissão é discutir e debater temas relacionados à segurança
química com vistas à formulação de programa nacional para essa área. Nesse
campo, as pesquisas realizadas pelo setor acadêmico têm papel crucial nessa
discussão. A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Brasília (UnB)
participam da Conasq levando informações sobre as pesquisas relacionadas ao
assunto, contribuição que é qualificada por Sérgia Oliveira, diretora do
Departamento de Qualidade Ambiental na Indústria do MMA, como fundamental para
alimentar políticas futuras e envolver a área acadêmica na sua articulação.
O Programa
Nacional de Segurança Química tem dez linhas prioritárias de ação, entre as
quais estão mecanismos de controle e fiscalização na gestão de substâncias
químicas e a implementação de pelo menos duas convenções internacionais: a de
Roterdã, que regula o comércio internacional de produtos químicos perigosos; e
a de Estocolmo, sobre poluentes orgânicos persistentes. Esta última tem o objetivo
de eliminar globalmente a produção e o uso de algumas substâncias tóxicas
produzidas pelo homem.
Ainda
na busca pela minimização dos riscos das substâncias químicas, o Brasil aderiu
à política internacional para a promoção da boa gestão dos produtos químicos. É
o Strategic Approach to International Chemicals Management (em português,
Abordagem Estratégia para a Gestão Internacional de Produtos Químicos), cuja meta
é, até 2020, assegurar que os produtos químicos sejam produzidos e utilizados
de forma que diminuam significativamente impactos adversos sobre o meio
ambiente e a saúde humana.
Política internacional
Se o
Brasil ainda busca traçar sua política relacionada às substâncias químicas,
iniciativas de outros países nesse campo já existem há algum tempo, como é o
caso do Reach, a legislação sobre substâncias químicas da União Europeia
aprovada em 2006. A sigla
significa Register (registro), Evaluation (avaliação), Authorization (autorização) e Chemicals (substâncias químicas). Trata-se
de um regulamento aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da
Comunidade Europeia para o controle de produtos químicos. Essa política foi
elaborada a partir de princípios que consideram, por exemplo, a
responsabilidade da indústria na geração e na disseminação da informação. Ela
deve demonstrar que seus produtos e sua utilização são seguros antes de
colocá-los no mercado e também assegurar que o consumidor tem o direito de
conhecer as características e os efeitos dos produtos que adquire.
O Reach entrou em vigor em junho de 2007 e as
substâncias químicas exportadas para a União Europeia ficaram, desde então,
sujeitas a essa legislação. Em princípio, todas as substâncias químicas
fabricadas nos países europeus ou importadas por eles em quantidades acima de
uma tonelada estão sujeitas ao registro, devendo a indústria responsável pela
fabricação ou importação fornecer dados sobre seus produtos aos clientes. Assim,
substâncias consideradas de grande preocupação em relação aos seus efeitos para
a saúde humana e o meio ambiente deverão ter seus usos autorizados para
continuarem a serem comercializadas. Entre elas, estão as substâncias carcinogênicas
(que provocam câncer), mutagênicas (que podem causar mutação nas células do
organismo) ou que causem danos ao aparelho reprodutor.
Esse
tema dos impactos à saúde humana e ao meio ambiente é tratado no capítulo 19 da
Agenda 21, um programa de ações para o desenvolvimento sustentável neste
século, adotado durante a Conferência Mundial das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992, a Eco-92. O texto incorpora
propostas de ações que promovam a segurança química, conceituada no site da
Organização Pan-Americana de Saúde como “a prevenção dos efeitos adversos, para
o ser humano e o meio ambiente, decorrentes da produção, armazenagem,
transporte, manuseio, uso e descarte de produtos químicos”. Quase duas décadas
depois, o Brasil, que postula a liderança mundial no uso de energia renovável,
não pode perder a oportunidade de regulamentar a segurança química no país, e a
indústria brasileira do setor tem a chance de conferir se a prometida adesão à química verde não é mesmo o negócio do futuro.
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