Pensar a liberdade na política certamente não é tarefa das mais fáceis: mexe com várias concepções, paixões e tradições, além de provocar discussões longas no campo da filosofia, do direito e da ciência política – e tem um impacto enorme na prática, principalmente quando se leva em conta a elaboração de políticas públicas. Mas como, quando e onde o conceito de liberdade começou a ser pensado e aplicado no fazer político? Como a teoria e o debate acadêmico influenciaram e influenciam as principais correntes políticas da democracia ocidental como as conhecemos hoje?
O debate em si é de longa data: segundo o professor e pesquisador em teoria política moderna e contemporânea da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Ricardo Silva, na Antiguidade clássica grega se discutia sobre isso, especialmente na democracia de Atenas. “Foram os atenienses que fizeram a primeira conexão entre política e liberdade – uma relação tão profunda que tomava os termos por idênticos, já que apenas os cidadãos livres podiam participar da política (o que excluía boa parte da população de Atenas, como mulheres, escravos e estrangeiros) e era só nas assembleias que a liberdade se realizava de fato”, conta.
Mas essa não era a única noção de liberdade presente no mundo antigo: os romanos acreditavam que liberdade era a não-dominação de uma pessoa por outra. Essa ideia, lembra Silva, se faz muito presente nas raízes do pensamento de tradição republicana. Sob essa perspectiva, “ser livre é ser independente, agir sobre suas próprias deliberações, não estar sob o domínio ou dependência de alguém”, explica. Essa concepção chegou aos dias de hoje com a ajuda de Maquiavel (1469-1527), no início da Idade Moderna, e é também chamada de neo-romana. “Maquiavel pensava a liberdade em duas dimensões distintas, ambas associadas à não-dominação: uma dizia respeito à relação de toda a cidade ou país em relação aos outros países ou cidades e a outra diz respeito à relação dos cidadãos com o poder constituído naquela cidade”, relata. Ou seja: liberdade seria a não-dominação de um país por outro e nem de um governo sobre seus cidadãos. “De nada adianta o meu Estado ser livre se sou um escravo do meu próprio governante”, reitera Silva.
Antigos, mas nem tanto
Essa tradição republicana neo-romana teve importância crucial na história da política ocidental, influenciando eventos como, por exemplo, a independência dos Estados Unidos. “Os colonos queriam autonomia em relação à metrópole, fazer suas próprias leis, governar a si próprios e não estar sob o domínio arbitrário de uma entidade externa”, conta Silva. Para os partidários da independência norte-americana, estar sob domínio inglês era o mesmo que estar sob regime de escravidão, já que o escravo não tem vida independente e depende do outro no máximo grau possível. “Era esse argumento que animava os revolucionários contra a metrópole inglesa. Eles julgavam que, permanecendo naquela condição de dependência em relação à metrópole, tinham o estatuto semelhante ao do escravo”, reitera o pesquisador da UFSC.
Eunice Ostrensky, professora e pesquisadora em filosofia política moderna da Universidade de São Paulo (USP), complementa que a dominação como antítese da liberdade republicana ultrapassa o sentido estrito de escravidão. “Se alguém se autocensura, se tem medo de dar sua opinião com receio da sanção de alguém, podemos dizer que essa pessoa se encontra em uma relação de dominação”, diz. Além disso, ela lembra que é importante não confundir o pensamento sobre liberdade de viés republicano (como não-dominação) com a filosofia que norteia o ideal do Partido Republicano nos Estados Unidos atualmente, em grande parte devedor do ideário liberal baseado no pensamento de filósofos como Adam Smith. E alerta que “o liberalismo é um fenômeno muito complexo nos Estados Unidos e não é homogêneo. Há liberais de direita e de esquerda”. Silva lembra que, hoje, a agremiação que mais se assemelha com o ideal republicano é o Partido Democrata, “enquanto o partido republicano é mais moralmente conservador e, economicamente, quase libertário”.
Já hoje em dia...
Por falar em Partido Republicano, liberalismo e republicanismo, a pesquisadora ressalta que nos dias de hoje, para além do ideário republicano, há outras duas correntes de pensamento que marcam a contemporaneidade: a de raiz comunitarista e a liberal. Ostrensky explica que a primeira remete ao conceito de “liberdade positiva” elaborado pelo filósofo britânico Isaiah Berlin (1909-1997) – em que um sujeito só é livre na medida em que age politicamente – e a segunda diz respeito à esfera de atuação dentro da qual o indivíduo não sofre impedimento por parte de outrem (como o direito de ir e vir), se assemelhando à concepção de “liberdade negativa” de Berlin, a que existe no âmbito da não-interferência. “Pode-se pensar essa liberdade de um modo geral como um direito, porque segue a equação liberdade = direito”, completa.
Silva lembra que a noção de liberdade como direito é típica da modernidade – e que, para Berlin, “a única forma de liberdade compatível com o pluralismo de valores que caracteriza a vida moderna é a negativa”, já que o filósofo escrevia no auge da Guerra Fria “e era contra o que via acontecer no leste europeu – muitos dos que tomaram o poder organizavam seu discurso em torno daquilo que seria a liberdade positiva”, conta o pesquisador da UFSC.
Por mais que as
noções comunitarista e republicana de liberdade se pareçam, há
distinções. A professora da USP explica que a liberdade positiva (comunitarista), na concepção
de Berlin, pressupõe um sujeito metafísico como portador da liberdade. “Isto é,
um sujeito que se define, primeiro como um zoon politikon, cuja vida só faz
sentido no interior da comunidade política e cuja felicidade reside em participar ativamente da vida política
dessa comunidade”. E prossegue: “Para Berlin, esse sujeito metafísico está
dividido entre o mundo empírico, do qual recebe as sensações e no qual ele
vive, e o mundo racional, que dita como ele deve se comportar e que deve ser
reconhecido como válido para todos os sujeitos livres. Para os neo-romanos (republicanos), não
há conteúdo metafísico na concepção de agente livre: é livre quem não está sujeito/a
à dominação de outros”.A complexa formulação teórica em torno do republicanismo, comunitarismo e liberalismo também teve repercussão teórica no Brasil, mas é difícil ligar alguma dessas correntes teóricas ao nascimento da tradição política no nosso país, que bebeu de várias fontes – segundo Ostrensky, principalmente da Revolução Francesa, que foi um dos acontecimentos políticos mais impactantes (se não o mais importante) da modernidade ocidental. “Não podemos dizer que no Brasil predomine mais ou menos uma ou outra tradição, mas o nosso contato com as teorias da liberdade é um contato muito recente e ainda muito precário”, avalia. De acordo com ela, esse é um debate que ainda não tem grande capilaridade na sociedade civil, cujo espaço vai se alargando aos poucos.
Silva concorda sobre a precariedade do contato com o debate teórico, mas, por outro lado, diz que no Brasil o que se tem, em parte, é um certo domínio da tradição do pensamento autoritário na política, que vem desde a colonização. “Uma das principais crenças desse autoritarismo é a de que o povo brasileiro é completamente destituído de capacidade cívica, um povo amorfo, sem predisposição democrática. O Estado (o poder executivo) teria, então, que organizar o povo, moldar a nação de cima para baixo”. E claro, esse tipo de pensamento tem impacto sobre a formulação de políticas públicas até hoje, embora muitas outras correntes de pensamento coexistam com ele na atualidade.
No entanto, é fácil perceber a inspiração que as tradições republicana, comunitarista e liberal têm na prática por aqui. Ostrensky, da USP, exemplifica que, no Brasil, “o conceito de liberdade liberal está por trás da política de cotas nas universidades – no sentido daquilo que pensam os liberais igualitários. Para eles, só se pode dizer que existe justiça quando o maior número de indivíduos tem acesso aos direitos mais fundamentais (educação, saúde, reconhecimento das capacidades e das individualidades)”. E quando não existe igualdade de condições, é preciso que se criem formas de corrigir essas distorções. Ela acrescenta que no espectro liberal, nem todos defendem esse ponto de vista, mas os igualitaristas, sim. “Há liberais que criticam o modelo de cotas, por supostamente dar vantagens a pessoas que não demonstram capacidade suficiente de alcançar, por elas mesmas, o ensino nas universidades”.
Outro exemplo prático que ela cita são as polêmicas envolvendo o debate comunitarista nos Estados Unidos, com as ondas migratórias, ou no Canadá, “onde há comunidades multiculturais que reivindicam ser reconhecidas na sua especificidade (os quebecois)”. A discussão sobre o uso do véu na França também é um exemplo. O comunitarismo, lembra Ostrensky, envolve não apenas decisões do governo sobre práticas de comunidades heterogêneas, mas também a atuação da sociedade civil frente a elas. “Defende que a comunidade tenha autonomia para identificar como ela quer se governar e como ela estabelece sua própria identidade”, completa.
Já na linha do republicanismo está a Lei Maria da Penha, “que prevê a defesa da mulher contra um agressor que está dentro da própria casa”. Nesse caso, não é a interferência do Estado, de uma potência ou soberania que ameaça os direitos individuais (e a liberdade) da mulher, mas alguém do próprio convívio dela. A pesquisadora reitera que “essa não é apenas uma discussão feminista, mas republicana”.
|