Muito do que sabíamos sobre a biologia dos organismos
mudou nos últimos anos. Isso sugere que o que saberemos amanhã também será
diferente do que sabemos hoje. Por exemplo, há alguns anos, acreditávamos que a
informação hereditária se encontrava exclusivamente na sequência de
nucleotídeos que compõe o genoma. Hoje já pensamos de modo diverso: há também
informação hereditária na forma como o material genético está empacotado nos
cromossomos ou é “marcado” quimicamente por certas moléculas ligadas ao DNA.
Isso implica uma mudança dramática no pensamento biológico: até pouco tempo, a
herança era entendida como um processo apenas genético e, hoje, está bem
estabelecida a existência de mecanismos epigenéticos de herança, situados acima
do nível das sequências nucleotídicas no DNA. Outro exemplo ilustrativo é que,
até o começo da década de 1970, imaginávamos que o fluxo de informação genética
se dava numa única direção: o DNA produz moléculas de RNA, que produz
proteínas. Porém, a descoberta do fenômeno da transcrição reversa mostrou que o
DNA pode ser produzido a partir de moléculas de RNA (o que ocorre nos
retrovírus, como o HIV).
Tais mudanças no modo como os cientistas explicam
fenômenos naturais não devem causar surpresa. Um dos mais importantes legados
da filosofia dos últimos 150 anos foi a demonstração de que seres humanos não
podem construir mais do que modelos para a compreensão do mundo. Esses modelos
se mantêm e são úteis por um período, mas podem sempre ser superados. E a
ciência construiu procedimentos sem precedentes na história da humanidade tanto
para propor modelos eficazes quanto para superar os próprios modelos.
O conhecimento sobre evolução também foi e vem sendo
construído desse modo característico da ciência, sendo constantemente debatido
e colocado à prova. Diferente do que argumentam muitos criacionistas, a
evolução não é uma teoria “imposta” à comunidade científica sem debates ou
desafios. Muito pelo contrário, ela vem sendo examinada cuidadosamente por
cientistas, tendo sido e ainda sendo questionada e desafiada. Como consequência,
parte do que os cientistas pensam sobre evolução hoje é diferente do modo como
pensavam há algumas décadas, enquanto muitas outras ideias básicas permaneceram
virtualmente inalteradas por muito tempo. O trabalho de Darwin nos deixou dois
legados fundamentais. Em primeiro lugar, apresentou convincentes argumentos
sobre a realidade da transformação das espécies ao longo do tempo, algo que chamaremos
de “a ideia de evolução”. Em segundo lugar, propôs a seleção natural como
mecanismo de mudança evolutiva. Neste artigo, examinaremos alguns dos desafios
e as modificações que vêm ocorrendo nessas duas ideias.
Árvore da vida
Em A origem das
espécies, Darwin buscou documentar a ideia de que todos os seres vivos são
aparentados uns aos outros e de que novas formas vivas se originam a partir das
pré-existentes. Ele chamou esse processo de “descendência com modificação” e
propôs que todos os seres vivos estariam conectados uns aos outros através de
uma “árvore da vida”.
Darwin defendeu a ideia da evolução com base em
observações vindas das mais diversas áreas: o estudo da distribuição dos
organismos (biogeografia), o estudo das semelhanças e diferenças morfológicas
entre espécies (anatomia comparada), o estudo do desenvolvimento embrionário
(embriologia) e o estudo dos fósseis (paleontologia). Hoje, quase 150 anos
depois, as evidências de que a evolução ocorre são mais fortes do que nunca.
Novas descobertas em todos esses campos apoiam a ideia de que todos os seres
vivos são aparentados entre si e descendem de ancestrais comuns. Além disso,
novos campos do conhecimento, inexistentes na época de Darwin, vieram reforçar
as evidências de que a evolução ocorre. A comparação dos genomas de organismos
tão diversos quanto humanos, chimpanzés, camundongos, galinhas, moscas e
leveduras (todos completamente sequenciados) vem sendo particularmente
informativa. Essas análises revelaram um grande número de genes conservados –
isto é, praticamente inalterados – em todas essas espécies. Além disso, há
também conservação em outro nível: o ordenamento de genes nos cromossomos de
organismos tão diferentes quanto humanos e camundongos apresenta extensas
semelhanças. Como explicar isso? A teoria evolutiva dá sentido a essa observação:
tais semelhanças são consequências do parentesco entre seres vivos. O
ordenamento dos genes, por exemplo, foi herdado de um ancestral comum a humanos
e camundongos: a evolução envolve o processo de transmissão de tais
características ao longo de milhares de gerações e de diferentes linhagens. Todas
as semelhanças genômicas que encontramos são
testemunhos desse processo.
Porém, uma outra ideia fundamental de Darwin, a de que
essas relações de parentesco podem ser expressas por uma árvore, não vem tendo
vida tão fácil. Os mesmo estudos genômicos que revelam os elos de parentesco
entre os seres vivos trouxeram surpresas: as árvores de parentesco obtidas
através de diferentes genes muitas vezes contam histórias evolutivas
diferentes. Como isso seria possível, se todos os seres vivos são aparentados
uns aos outros, compondo uma única árvore da vida? A resposta é que talvez não
haja uma única árvore. Isso ocorre-ria caso os organismos evoluíssem através de
dois processos: descendência com modificação (representado pela árvore) e um
segundo processo, transferência gênica horizontal (que transforma a árvore numa
rede ou teia e é particularmente comum em bactérias, que incluem a maioria das
formas vivas). Este último processo corresponde à transferência de material
genético entre espécies diferentes, resultando em organismos que são “mosaicos”
de genes de espécies pré-existentes.
Assim, vemos que o sequenciamento de genomas está
contribuindo para a biologia evolutiva de duas formas. Por um lado, reforça a
ideia de que todos os seres vivos são aparentados e de que as espécies evoluem.
Por outro, indica que esse processo inclui também a mistura de genomas de
diferentes espécies. Longe de ser estático, nosso conhecimento biológico evolui.
Podemos esperar nos próximos anos novas descobertas sobre as complicadas
relações de parentesco entre os organismos.
Seleção natural e restrições
A segunda grande ideia de Darwin (cuja autoria ele
partilha com o naturalista Alfred Wallace) foi a da seleção natural. Para a
teoria sintética – a teoria darwinista que se consolidou a partir dos anos 30, unificando
evolução e genética —, a explicação do processo evolutivo não precisaria de
qualquer outro mecanismo além da seleção natural e, no caso da origem de novas
espécies, de mecanismos de isolamento reprodutivo. Hoje, temos uma nova forma
de entender a evolução, baseada em parte numa síntese entre biologia evolutiva
e biologia do desenvolvimento. A biologia evolutiva do desenvolvimento, ou evo-devo,
vem contribuindo para um pluralismo de processos, a ideia de que a
compreensão da evolução requer uma série de mecanismos operando de modo complementar.
Entre eles, temos as restrições ao processo evolutivo.
Para abordá-las, precisamos primeiro tratar da relação entre
evolução e desenvolvimento. Enquanto a evolução modifica o
desenvolvimento (o desenvolvimento também evolui!), o desenvolvimento restringe
as possibilidades da evolução. Afinal, o desenvolvimento não é um processo
infinitamente plástico, mas um processo muito complexo de produção de forma
(morfogênese) a partir de um sistema intricado de interações celulares e
moleculares. A complexidade do sistema de desenvolvimento e a concatenação de
suas etapas fazem com que certas inovações morfológicas se tornem impossíveis para
determinados organismos. Assim, as mudanças evolutivas são restritas às que
“podem ocorrer” como consequência de mudanças no desenvolvimento. Isso pode
explicar por que certas variedades de formas vivas não são encontradas, como,
por exemplo, mamíferos com seis patas, em vez de quatro: o padrão tetrápode
evoluiu há muito tempo na linhagem dos vertebrados e o modo como esses animais
se desenvolvem dificulta inovações nesse padrão, cuja via de desenvolvimento
foi herdada de ancestrais remotos.
Entretanto, as restrições podem também cumprir um papel
positivo na evolução, não apenas impedindo a produção de inovações, mas também
alterando a direção e velocidade da evolução. Para explicar isso,
introduziremos uma analogia. Imaginem uma torneira ligada a um reservatório de
esferas de metal, da qual jorram esferas de diferentes diâmetros. Sob a
torneira, colocamos peneiras de diferentes malhas, que deixam passar amostras
variadas de esferas. Sob a peneira, temos um recipiente no qual recolhemos as
esferas resultantes. Eis os análogos biológicos de nossa curiosa montagem: a
torneira representa a fonte da variação; as esferas, formas variantes que
constituem uma população; a peneira, a seleção natural.
Consideremos inicialmente uma situação na qual a torneira
está totalmente aberta, ou seja, nenhuma esfera é impedida de sair pela
torneira. Peneiramos as esferas e examinamos o resultado. Quem é responsável pela
distribuição das esferas no recipiente: a torneira, a peneira, ou ambas? Como a
torneira não teve qualquer papel no fluxo ou não das esferas até
o recipiente, é evidente que a peneira foi responsável pela
distribuição. Esta é a situação enfatizada pela teoria sintética: se não há
qualquer restrição à variação, então, a seleção natural é o mecanismo que
explica a distribuição de características numa população e a direção de sua
mudança ao longo do tempo.
Suponhamos, contudo, outra situação, na qual a torneira
não está totalmente aberta. Neste caso, algumas esferas não poderão sair do
reservatório. Peneiramos as esferas e perguntamos quem responde por sua
distribuição. É evidente que, nesse caso, tanto a torneira quanto a peneira
explicam a distribuição. Nessa situação, há restrições ao processo evolutivo e
a distribuição das características variantes na população é enviesada por elas.
Então, a direção da mudança na distribuição de características da população,
por exemplo, de sua evolução, é influenciada tanto pela seleção quanto pelas
características dos processos de desenvolvimento, que resultam em restrições.
A origem dos mais aptos
As explicações evolutivas sobre como surgiu a diversidade
no mundo natural tiveram durante muito tempo um calcanhar-de-aquiles. A teoria
da seleção natural é capaz de explicar por que uma população muda de
composição, mas até recentemente sabíamos muito pouco sobre como surgiam as
novas características de uma espécie, inclusive aquelas sobre as quais a
seleção natural atua. Em particular, o surgimento de organismos com grandes modificações
em relação aos seus ancestrais representava um imenso desafio aos
evolucionistas. Nas últimas décadas, entretanto, a compreensão do processo de
desenvolvimento e de sua regulação está mudando esse quadro.
Os organismos multicelulares são formados por grande
número de tipos celulares especializados. Diferenças entre tipos celulares
resultam de diferentes conjuntos de proteínas, codificadas por genes. Todas as
células de um mesmo organismo contêm os mesmos genes, de modo que as diferenças
entre tipos celulares resultam de diferenças na expressão desses genes:
diferentes conjuntos de genes estão ligados em diferentes tipos celulares,
levando à produção de diferentes proteínas e à diferenciação celular. Mas como a
expressão dos genes é regulada? Isso ocorre através da ligação de certas
proteínas a regiões regulatórias no DNA, tipicamente próximas dos genes. Essas
regiões funcionam como “interruptores” e as proteínas que a elas se ligam podem
ativar ou reprimir a expressão dos genes. A compreensão do desenvolvimento e de
como ele evolui depende do entendimento da regulação gênica, que participa não
apenas da diferenciação celular, mas também da morfogênese.
Sabemos hoje que um mesmo conjunto de genes, praticamente
inalterado, está envolvido no desenvolvimento dos mais diversos animais, de
moscas a humanos, de polvos a mariposas. O biólogo evolutivo do desenvolvimento
Sean Carroll propôs uma metáfora interessante para tais genes: eles comporiam a
“caixa de ferramentas genéticas” para o desenvolvimento. Como é possível fazer
animais muito diferentes com base nas mesmas ferramentas? O segredo está na
maneira como os genes são usados, na regulação da expressão gênica. Diferentes animais
usam os mesmos genes em tempos e lugares diferentes no desenvolvimento, resultando
em formas corporais também distintas. Isso é possível porque cada um dos genes
envolvidos no processo de desenvolvimento pode ter vários interruptores diferentes.
Isso permite que um mesmo gene seja usado em tempos e lugares distintos, porque
conjuntos diferentes de proteínas capazes de acionar ou desligar os genes do
desenvolvimento estão presentes em diferentes momentos e em diferentes tecidos em
formação.
Um exemplo ajudará a entender esse mecanismo. Vertebrados
diferem entre si na composição de sua coluna vertebral: alguns têm pescoços
longos (o ganso, por exemplo), outros possuem pescoços curtos (o camundongo),
enquanto outros nem possuem pescoço (as cobras, por exemplo, possuem muitas
vértebras, mas elas são torácicas – com costelas – e não cervicais,
características do pescoço). Estudos do desenvolvimento dos vertebrados
revelaram que há um gene (chamado de Hoxc6), que é expresso na coluna
vertebral. A fronteira de sua expressão na coluna sinaliza onde deverá ocorrer a
transição entre vértebras cervicais e torácicas. Portanto, a origem de um plano
corporal com um pescoço mais longo ou curto pode ser produzida pelo
deslocamento da região em que o gene Hoxc6 é expresso. As cobras
representam um caso extremo: a região de expressão do Hoxc6 foi tão deslocada
anteriormente (em direção à cabeça) que nem há formação de vértebras cervicais:
seu corpo longo resulta de perda do pescoço e aumento do tórax. É
importante notar que o gene Hoxc6 é muito semelhante em cobras e gansos.
O que muda é a região em que ele é expresso e isso ocorreu porque os
interruptores que o regulam mudaram ao longo da evolução. Em cobras, o
interruptor só é acionado nas vértebras perto da cabeça. Já em gansos, ele é
expresso longe da cabeça e o pescoço se estende até a 22ª vértebra.
Esse exemplo ilustra o poder da evo-devo. Antes, a
teoria sintética podia oferecer explicações para a evolução de novos planos
corporais com base nas vantagens que eles traziam. Com a evo-devo,
passamos a ter como explicar a origem das formas sobre as quais a
seleção natural pode atuar. Dessa forma, fortalecemos a visão darwinista da
evolução, ao construir uma teoria mais sólida sobre a origem de novas formas
evolutivas. É imensamente satisfatório saber que temos modelos cada vez
melhores para explicar como, a partir de um vertebrado ancestral, planos
corporais tão diferentes quanto os de camundongos, gansos e cobras foram
gerados. Mas, para alguns evolucionistas, a evo-devo também representa
um desafio à visão tradicional da teoria sintética. Suas explicações sobre como
são geradas as novidades evolutivas ajudam a compreender os rumos da própria
mudança evolutiva. É como se, com a evo-devo, pudéssemos enxergar o funcionamento
da torneira que usamos como exemplo, revelando que tipo de esferas (representando
formas biológicas) ela produz. A origem de organismos de corpo alongado, como
as cobras, passa a ser explicada não apenas pelas vantagens que esse plano
corporal representa, mas também pela viabilidade de produzi-lo. Mais ainda, um
aparente “salto” evolutivo, no qual uma nova forma de corpo surge, passa a ser
explicável com base em mudanças genéticas bastante limitadas (envolvendo os
“interruptores” genéticos).
Quando buscamos explicar a evolução de um grupo de
organismos, é frequentemente necessário combinar processos evolutivos graduais,
nos quais características vão tendo suas distribuições modificadas ao longo das
gerações de uma população por seleção natural, com saltos morfológicos produzidos
por alterações no desenvolvimento, em particular, na sua regulação. Neste
último caso, podemos ter grandes mudanças da morfologia dos organismos, nas
quais estruturas não mudam gradualmente, mas, ao contrário, uma estrutura se
origina de outra através de uma transformação discreta e completa. Na era da evo-devo,
teremos a oportunidade de reunir esses dois tipos de mecanismo – a seleção
natural atuando sobre pequenas variações e grandes mudanças causadas por
alterações no desenvolvimento – para explicar a diversidade de formas vivas.
Charbel Niño El-Hani é
professor do Instituto de Biologia da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e bolsista de produtividade em pesquisa do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
Diogo Meyer é professor do
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
*
Artigo originalmente publicado na revista Scientific
American do Brasil - série História da Evolução, p. 76 - 85, 14 jun. 2007.
Para saber mais:
- Infinitas
formas de grande beleza. Sean Carroll. Jorge Zahar. 2006. - Evolução:
o sentido da biologia. Diogo Meyer & Charbel Nino El-Hani.
Unesp, 2005. - Evolução.
Mark Ridley. Artmed, 2006. - From DNA to diversity: molecular genetics and the evolution of animal design. Sean Carrol, Jennifer Grenier & Scott
Weatherbee. Malden-MA; Blackwell, 2004.
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