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Reportagem
Divergências astronômicas: passado, presente e futuro
Por Cintia Cavalcanti
10/10/2013

Tão distante quanto a própria origem do homem, a história da mais antiga das ciências naturais, a astronomia, permeada por grandes divergências ao longo de seu percurso, mostra que a controvérsia não somente é parte integrante do processo científico, mas constitui, antes de tudo o combustível para o seu funcionamento. Como observa Paulo Sérgio Bretones, químico da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), “há uma dinâmica no processo de decisão da ciência. Ela, muitas vezes, é acordo, não consenso”. Embora o interesse do homem sobre o espaço sideral e os corpos celestes visíveis, que através dele se movimentam, preceda em muitos milhares de anos o estabelecimento do método científico e da ciência moderna, o conhecimento adquirido desde tempos remotos, permitia aos nossos antepassados que fizessem previsões dos movimentos de corpos celestes visíveis a olho nu, como estrelas e planetas, com bastante precisão, como denotam monumentos como o de Stonehenge, na Inglaterra, e de Newgrange, na Irlanda, e outras descobertas arqueológicas.

Uma das questões astronômicas que atraiu mais recentemente a atenção de cientistas e do público em geral ao redor do mundo todo foi o “rebaixamento” de Plutão de seu status planetário, caso que na opinião de Bretones, ilustra perfeitamente o funcionamento do processo decisório da ciência. Antes de nos adentrarmos mais especificamente na polêmica envolvida nessa reclassificação, verifiquemos os antecedentes históricos da definição de planeta. Na antiguidade, os gregos foram os responsáveis por cunhar o termo planeta – asteres planetae, ou estrelas errantes –, que diferenciava essa categoria de astros das demais estrelas, devido ao fato de estas se apresentarem em uma estrutura fixa, como se estivessem “presas” ao firmamento, enquanto os primeiros se moviam entre as estrelas e ao redor da Terra. Embora, nessa época, já se discernissem duas categorias de corpos celestes, considerava-se a existência de sete planetas, os quais deram origem ao nosso calendário de sete dias: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno.

No século XVI, quando o modelo geocêntrico deu lugar ao modelo heliocêntrico de Universo, proposto inicialmente por Nicolau Copérnico e aperfeiçoado posteriormente por Galileu Galilei e Johannes Kepler, o Sol deixou de ser considerado um planeta e a Terra passou a ser acrescida aos demais. Sequencialmente, com a descoberta dos quatro satélites de Júpiter, feita por Galileu, em 1610, a Lua foi também reclassificada, deixando de ser considerada um planeta, passando a ter um status distinto, o de um astro que se move em uma órbita ao redor de um planeta. Como ressalta o físico Sylvio Ferraz Mello, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo “A nova definição de planeta”, naquela época, a definição de planeta era bastante clara: “um astro que se move em uma órbita ao redor do Sol”.

Em 1781, descoberto pelo alemão William Herschel, Urano, o sétimo planeta a partir do Sol, foi o primeiro a ser visto somente através do uso de telescópio – já que os outros eram visíveis a olho nu. Duas décadas mais tarde, um novo objeto foi encontrado orbitando o Sol. Ceres, descoberto pelo italiano Giuseppe Piazzi, foi logo considerado um planeta, permanecendo sob essa categoria por mais de meio século, até que vários novos objetos foram sendo descobertos na mesma região, em um imenso vazio existente entre as órbitas de Marte e Júpiter. De acordo com Mello, da USP, Herschel foi o primeiro a se manifestar observando que, ao contrário dos outros, esses “planetas” não apareciam como pequenos discos nos telescópios, mas apenas como pontos luminosos, indicando se tratarem de objetos muito menores. Por essa razão, Herschel passou a denominá-los “asteroides”.

Em 1846, Netuno foi descoberto, dando sequência ao achado de uma série de novos “planetas” entre as órbitas de Marte e Júpiter. De acordo com o pesquisador do IAG/USP, em 1860, o número desses “planetas” já ultrapassava 50, “mostrando que se tratava de uma população com características próprias e distintas dos oito planetas principais”. A partir daí, o tipo de movimento deixava de ser o único critério para classificar um astro como planeta, ao passo que a categoria dos asteroides se mostrou mais aceitável para explicar as novas descobertas entre Marte e Júpiter. Ao final do século XIX, supostas irregularidades nos movimentos de Urano e Netuno, levaram cientistas a buscar exaustivamente por um novo planeta que tivesse essas mesmas irregularidades. Tal busca levou à descoberta de Plutão. Desde o início, o objeto celeste recém-descoberto foi aclamado como sendo um planeta, mesmo que posteriormente se tenha descoberto que a alteração nos movimentos de Netuno e Urano fossem decorrentes de outras causas sem qualquer relação com a existência de mais um planeta.

A partir de 1978, novas descobertas relacionadas à massa e ao tamanho de Plutão, indicavam que, embora obviamente esse astro obedecesse à primeira premissa – orbitar ao redor do Sol –, para ser classificado como planeta, seu tamanho não deixava claro em que categoria poderia ser melhor enquadrado. Mais recentemente, na década de 1990, a descoberta de uma quantidade expressiva de novos objetos orbitando além da órbita de Netuno, ocupando uma região no espaço denominada Cinturão de Kuiper – dentre os quais Eris, cujo tamanho é superior ao de Plutão – suscitou um acalorado debate que culminou, em agosto de 2006, no estabelecimento de novos critérios para a classificação dos planetas, por ocasião da Assembleia Geral da União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês), em Praga. Segundo a nova definição, para ser considerado planeta, um astro deve estar em órbita ao redor de uma estrela, ter massa suficientemente grande para que a gravidade o tenha tornado quase esférico e ter sua órbita “limpa” dos remanescentes de seu processo de formação. Aqueles que cumprissem apenas os dois primeiros critérios passariam a ser chamados de planetas anões, como no caso de Plutão.

“Como a resolução tinha data para acontecer, ela não teve um amadurecimento necessário”, avalia Bretones, da Ufscar, que esteve presente no evento. De acordo com ele, a necessidade de cumprir uma agenda estipulada fez com que a decisão fosse tomada sem muita discussão. O químico ressalta que, do ponto de vista educacional, é importante que a linguagem esteja alinhada ao que se quer dizer e, ao contrário disso, a denominação de “planetas anões” não remete a uma relação com o terceiro critério escolhido para a nova classificação. “Quando você ensina, a linguagem tem que estar ligada àquele conceito que você quer explicar”, pontua. Já em relação à mudança na denominação de Plutão, para Mello, da USP, os nomes que usamos na ciência devem se adaptar às novas realidades decobertas. “Uma das maravilhas da ciência é que ela não se pretende definitiva”, afirma o físico.

Cosmologia e origem do universo

Adentrando o campo teórico da cosmologia, ramo da astronomia que se dedica ao estudo da estrutura, composição e evolução do Universo, um assunto que desperta muita curiosidade fora do meio acadêmico e muita controvérsia dentro dele refere-se à origem do Universo. Conforme explica Gustavo Rodrigues Rocha, físico, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), “a própria ideia de que o Universo teve uma origem já é parte de uma teoria cosmológica”. Segundo ele, nem todas as teorias cosmológicas assumem que o Universo teve necessariamente uma origem. Em seu artigo “Controvérsias científicas: o caso do modelo padrão da cosmologia”, Rocha analisa historicamente as controvérsias centrais da cosmologia do século XX sob a perspectiva da sociologia do conhecimento científico, período em que as três pricipais teorias para explicar a origem do Universo foram desenvolvidas.

A primeira abordagem teórica, elaborada pelo padre belga Lemaítre e posteriormente aperfeiçoada por George Gamow, trazida a público em 1931, estipula que todo o Universo estava comprimido em um único átomo, o “átomo primordial”, e que toda a matéria dentro dele foi se fragmentando, sendo que alguns dos fragmentos sofreram fragmentações sucessivas até chegar aos átomos atuais. “Além da matéria estar se afastando, o espaço também está aumentando. Essa é uma explicação decorrente de uma série de equações, de uma matemática (usada) para pensar nisso”, acrescenta Bretones. Tal abordagem, chamada Teoria do Big Bang, admite que o Universo tenha cerca de 14 bilhões de anos e constitui hoje o modelo padrão da cosmologia.

Rocha mostra, em seu artigo, que embora, nas décadas seguintes, a maioria dos físicos e astrônomos considerasse que o Universo estava em expansão, conforme a Lei de Hubble, a partir da década de 1930, surgiram novos trabalhos relacionando as novas teorias cosmológicas com a termodinâmica, a teoria quântica e a teoria nuclear. A Lei de Hubble, também conhecida como “desvio para o vermelho”, explica a alteração na frequência das ondas de luz e o desvio para a gama de cores de frequência mais baixa no espectro – sendo a mais baixa a do vermelho – pela ideia de que o comprimento de onda (inversamente proporcional à frequência) aumenta como resultado direto da expansão do espaço. Segundo o físico da UEFS, da década de 1930 até a de 1960, poucos cientistas da área tinham a Teoria da Relatividade Geral de Einstein como objeto de suas pesquisas e nem todos aceitavam o fundamento relativístico do Universo em expansão, havendo inúmeras teorias rivais. Ele mostra como as evidências que sustentam a Lei de Hubble e, consequentemente, a ideia de um Universo em expansão, foram utilizadas por pesquisadores que defendiam uma teoria rival, de um universo estático. Através do que chama “regressão do experimentador”, o físico da UEFS ilustra como o mesmo conjunto de evidências pode ser usado para embasar teorias opostas.

Por volta das décadas de 1950 e 1960, desenvolvida por Fred Hoyle, Hermann Bondi e Thomas Gold, surgiu a principal teoria concorrente ao modelo padrão, a Teoria do Estado Estacionário. “O conceito de estacionário na física pode ser metaforizado por uma torneira aberta numa pia, em que a quantidade de água que entra é a mesma que sai, fazendo com que o nível da água da pia permaneça igual”, explica Bretones, da Ufscar. Segundo ele, essa é uma forma de explicar que o Universo tem uma expansão e que ele vai se criando ao mesmo tempo em que vai se originando. Rocha, da UEFS, observa que essa teoria teve grande repercurssão e muitos adeptos até a década de 1960, quando, a partir de novos desenvolvimentos experimentais, teóricos e observacionais, ela acabou desacreditada pela maioria dos astrônomos.

A partir da década de 1960, vários problemas foram sendo apontados tanto na Teoria do Estado Estacionário quanto na do Big Bang. Nessa época, a física de plasma foi usada pelos físicos Alfvém e Klein, como uma terceira alternativa para explicar o desvio para o vermelho no espectro de luz. Porém, com o resurgimento da Teoria do Big Bang, a cosmologia de Alfvén e Klein foi esquecida. Na década de 1980, o físico americano Alan Guth, aliando a física nuclear e a cosmologia, postulou a Teoria do Universo Inflacionário. De acordo com Rocha, essa terceira versão do Big Bang teve como principal escopo contornar os problemas identificados no modelo da década de 1970. Tendo apresentado soluções para tais problemas, a teoria cosmológica do Big Bang se associou definitivamente às novas teorias de partículas. Segundo o físico da UEFS, entretanto, para os críticos, a teoria acabou acumulando um excesso de hipóteses e entidades não observadas, introduzidas para “salvar as aparências”, como, por exemplo, o campo responsável pela inflação, a energia escura e a matéria escura.

“Espera-se que o debate seja enriquecido, em parte, pela contínua investigação empírica do céu”, ressalta Rocha. Ele afirma que novas descobertas deverão vir à tona com o início do primeiro período de observações do DES (Dark Energy Survey), que pretende estudar, de maneira indireta, a natureza da energia escura, uma peça fundamental do quebra-cabeça formado pela Teoria do Big Bang. Embora esta constitua o modelo hegemônico na comunidade científica, sempre houve dissidentes, insatisfeitos, e proponentes de teorias alternativas, como se pode verificar na publicação, em 2004, da Open Letter to the Scientific Community, que manifesta a insatisfação de seus signatários com o sistema de revisão por pares, dominado pelos adeptos da teoria padrão, o que, segundo eles, obstrui o debate aberto de ideias discordantes e alternativas. Há, porém que se destacar que “discordâncias com o modelo padrão, empíricas ou teóricas, não formam necessariamente uma teoria cosmológica alternativa, capaz de explicar a totalidade das observações que a Teoria do Big Bang pretende explicar”, acrescenta o cientista.

Ainda que a ciência se pretenda neutra e objetiva, sua história deixa claro que não é possível transcender o aspecto social de seu desenvolvimento, fato que a leva a ser mutável e moldada por visões historicamente determinadas do que constitui o “progresso” e a própria “ciência”, como conclui Rocha em seu artigo: “O próprio historiador Thomas Kuhn, que popularizou a expressão ‘mudança de paradigma’, desenvolveu um modelo histórico para as mudanças teóricas dentro da comunidade científica”, conclui o pesquisador.