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Reportagem
O (im)poder das marcas
Por Daniela Lot
10/06/2008

A marca é o que importa. Ela é que define a compra. Ela é que determina a escolha. É a marca que se compra e não o produto. Seu poder captura quem pode comprar e quem não tem a menor condição de adquiri-la. Promove verdadeiros cultos obsessivos e estimula o consumismo desenfreado. Nessa linha de pensamento, as marcas emergem como fundamento do consumo, essência do capitalismo, característica de uma sociedade das aparências. As marcas, e o marketing que fariam delas o que são, funcionariam como instrumentos de persuasão das grandes corporações, controle social e homogeneização. Mas se o mundo dos logos parece adquirir cada vez mais poder, sua onipotência é questionada por verdadeiros movimentos anti-logo, que re-apropriam as marcas e subvertem imagens, objetos, usos, identidades dos produtos, arrancando-os dos seus contextos originais e dando a eles novos significados.

A noção de poder das marcas é explorada no livro Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido (2004), de Naomi Klein. Nele, a jornalista canadense mostra como as grandes corporações deixaram de ser um negócio de produtos, para ser um negócio de imagens – "Imagem é tudo" – deixando de vender apenas coisas, para vender sonhos, idéias e estilos de vida. Revelando os bastidores das multinacionais, com suas fábricas sombrias, a super-exploração da mão-de-obra dos países pobres, o trabalho infantil, as diferenças exorbitantes dos preços dos produtos ao saírem das empresas terceirizadas e chegarem às lojas, apresenta a face escondida pelas propagandas do glamoroso mundo das marcas. Como conclui o sociólogo Laymert Garcia, da Unicamp, em uma resenha do livro de Klein: "parece que na perspectiva do capitalismo global a única identidade que ainda faz sentido e deve ser preservada é a identidade da marca".

Sonhar acordado

A antropóloga Débora Leitão, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e da pós-graduação em moda da Fatec/Senac Porto Alegre, explica que a idéia de que as pessoas compram não um objeto (ou apenas um objeto), mas sonhos, estilos etc, não é uma coisa nova. A antropologia sempre tentou mostrar que na sociedade contemporânea os consumidores se relacionam com os objetos mais por razões simbólicas, do que utilitárias. "As pessoas produzem, consomem, usam coisas pelo que elas significam. O aspecto simbólico sempre foi mais importante. Atualmente, a marca é o lugar onde esse aspecto simbólico estará concentrado", conclui a antropóloga.

Ela analisa que o consumismo contemporâneo tem a ver com o que o autor Colin Campbell, no livro A ética romântica e o espírito do consumismo moderno (2004), apontou como a necessidade das pessoas de fazer uma coisa que ele chama de "sonhar acordado" (day dreaming). "O consumismo é essa necessidade de comprar não um objeto novo, mas uma nova experiência imaginária, da mesma forma como quando lemos um romance", explica a antropóloga. Consumir significa, assim, comprar uma experiência imaginada, que, por isso, nunca vai ser completamente satisfeita. "Daí a necessidade de continuar comprando, de continuar buscando outras experiências imaginadas", conclui ela.

Criação da marca

Quando se planeja a criação de uma empresa ou de um produto, uma das principais preocupações é com a marca. Para Francisco Serralvo, que trabalha com marketing na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, sempre que um produto é criado, a ele é associada uma marca. Esta, ao ser construída, passa pelo processo de criação de sua identidade e pelo processo de ser posicionada no mercado. "Criar a identidade da marca significa desenvolver todo um conjunto de associações que o consumidor, o usuário do produto, vai fazer com relação àquela marca ou àquele produto. E o posicionamento é o grau de intensidade e de mudança que essa marca vai desfrutar, vai ter". A intenção da marca, explica Serralvo, é agregar valor ao produto, e permitir o desenvolvimento de um conjunto de associações objetivas, diretamente relacionadas ao desempenho do produto, e subjetivas ou sociais. "Quando a pessoa compra um determinado produto de uma determinada marca", diz ele, "essa marca acaba identificando essa pessoa dentro de uma perspectiva social". Em sua opinião, as pessoas são identificadas pelo que elas fazem, pelos produtos e marcas que consomem, pelos locais que freqüentam etc. De acordo com ele, essa identificação tem um peso maior para algumas pessoas e grupos do que outros.

"Quase sempre o consumidor é seduzido pela propaganda", diz o professor da PUC. Por isso ele ressalta que entender bem o consumidor e o conceito do produto e desenvolver um conjunto de associações que vinculem mais fortemente uma coisa a outra é fundamental, é o grande segredo do desenvolvimento das marcas no mercado. "As pesquisas de marketing têm se valido das pesquisas motivacionais que, um tempo atrás, estavam quase completamente suportadas pelos profissionais da psicologia, como da psicologia social, mas, hoje nós contamos com uma grande contribuição dos profissionais da área de antropologia".

Funkeiros e rappers: (re)apropriação das marcas

Na criação da marca há uma aposta de que um conjunto de idéias, valores e imagens se tornam agregados a ela. A reapropriação da marca por outros grupos desestabilizaria essa noção? Débora Leitão traz como exemplo o funk carioca, Bonde da Osklen, que se re-apropriou de uma marca de roupas da classe média alta, a grife Osklen.

Se o Bonde da Osklen reforça a visibilidade da marca, e serve de estímulo aos funkeiros para consumi-la, ao mesmo tempo, como destaca a antropóloga, o antigo consumidor da Osklen da zona sul pode sentir ameaçado se for confundido com o novo público consumidor, o funkeiro. Da mesma forma ocorreu com a Lacoste na França, que virou a marca favorita dos rappers franceses. Ela conta que, no início, a empresa ficou incomodada, com medo de perder seus consumidores tradicionais da elite. A solução encontrada pela Lacoste, explica, foi segmentar a marca e desenvolver versões mais populares. Para ela, nos dois casos, “a escolha pelas marcas serviu como 'ponte' aos rappers e funkeiros para transpor a 'cerca' que os impedia de desfrutar do prestígio associado ao seu uso”.

Escolha, liberdade e política

O consumidor entra no supermercado para comprar iogurte e as muitas prateleiras lotadas trazem várias opções: natural, de frutas, com polpa, líquido, com fibras, petit suisse. O consumidor, a princípio, acha a experiência maravilhosa e imagina que ali, diante de inúmeras possibilidades encontrará o iogurte ideal para ele, que seja exatamente aquilo que ele estava procurando. Então depois de olhar, analisar, ele toma sua decisão. Mas, estará o consumidor feliz? Para o psicólogo Barry Schwartz, que escreveu O paradoxo da escolha (The paradox of choice: why more is less, Harper Collins Publishers Inc., 2004), a resposta é não.

Ao contrário do que as pessoas imaginam ser bom para elas, defende Barry Schwartz, a enorme variedade de opções as deixa insatisfeitas e, muitas vezes, paralisadas, com dificuldade de escolher. Isso porque, com tantas opções, elas querem "maximizar" suas escolhas, de modo a optar sempre pelo melhor, pelo mais adequado, ou pelo melhor preço. Quando, finalmente, tomam uma decisão, acabam se convencendo de que, se tivessem levado mais tempo poderiam ter encontrado um produto ainda mais adequado. Daí vem a frustração, aponta Schwartz. Para ele, quanto menos opções, mais modestas são as expectativas. Sua sugestão é procurar pelo "bom o suficiente", e não pelo "melhor". Já a antropóloga Débora Leitão discorda de que, efetivamente, o consumidor disponha de uma ampla gama de opções: "Se por um lado temos a sensação de termos uma enorme possibilidade de escolhas, essa possibilidade é um pouco falsa", defende. "Existe uma gama de possibilidades que é oferecida pelo mercado, mas que não é imensa. A escolha existe, mas ela é dada dentro de um leque que já foi feito, de uma escolha anterior que já foi feita".

Se as marcas tornaram-se aposta do mercado mundial nas sociedades contemporâneas, também se tornaram alvo privilegiado dos movimentos anti-corporação. Resistir às marcas e propagandas, subverter suas lógicas, aparece como modo de resistir à globalização, ao poder da marca e do mercado.

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