Havia um tempo em que a gente acreditava naquelas imagens engraçadas: uma série de macacos, em fila indiana, cada qual um pouco menos encurvado que o precedente, cada um menos peludo, ligeiramente menos “animal” e mais “humano”. Chegamos a acreditar que nossa origem parecia ainda mais simples: macacos, australopitecos, homens-macaco, homens das cavernas... Até chegar ao Homo sapiens, o cume da evolução e da inteligência. Como se a evolução marchasse numa direção só, em linha reta. Como se as bactérias e os invertebrados não fossem também fruto de milhões de anos de adaptação e evolução.
Como achávamos que fosse o lento caminho da evolução... Foto: F.C. Howell, Early man , Time-Life International, 1966.
Quando tínhamos menos conhecimento sobre nossa própria evolução, achávamos que, com o passar dos milênios, a postura de nossos antepassados tivesse ficado progressivamente mais ereta, o cérebro maior, as mãos mais ágeis e hábeis. Só restava achar o suposto “elo perdido” nesse caminho rumo à humanidade: o último dos macacos, ou o primeiro dos homens.
Hoje, sabemos que a evolução levou ao surgimento de diferentes linhagens de macacos antropomorfos (ou hominóides), e também a várias humanidades. “A acumulação de provas paleoantropológicas passou por uma impressionante aceleração nos últimos 30 anos”, comenta Olga Rickards, professora de antropologia molecular na Universidade “Tor Vergata”, de Roma, na Itália. “Graças a tais provas”, continua, “conseguimos abandonar a interpretação na moda no início do século XX: uma evolução linear, gradual, em que se passaria de um estado de macacos para o homem moderno através de formas intermediárias como o pitecantropo (que hoje se chama Homo erectus) e o homem de Neandertal”. Hoje, explica a cientista, que dirige um laboratório para o estudo do DNA humano antigo, o cenário é completamente diferente: “Parecido com a imagem de um arbusto, em que diversas espécies, mais ou menos contemporâneas, experimentaram o desenvolvimento diferenciado de vários caracteres: somente um dos tantos galhos do arbusto da evolução humana levou à nossa espécie”. ... e o que sabemos hoje: Uma entre tantas possíveis “árvores genealógicas”, ou “arbustos de família” do homem. No eixo vertical, em milhões de anos atrás (MyA), o momento em que cada espécie aparece. Foto: American Museum of Natural History
Graças ao estudo dos fósseis, afirma a pesquisadora, também entendemos que a história da humanidade começou quando macacos começaram a caminhar eretos sobre os pés, (cerca de 6 milhões de anos atrás) “e não quando desenvolveu-se um cérebro de grandes dimensões, coisa que aconteceu mais de 3 milhões de anos mais tarde”. Além disso, “a anatomia dos braços e das mãos dos primeiros fósseis humanos demonstra que não nos tornamos bípedes na savana e, sim, na floresta, quando ainda trepávamos nas árvores”. E a descoberta recente do misterioso “homem de Flores” (Homo floresiensis), a espécie pigméia cujos fósseis foram encontrados numa ilha da Indonésia, abala, na opinião de Rickards, a crença enraizada “de que nossa história é caracterizada por um constante crescimento do volume do cérebro” e que, por isso, produziríamos utensílios sofisticados. O homem de Flores, de acordo com a paleoantropóloga romana, demonstra que uma espécie humana com um cérebro 3 vezes menor que o nosso, como o de um macaco, tinha todas as capacidades cognitivas necessárias para possuir uma tecnologia tão avançada quanto aquela produzida por nós, Homo sapiens, na mesma época (o “hobbit”, como foi chamado na mídia, extinguiu-se apenas 13 mil anos atrás).
No entanto, os fósseis geraram tanto perguntas e disputas (veja box ao final) quanto respostas sobre nossa origem. Algumas destas estão sendo resolvidas pela nova aliança entre paleoantropologia e biologia molecular. Graças às técnicas baseadas no DNA, hoje conhecemos muito melhor nosso parentesco com os demais macacos, sabemos quando nossos caminhos evolutivos se separaram, e temos dados cruciais sobre o surgimento da única espécie humana que sobreviveu: o Homo sapiens.
Relógios moleculares
“Uma das grandes contribuições da genética nessa área foi demonstrar qual é a espécie vivente de macacos mais próxima dos humanos. Era uma discussão aberta, difícil de resolver com a análise da morfologia”, explica Sandro Bonatto, professor da Faculdade de Biociências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Outra contribuição, continua o pesquisador, foi calcular o tempo de divergência entre as duas espécies, que com os dados fósseis era difícil estimar. Graças ao DNA, diz Bonatto, sabemos hoje que a linhagem de macacos que deu origem aos chimpanzés separou-se muito recentemente da linhagem que evoluiu nos homens: provavelmente, entre 5 e 7 milhões de anos atrás – os paleontólogos achavam que fosse ao redor de 30 milhões de anos.
O mistério foi resolvido graças à idéia de “relógio molecular”. Pesquisadores californianos, explica Olga Rickards, comparam a estrutura de proteínas do sangue de homens e chimpanzés. Como era conhecido o número de mutações casuais que acontecem, a cada mil anos, nos genes que determinam tais proteínas, não era difícil estimar pelo número de diferenças quanto são “distantes”, em termo de evolução, humanos e chimpanzés. Usando esse relógio molecular, explica a paleontóloga, nas últimas duas décadas foi possível descobrir que 14 milhões de anos atrás a linhagem que deu origem ao orangotango separou-se das outras, que a linhagem do gorila surgiu há 7 milhões de anos, e que o bonobo diferenciou-se de seu “irmão” chimpanzé há apenas 3 milhões de anos.
De fato, nosso DNA resultou ser extraordinariamente parecido com o dos outros macacos antropomorfos – entre 97% e 99% de nossos genes são comuns aos do chimpanzé, explica Rickards –, a ponto de em 2003 o cientista americano Morris Goodman sugerir a inserção do macaco africano no mesmo gênero do homem: o chimpanzé passaria a chamar-se Homo troglodytes (em vez de Pan troglodytes). “O que talvez seja uma boa idéia”, comenta Sandro Bonatto. Enfatizar nossa semelhança genética, “reforçaria em termos emocionais a empatia com esses nossos irmãos, e a necessidade urgente de proteção de espécies como o gorila, em perigo extremo de extinção”. Mas, além da comparação com outros primatas, a biologia molecular está fornecendo instrumentos extraordinários também para resolver um mistério sobre nossa origem.
De onde viemos: “Out of Africa” ou de muitos lugares?
Há um debate acirrado entre paleontólogos sobre a origem do homem moderno. Por um lado, a chamada teoria “multiregional”, ou da “continuidade regional”, afirma que primatas do gênero Homo saíram da África de 1,8 a 2 milhões de anos atrás. De lá, espalharam-se pela Ásia e Europa, diferenciados em diferentes espécies – Homo ergaster, Homo erectus, Homo heidelbergensis, Homo neanderthalensis – que, encontrando-se e misturando-se, gradualmente, e em diferentes lugares do mundo, deram origem ao Homo sapiens. No outro lado da barricada, a teoria chamada “Out of Africa” diz que o homem surgiu, sim, na África. Porém, duas vezes. Da primeira vez, dando origem a espécies que se extinguiram todas. Da segunda vez, apenas 150 ou 200 mil anos atrás, aparecendo já em sua forma moderna, de Homo sapiens. “A polêmica com os paleoantropólogos foi, e ainda é, acirrada”, diz Olga Rickards. Mas ela acha que, graças à análise do DNA, as dúvidas estão hoje praticamente resolvidas.
Um teste de paternidade
“Já em 1987”, explica Rickards, “três pesquisadores da Universidade de Berkeley, na Califórnia, analisaram DNA de populações atuais em diversas áreas geográficas e resolveram o problema”. Pegaram o chamado DNA mitocondrial, uma parte do genoma que não se encontra no núcleo, juntos com os outros cromossomos, mas nas mitocôndrias, os órgãos que servem para a respiração celular. O DNA das mitocôndrias é especial porque é transmitido de mãe para filha e porque tem uma taxa de mutação muito alta, o que faz dele um ótimo relógio molecular: quanto mais diferenças no DNA mitocondrial de duas pessoas, mais longe no tempo elas têm um antepassado comum. De acordo com Rickards, a análise demonstrou que “nossa espécie apareceu graças a um único evento evolutivo, muito recente e acontecido na África”. Também foi possível reconstruir a época em que viveu uma mulher que passou parte de seus genes para praticamente todos os seres humanos de hoje: uma antepassada comum, a chamada “Eva mitocondrial”, que nasceu na África há cerca de 140 mil anos. Dados mais recentes, estudando também um DNA todo “masculino”, contido no cromossomo Y, parecem confirmar a teoria do "Out of Africa".
Aqueles parentes ruivos que se extinguiram
A hipótese de que, mesmo não sendo nossos tataravôs, os neandertais possam ter contribuído para a origem do homem moderno, também está sendo excluída pela maioria dos cientistas. Em 1997, o biólogo sueco Svante Pääbo estudou o DNA mitocondrial de um neandertal e afirmou que somos duas espécies parentes mas completamente diferentes. “Uma pesquisa recente”, comenta Rickards, “permitiu estimar que, em 12 mil anos de convivência, aconteceram no máximo 120 cruzamentos entre sapiens e neandertal”. O grupo de Pääbo prometeu publicar o sequenciamento completo do genoma de neandertal até 2008, o que abrirá perspectivas excitantes: poderemos entender o que nos torna o que somos, nossa especificidade como Homo sapiens. Já temos dados sobre o gene FOXP2, ligado à capacidade de falar, que nos neandertais é parecido com o dos sapiens. “E temos discrições”, diz Rickards, sobre as características físicas de nossos primos: cabelo ruivo e pele clara, como afirmaram pesquisadores de Barcelona, Florença e Lípsia na revista Science”.
Bonatto concorda com Rickards. “Em minha opinião”, diz, “os dados genéticos e paleontológicos indicam que o Homo sapiens teve uma origem africana recente. São poucos os cientistas que ainda acreditam no modelo multiregional”. Junto com Nelson Fagundes e outros pesquisadores, numa colaboração internacional, Bonatto acaba de publicar um resultado importante na revista PNAS, que vai na direção de confirmar a teoria Out of Africa. “Nosso trabalho”, explica, “foi o primeiro capaz de testar diferentes hipóteses sobre o andamento da evolução, não somente sobre a história da evolução humana”. A metodologia usada pelo grupo – baseada em milhões de simulações em computador, cruzadas com dados genéticos – permite calcular qual, entre diferentes hipóteses sobre a evolução de alguma espécie, tem maiores chances de ser correta. “Analisando 50 loci ” (isto é, 50 trechos de cromossomos), diz Bonatto, “calculamos que a probabilidade de o Homo sapiens ter substituído as outras espécies é cerca de 78%. Muito maior que em qualquer cenário de tipo multiregional, em que o homem deriva de cruzamentos entre várias espécies antigas”. Os dados do grupo apontam também para uma data provável do surgimento de nossa espécie (140 mil anos atrás) e de sua saída da África (ao redor de 50 mil anos atrás).
Mas, mesmo que "Out of Africa" seja confirmada, um mistério resta. Como, e por que, se extinguiram os outros humanos? “Não sabemos”, diz Rickards, co-autora de um blog de divulgação sobre paleoantropologia (em italiano). Provavelmente, não foi como na história de Caim e Abel. “Não parece ter sido um fatricídio por parte de nós, sapiens. Não existem indícios arqueológicos disso. Talvez tínhamos capacidades cognitivas mais avançadas, ou talvez éramos numericamente superiores”, imagina a pesquisadora. Os neandertais podem ter diminuído aos poucos, devido a sua menor taxa de natalidade ou de sobrevivência. É uma coisa que o DNA não nos pode dizer. Ele serve como instrumento complementar para paleontologia e arqueologia, e apenas para a história mais recente da humanidade. “Por enquanto”, explica Bonatto, “não conseguimos obter DNA mais antigo do que 50 mil anos”. Um piscar de olhos, se comparado a nossa história de milhões de anos.
Mas, mesmo pequena, a janela de observação criada pela nova aliança entre biologia e paleontologia, confirmou algo importante, que Darwin já sabia. Não existe um abismo, entre nós, os homens extintos e os demais macacos. Como existem várias espécies de macacos, existiram diferentes humanidades, vivendo lado ao lado por milhares de anos. O antropólogo cultural Clifford Geertz dizia que só o homem ri, só ele sabe que um dia morrerá, só ele consegue imaginar religiões, criar arte, ter valores, consciência moral. No entanto, acrescentava, apesar de algumas tentativas de estabelecer um tamanho cerebral crítico a partir do qual nasceria “a capacidade de se comportar corretamente de modo humano”, as descobertas suavizaram, fragmento de fóssil após fragmento, a curva da ascendência do homem, “até o ponto em que as simples afirmações sobre o que é humano e o que o não é tomaram um lamentável ar de arbitrariedade. As mentes e almas humanas surgirão ou não de modo gradual; mas não há dúvida de que com os corpos assim acontece”.
Os “elos perdidos” não são todos elos, nem todos perdidos
Os macacos não se tornaram homens. O que aconteceu é que os primatas diferenciaram-se em inúmeras espécies. Muitas delas extinguiram-se. Outras deram origem ao gênero Homo. Houve muitos humanos, no passado, alguns dos quais viveram contemporaneamente, isto é, não descenderam uns dos outros. Até uns 30 mil anos atrás, existiam diversas espécies humanas, tais como o Homo neanderthalensis. Neste arbusto ramificado de primatas, não é fácil desvendar nossas origens. O que sabemos, cada vez com mais provas, é que os criacionistas estão errados e que Charles Darwin estava certo, já em 1871, ao formular a hipótese, genial e escandalosa, de que a humanidade tinha uma origem comum com os grandes macacos e que surgira, como estes, na África.
Cerca de 5 milhões de anos atrás, surgiram na África animais com características parecidas com os homens e bastante diferentes dos demais macacos de hoje. São os australopitecos. Diferenciaram-se em várias espécies. Uma delas, que emergiu entre 3 e 4 milhões de anos atrás, tinha características da dentadura e da bacia parecidas com as de um ser humano. Era o Australopithecus afarensis (a espécie da celebrada Lucy) que, de acordo com muitos estudiosos, foi nosso antepassado.
O que aconteceu no milhão de anos em que a espécie de Lucy viveu na África, ainda não é claro. Mas, provavelmente a partir de um descendente da Lucy, evoluiu, por volta de 2 milhões e meio de anos atrás, o Homo habilis. Para alguns paleoantropólogos, esta seria a primeira espécie “humana” no planeta, e pode ter sido também o primeiro a construir utensílios em pedra sofisticados – mas talvez, os australopitecos já soubessem utilizar pedaços de pedra como instrumentos.
Algumas centenas de milhares de anos mais tarde, outros homens apareciam na cena. Homo ergaster e, tempo depois, Homo erectus. Talvez, o ergaster evoluiu do habilis, e também deu lugar ao erectus. Talvez, segundo outros estudiosos, ambos eram ramos paralelos da evolução humana. Seja como for, aqui a história se torna complicada. E fascinante. Porque o Homo erectus não somente descobriu (de acordo com muitos) como usar o fogo, como também saiu do continente africano. Difundiu-se na Ásia e prosperou por mais de um milhão de anos. Multiplicando os mistérios: para alguns, os descendentes do Homo erectus deram origem à nossa espécie, Homo sapiens ; para outros nós surgimos na África pouquíssimo tempo atrás. E acabamos, aos poucos, substituindo todas as demais espécies de humanos.
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