Deslumbrado com as novas tecnologias que fervilhavam Guillaume Apollinaire anunciou o que lhe parecia óbvio: a morte do livro. O influente poeta concreto francês do início do século fez essa afirmação face às potencialidades que vislumbrava no gramofone e no cinema mudo. Apollinaire não foi o primeiro nem o último. Atualmente, entretanto, poucos duvidam da longevidade desse objeto e a discussão se volta sobre a transcendência física do livro para o mundo da simulação digital. Os gadgets estão cada vez mais sofisticados e a migração para a era digital deverá ocorrer em breves dez anos, favorecendo a convivência de várias opções para atender à diversidade do público. O futuro não é só digital, mas sim plural.
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Novas tecnologias multiplicam o papel do livro
Desde 1971, Michael Hart, um dos primeiros a pensar em disponibilizar textos via cópia eletrônica, trabalha no Projeto Guttenberg, no qual livros que já caíram em domínio público são transformados para o formato ASCII (codificação de caracteres) ou PDF (Portable Document Format, um formato de arquivo considerado quase universal) e disponibilizados no site do projeto. A aposta dele, no momento, é a ampliação da base de leitores de textos eletrônicos graças ao barateamento de tecnologias como palms e smart phones. “Pessoalmente, acho que as pessoas vão armazenar eBooks livros eletrônicos em telefones celulares, mais que os outros itens citados. Basta pensarmos que temos uma média de um bilhão de computadores no mundo e o triplo disso em números de celulares”, diz Hart. Considerando que ele é o inventor do conceito de eBook, sua aposta parece bastante certeira. Um relatório da consultoria norte-americana Ithaka intitulado “University publishing in the digital age” (Editoras universitárias na era digital) é bem enfático: o futuro das editoras universitárias é digital e a questão é como identificar oportunidades comerciais nesse novo ambiente.
De acordo com a Ithaka, algumas editoras já começaram as mudanças (que inclui um grande investimento em novas tecnologias) passando a distribuir periódicos científicos em formato digital e cobrando mensalidades pelos acessos às áreas restritas.
Lançado em novembro do ano passado o Kindle é a aposta da gigante Amazon (uma das maiores livrarias online) nesse não tão longínquo futuro digital. O aparelho promete acesso a livros comprados eletronicamente por um preço bem abaixo da cópia impressa, ao mesmo tempo em que inclui acesso gratuito a jornais, blogs e enciclopédias online.
Mas o passo do gigante pode virar um pequeno tropeço. Marcelo Nóbrega, coordenador de produto na área de entretenimento do site Globo.com, não vê uma grande revolução no aparelho da Amazon. “Não vai ser usado em massa por suas limitações. O iPhone, por exemplo, é mais interessante que o Kindle por ser um celular, um aparelho que todos carregam consigo”, afirma. A questão principal para Nóbrega, que também é editor do blog de tendências tecnológicas Futuro.vc, é se a transição do livro digital será tão fácil como o que acontece com a música e o vídeo. Para ele, a experiência do livro é parte integrante do consumo do texto. Mas assim como o cinema e o vídeo, que estão sendo substituídos pelos vídeos baixados via Torrent e TVs de maior tamanho e resolução, o consumo de textos tende a mudar.
Pedro Herz, presidente da Livraria Cultura, uma das maiores redes de livraria do país acha que essas tecnologias são fadadas ao fracasso. “Não aposto no Kindle ou similares. Esse tipo de mídia, aliás, não é novidade, pois já produziram outros aparelhos com o mesmo fim (como o Franklin eBookman e o Rocket eBook), que não obtiveram sucesso”, declara Herz, que fez uma pesquisa informal recentemente. “Perguntei a vários leitores conhecidos meus e todos se negam a trocar de mídia”, diz. Opinião que, definitivamente não é compartilhada por Michael Hart: “Quem prefere fazer as coisas antigas do jeito antigo são os mais velhos. Eles preferem os livros impressos. A geração que cresceu com Gameboys videogames portáteis nas mãos, simplesmente não liga!”.
Obras sob demanda
Mas o que o Kindle e seu similar, o Sony Reader, mostram é a necessidade da mudança para novas formas de integrar as mídias com o processo de distribuição dos livros. O relatório da Ithaka também indica que os alunos de universidades estão se transformando em consumidores eletrônicos e as editoras têm que acompanhar esse movimento. Mais que isso, é necessário pensar em ambientes de pesquisa e publicação eletronicamente integrados e na necessidade de uso criativo da multimídia nos novos produtos desenvolvidos pelas editoras universitárias nos próximos anos. “Imagino que entre cinco e dez anos essa tendência vai se consolidar”, acredita Carina Nascimento, coordenadora editorial da Editora da Universidade do Sagrado Coração (Edusc) de Bauru, SP, “mas não antes disso”, conclui.
A Edusc foi uma das primeiras editoras universitárias a implantar um parque de impressão on-demand no Brasil. Esse tipo de tecnologia permite que alguns livros sejam produzidos em baixíssima tiragem (entre 50 e 300 unidades) onde a redução dos custos se dá na armazenagem e logística. No horizonte imediato, a Edusc já prepara, para 2009, um livro que estará associado ao blog do autor, onde as atualizações do assunto tratado serão feitas online. Em projetos futuros estão os audiolivros e em uma perspectiva posterior, os eBooks. “Como editora universitária não seremos precursores da interatividade. Isso provavelmente vai vir dos grandes grupos editoriais que, no Brasil, ainda não se manifestaram”, aponta Nascimento. Esse cuidado tem a ver com os custos iniciais para uma plataforma totalmente digital de distribuição, consolidação de tecnologias e treinamento de pessoal especializado. “As revistas especializadas já apontam esse caminho” completa. Aliado à digitalização, aponta a coordenadora, está a questão ecológica, com a grande economia de papel gerada.
Coexistência pacífica
“Ouço essa história apocalíptica do fim do livro desde que comecei a trabalhar. Não acho que isso vá acontecer”, enfatiza Mírian Goldfeder, coordenadora de formação e cursos da Universidade do Livro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O mais provável, acredita, é a coexistência dos produtos, uma diversificação de alternativas visando públicos diferentes. “Existe um público que não vai abrir mão do livro impresso e outro que vai preferir ler livros em outros formatos”, defende.
Jésio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp, prevê que as mudanças nos hábitos de leitura não devem demorar, mas devem ser diferentes em cada país. “É importante observar que o hábito de leitura depende de dois fatores: o objeto lido e o leitor”, pontua. Durante visita à Feira de Livros de Frankfurt, em meados de outubro passado, Gutierre notou que as opções tecnológicas para o livro impresso aumentam a cada ano, mas não há uma que possa se destacar a curto prazo. “Um país com uma população mais velha e com um hábito de leitura mais arraigado pode preferir o livro impresso, já outro com uma população jovem e com acesso à tecnologia vai ter outra resposta”. Mas uma coisa é fato, enfatiza, as editoras universitárias têm que estar preparadas para novos desafios.
Para 2009, a Editora da Unesp já vai inaugurar um modelo misto. A coleção de publicações de docentes e pós-graduandos da instituição estará disponível na opção sob demanda ou para efetuar download. A palavra de ordem é redução dos custos de impressão, de modo a garantir a sobrevivência das editoras nesse modelo de mercado cada vez mais competitivo. “É possível ter livros encomendados em baixa quantidade com preços cada vez mais razoáveis”, finaliza o editor executivo da editora.
Bibliotecas virtuais
É possível dizer que a tendência de formatos eletrônicos vai se popularizar? Se depender de algumas iniciativas, tudo indica que sim. A Biblioteca Virtual do Estudante da Língua Portuguesa (BibVirt), projeto da Escola do Futuro da USP, registra picos diárias de até 20 mil acessos, de acordo com Isabel Pereira dos Santos, pesquisadora do projeto. A biblioteca conta com um vasto acervo de livros técnicos e de literatura brasileira (compartilhado com o site Domínio Público, projeto similar do governo federal), além da coleção “Telecurso 2000”, vídeos da TV Escola e audiolivros disponibilizados pela Fundação Dorina Nowill para portadores de deficiência visual. O projeto, idealizado pelo professor Frederic Litto, trabalha com a idéia de inclusão social, disponibilizando as obras para um público amplo. “Embora destinada ao aluno do ensino básico, tem pelo menos 20% dos seus usuários provindo do ensino superior”, conta Litto. O acesso aos audiolivros também é algo para se orgulhar, continua Isabel dos Santos, pois coloca alunos com deficiência visual em contato com um universo de obras da literatura em português e outras línguas. Outra iniciativa é o movimento Ebooks Brasil, mantida de forma colaborativa e que também é uma opção para quem procura obras eletrônicas na rede.
Dentro dos catálogos voltados para o público universitário, as editoras comerciais, há o exemplo da Biblioteca Virtual da Pearson Education no Brasil que usa alternativas digitais para combater a pirataria: é possível acessar um livro em um sistema de amostragem, no qual a obra fica disponível online através de uma janela no navegador, ou para aluguel, no qual o livro escolhido pode ser baixado em formato de arquivo, ficando disponível durante algumas horas (ou dias, no caso de usuários cadastrados) e os usuários podem fazer uso de notas ou imprimir 10% da obra acessada, como é permitido por lei.
“Por muito tempo ficamos presos a uma plataforma que não tinha grandes mudanças. Agora essa realidade tende a mudar, temos que achar o melhor caminho para atingir nosso público, seja via livraria, impressão on-demand ou mesmo outras opções digitais”, defende Jésio Gutierre. Essa parece ser uma oportunidade ímpar para as editoras universitárias ampliarem seu público, minimizando o problema crônico da distribuição dos livros e a dependência de lojas físicas, e ampliando a divulgação de obras que geram lucro, fundamentalmente, para o conhecimento científico.
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