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Reportagem
Arte e mitos: a busca de estruturas
Por Renata Rossi
10/05/2009

Buscar na música a relação com os mitos. Na pintura, suas representações. E na linguagem, repetições e elementos comuns e equivalentes. É por aí que passeia a relação – bastante forte – de Claude Lévi-Strauss com a arte. O antropólogo e etnólogo desenvolveu grande parte de seu trabalho no encontro com a riqueza proporcionada pela arte. “Depois dos mitos, a arte é outra grande preocupação de Lévi-Strauss e está presente em quase tudo que escreveu. Em Tristes trópicos, por exemplo, ele faz não apenas um registro das viagens dele, mas fala da questão estética também. Ele faz arte no que escreve, e escreve primorosamente”, avalia Sylvia Caiuby Novaes, do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia.

“Para ele, a arte talvez seja uma das formas de produção de significados mais interessantes, pois é nela e por meio dela que, nas diversas culturas, é possível analisar sistemas simbólicos visuais, sonoros e da linguagem que expressam exclusivas formas de pensar”, explica Dorothea Passetti, professora de antropologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora do livro Lévi-Strauss, antropologia e arte (Educ/Edusp). “Apropriando-se de flutuações e imprecisões nos sistemas simbólicos, a arte pode criar novas combinações e descobrir inusitadas relações formais, atingindo conteúdos inimagináveis. É uma das manifestações do pensamento em estado selvagem”, completa.

Lévi-Strauss percebe na arte um tesouro que revela estruturas, ao mesmo tempo em que as condensa ou sintetiza. É nessa percepção que entra um dos principais pontos de seu pensamento: o estruturalismo, nascido do contato com experiências diversas, como a linguística do russo Roman Jakobson, criador da teoria das funções da linguagem, a etnologia norte-americana e a convivência com os mais importantes artistas em Nova York durante a Segunda Guerra Mundial.

Para Passetti, os artistas podem ter sido os maiores responsáveis por esse pensamento de Lévi-Strauss. Destacando-se o pintor dadaísta Max Ernst e o poeta e teórico surrealista André Breton. “Essa mistura de influências o levou a dar mais atenção ao inconsciente. A linguística também busca estruturas inconscientes, um dos pontos principais da produção surreal. Além disso, a exploração dadaísta do acaso, da minúcia, das inter-relações de elementos possibilitou-lhe, como atento observador, dirigir a atenção à forma das relações: contrastes, oposições, correlações que compõem uma estrutura”, avalia a antropóloga da PUC-SP.

Desse modo, ao incorporar mecanismos da arte surrealista e dadaísta, como a colagem, e amalgamá-los com as influências que recebeu na infância e na adolescência, Lévi-Strauss passou a ser conhecido como o descobridor de estruturas (leia mais no artigo de Passetti "Colagem: arte e antropologia"). Segundo Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, no artigo “Arte e estruturalismo”, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia, estas são possibilidades de pensar que a arte procede a partir de um conjunto e vai até sua descoberta. O mito parte de uma estrutura a partir da qual empreende a construção de um conjunto. Desse modo, a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico. Por outro lado, o pensamento mítico operaria com signos, ou seja, unidades constitutivas cujas combinações possíveis são limitadas.

Olhar, escutar, ler

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Figura 01: Guercino, Pastores da Arcádia (Et in Arcadia ego),
atualmente na Galleria Nazionale d'Arte Antica em Roma
e Figura 02: Poussin, Et in Arcadia ego.

Em Olhar, escutar, ler Lévi-Strauss dedica-se a analisar obras de grandes mestres do século XVIII, como, por exemplo: o francês Nicolas Poussin (1594-1665) e o italiano Giovanni Francesco Guercino (1591-1666), ambos pintores expoentes do período barroco; Diderot (1713-1784), editor da Encyclopédie; e o compositor e teórico Rameau (1683-1764). Busca explicitar como funcionavam as obras e os artistas e explicar os modos como despertavam certos tipos de emoção no contato com as obras. Em entrevista à Folha de S. Paulo Lévi-Strauss fala de como, diante das telas de Poussin, “temos a impressão de estarmos na frente de um pequeno teatro”, impressão que se deve às escolhas do artista por criar um quadro composto.

Lévi-Strauss analisa a arte, os mitos e os sistemas de parentesco sob a mesma perspectiva teórica: a busca de estrutura recorrente; de modelos de transformação; de elementos equivalentes; possibilidades de substituições paradigmáticas; e pares de oposição. Aspectos que ele identifica em diversas obras a que se dirige, explicita a antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, em artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais.

“Nas artes, assim como nos mitos, o espírito parece poder abandonar-se livremente à sua espontaneidade criadora. Por isto mesmo o mito é, para Lévi-Strauss, porta de acesso privilegiada às leis de funcionamento do inconsciente, sem nenhum tipo de constrangimento: nem mesmo a realidade exterior. Por isto, também, é possível passar da análise de um mito dos índios Bororo, do Cerrado mato-grossense, a um mito dos índios da Colúmbia Britânica, ou da Nova Guiné”, analisa Caiuby Novaes. Para Lévi-Strauss, trata-se de descobrir as estruturas mais profundas e comuns existentes tanto nas pinturas, composições musicais, como nos mitos. Uma busca incessante por aquilo que caracterizaria os humanos, como humanos, numa não oposição entre natureza e cultura.

Música e mito

“A música não tem palavras. Entre as notas, que poderíamos chamar de sonemas, e a frase, não há nada. A música exclui o dicionário”, diz Lévi-Strauss em Olhar, escutar, ler. “Para ele, na música não há algo parecido com o que seria a palavra no universo da língua falada e escrita”, afirma Rafael José de Menezes Bastos, antropólogo, músico do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe. Antes, ele veria na música uma manifestação do espírito humano. “É um pensamento muito elegante, pois traça um paralelo entre a música ocidental clássica e o mito ameríndio. Ele consegue fazer uma ponte entre Mozart e um contador de mitos na selva. É uma questão inconsciente. Esses dois tipos de linguagem têm alguma semelhança, mas não dialogam, não se conhecem ou se reconhecem”, explica Bastos.

Tanto o mito quanto a música ocidental teriam em comum a capacidade de transcender a oposição entre o sensível e o inteligível e a qualidade de trabalhar com a verticalidade e a horizontalidade. Uma partitura, por exemplo, pressupõe leitura vertical, que seria simultânea para todos os instrumentos. Entretanto, é possível ouvir só a flauta, o que torna a leitura horizontal. “Lévi-Strauss diz que, na realidade, os compositores ocidentais são mitógrafos, embora isso seja inconsciente”, ressalta o antropólogo da UFSC.

Já Acílio Rocha diz que não existe um paralelismo entre música e mito, pois a música é capaz de se libertar totalmente da linguagem: os sons propriamente musicais não seriam os utilizados pela língua, enquanto o sentido mítico exigiria sempre a mediação de uma língua particular para se expressar. Enquanto as estruturas linguísticas estão duplamente encarnadas no som e no sentido (por oposição com as estruturas puramente formais das matemáticas, libertas simultaneamente do som e do sentido), as estruturas musicais diriam respeito ao som menos o sentido e as estruturas míticas ao sentido menos o som, de modo que mito e música oferecem de algum modo as imagens devolvidas uma da outra.