Tecnologia e
contemporaneidade são nomes cujo modo de significação tem várias
características comuns, entre elas a da coexistência conceitual e prática num
mundo que sem elas não existiria para nossa compreensão e cuja existência só se
compreende por sua relação.
Contemporaneidade
e tecnologia constituíam o tema dorsal da revista Luz que, infelizmente, no terceiro número se apagou.
Retomo aqui
parte do que escrevi na “Apresentação” de cada número, assinalando que, entre
os paradoxos que são marca da contemporaneidade, um deles dá bem a medida do
intrincamento do mundo atual com a tecnologia.
Diz ele respeito
à complexidade crescente das tecnologias e à simplicidade de seu acesso e
funcionamento para o usuário, de tal modo que a sua formulação poderia ser:
quanto mais complexo, mais simples, ou, vice-versa, quanto mais simples, mais
complexo.
Se lembrarmos
que o uso dos computadores, no início, era tarefa para iniciados e que a
criação do computador pessoal abriu o caminho para a relação fácil e amigável
do leigo com as TICs, nos damos conta da pertinência do paradoxo e do alcance
de sua capacidade de explicação das nossas relações com as máquinas no mundo
contemporâneo.
A sintaxe das
máquinas mecânicas, embora complexa, reproduzia formas de organização e
funcionamento cuja lógica, de certa forma, reproduzia a lógica da linguagem
comum, ou ao menos das línguas naturais.
A sintaxe
instituída pela eletrônica tem a estrutura lógica de linguagens abstratas,
distantes da vivência que habita o potencial das línguas naturais mesmo que em
níveis de alta sofisticação intelectual. Já não basta abrir o motor para
entender o seu funcionamento. Contudo, é mais fácil fazê-lo funcionar para os
fins a que se destina.
Essa distância
sintática, e agora semântica, entre homem e máquina é também o que os aproxima,
de um lado pela comodidade das facilidades que oferece, de outro, por uma
espécie de novo fetiche, segundo o qual o incompreensível se torna acessível e
manipulável para o bem-estar de quem se apropria da máquina e é apropriado pela
tecnologia de sua inteligência.
Do ponto de
vista da contemporaneidade, o enigma que nos acompanha é o de saber se somos ou
não capazes de acertar nas perguntas. Em meio a tantas informações com tantos
dados disponíveis, vivemos num mundo de respostas prontas, como que
prisioneiros da liberdade de sermos escolhidos por soluções de problemas,
também eles prontos, para cuja formulação temos a vaga e, às vezes, incômoda
sensação de não termos em nada contribuído.
Como e quais
questões formular para tentarmos tecer o fio de Ariadne, filtro de luz, que nos
guie nas dúvidas corretas e nas incertezas pertinentes que possam ir
conformando os enigmas a que responder com perguntas? As perguntas certas, ou
ao menos certas perguntas, que possam conduzir o foco de nossa procura para os
pontos de destaque dos discursos produzidos para explicar a sintaxe das
indagações do homem contemporâneo e suas articulações semânticas com o mundo
sendo refundado.
Uma das questões
que caracterizou a contemporaneidade dos modernistas e que aparece em
Baudelaire, citado por Peter Gay na obra O
modernismo (2009), é a necessidade de ser contemporâneo. A sensação que
guiava os homens era: É preciso ser contemporâneo!. Em um mundo transformado
pela Revolução Industrial e pela urbanização, o artista passa a sentir
necessidade de atualizar-se e atualizar também sua arte, trazendo para esse
universo elementos que, até então, não estavam inseridos na produção artística,
por exemplo: estruturas de metal, velocidade, a indústria, o texto jornalístico
etc. A arte e a literatura modernistas, portanto, tentam refletir o que é atual
e contemporâneo, mudando com isso a concepção do que é belo.
Diferentemente
dos modernos, a sociedade de hoje não tem necessidade de ser contemporânea. Ela
tem desejo de ser contemporânea. Trata-se de uma mudança importante. Motivados
que somos pelas novas tecnologias e por uma nova percepção do tempo, temos
desejo de ser contemporâneos, e não uma necessidade, como no passado. Um dos
traços fundamentais da contemporaneidade é justamente este: uma nova percepção
do tempo. Um tempo fracionado pelo advento de uma era digital que representa e
simboliza um tempo descontínuo, que resulta em uma percepção de que agora ele
passa aos saltos diante de nós, despedaçado, como nos relógios digitais e nos
tantos outros aparatos resultantes das novas tecnologias da informação. E o
fracionamento do tempo resultará também no fracionamento do ser. O autor
francês Paul Virillo nos diz que na pós-modernidade só há restos, nada mais é
inteiro, panorâmico. O tempo da cronologia é substituído por um tempo que se
expõe instantaneamente, um instantâneo que substituiu as longas durações estendidas
em séculos pela intensidade dos séculos comprimidos no instante.
Na ausência da
duração contínua, o sinal da passagem do tempo não é dado somente pela ruína,
pelo envelhecimento, mas pode ser visto também na juventude e em outros
símbolos. No lugar das horas, dos minutos do relógio analógico surgem as
imagens gravadas que se tornam subitamente relógios do tempo, do resto do
tempo. Essa mudança está intimamente ligada ao desenvolvimento das tecnologias
de áudio e vídeo, a multiplicação dos canais de televisão, em detrimento das
tecnologias dos automóveis, dos meios de transporte, e do deslocamento. É o
movimento na imobilidade.
A velocidade das
transformações do mundo e as novas tecnologias tornam o desejo de ser
contemporâneo imperioso, inadiável. E é esse desejo que está ligado ao consumo,
à permanente atração que se criou nos consumidores pela constante atualização
de seus objetos, que tudo tem a ver com a aceleração, as angústias, as marcas
materiais que diferenciam os indivíduos. Os atos de consumo e a intensificação
do consumismo são, portanto, fundamentais para se entender nossa sociedade e
seu desejo de consumo que é, antes, a expressão do desejo de contemporaneidade,
de acompanhar o acontecimento, a velocidade, a transformação. O consumo dos
produtos da tecnologia é constantemente alimentado pela busca de novidades, por
parte dos mesmos consumidores: é o mesmo consumindo o diferente, o novo. Isso é
diferente do que se observava na sociedade de massa, em que cada vez mais
pessoas passavam a consumir o mesmo produto inovador que atingira os consumidores
pioneiros, isto é, um indivíduo diferente consumindo o mesmo. Essa é uma
diferença fundamental entre a sociedade industrial e a sociedade
pós-industrial, movida pela permanente criação de produtos tecnologicamente
mais avançados, com novas funcionalidades, que rapidamente são descartados para
serem repostos pelo último lançamento.
Com a ajuda da
mídia, esse poderoso apelo para o consumo da novidade continua alargando o
número de consumidores, mas agora com base em um princípio de organização que
não privilegia mais a quantidade de consumidores, mas sim a capacidade de o
mesmo consumidor consumir mais. Assim, há os consumidores da tecnologia e há os
consumidores da sobra da tecnologia. O foco muda: a produção não é mais
realizada para ganhar amplitude de mercado, mas sim, para rapidamente
reconquistar o mercado dos consumidores ávidos pela novidade. É sobre o desejo
que se trabalha toda a motivação social, publicidade, marketing etc.
Ser
contemporâneo está ligado ao desejo da contemporaneidade e esse desejo está
ligado à velocidade da inovação tecnológica desenvolvida também de forma
acelerada, para manter a sociedade consumindo.
Outro aspecto
que marca a contemporaneidade decorre da mudança de paradigma de uma sociedade
industrial para uma sociedade baseada no conhecimento — bem intangível e, ao
mesmo tempo, agora, objeto de troca.
Com essa
transformação, o meio físico perde especificidade, o produto se desmaterializa,
se “comoditiza”; tudo é convertido para o formato digital. A indistinção é característica
marcante do contemporâneo, acompanhada pela diluição das fronteiras. O mundo
pós-moderno abre mão de um centro irradiador: assim como na internet, o tráfego
acontece por várias rotas. Ninguém é proprietário e, ao mesmo tempo, todos são
autores e donos de sua produção. Poucos, contudo, seguem sendo os que possuem
as regras de controle da economia e do grande capital financeiro, permanecendo
no mundo real uma concentração de poder que não espelha diretamente a sua
distribuição virtual. Quer dizer, a imagem do mundo é mais democrática do que o
mundo que se oferece à sua imaginação.
As tecnologias
de comunicação possibilitam a exposição da privacidade de uma forma sem
precedentes. O valor da privacidade é proporcional à capacidade de exposição da
intimidade. Perde-se o pudor da exibição e, nessa exposição consentida, o que
se mostra não é propriamente o indivíduo, mas uma imagem dele. As novas mídias
permitem a vivência da realidade pelos seus simulacros; as imagens deixam de
representar os fatos, elas são fatos em si. A distância entre a imagem e o que ela
representa desaparece. Não há tempo suficiente para separar as duas coisas.
Novamente, a indistinção entre sonho e realidade, entre realidade e
representação, entre representação e espetáculo, entre espetáculo e
recolhimento. O mundo recolhido em imagens expande-se, multiplica-se,
fragmenta-se, em apresentações que são espetáculos passageiros, breves,
corriqueiros, do indivíduo posto em notícia, em pose para a dispersão do
instante.
Estamos longe,
embora perto cronologicamente, das angústias existenciais e filosóficas que a
técnica provocou no século XX, sobretudo em sua primeira metade. A tecnologia,
superado o mundo da técnica industrial, põe-nos dentro do presente como numa
cápsula de eternidade periódica que navega entre o passado e o futuro, agora
como portos da sinapse eletrônica dessa navegação.
Não há
angústias, há dúvidas; não há crise existencial, há a existência crítica de uma
desconfiança de que a viagem encapsulada no presente possa transformá-lo de
simulacro da mobilidade em imobilidade da simulação e, assim, ficarmos
prisioneiros da liberdade de, como clones iludidos dos poderes de deuses,
estarmos em toda parte sem estar em lugar nenhum.
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