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Artigo
Determinismo reducionista biológico e a explicação do comportamento
Por Marcus Bentes de Carvalho Neto e Aline Beckmann Menezes
10/07/2007

A ciência é mais do que um conjunto de métodos e técnicas. Trata-se, antes de tudo, de um modo de ver o mundo, um conjunto de atitudes que guiam o que vemos e como produzimos e validamos nosso conhecimento. Há pelo menos dois pressupostos básicos em qualquer ciência: (1) Os fenômenos não são aleatórios, imprevisíveis, ou seja, qualquer fenômeno possui algum nível de regularidade que pode ser apreendida na forma de leis e princípios; (2) Tal conhecimento pode ser construído pelo próprio homem através de meios racionais e empíricos. Logo, o ponto de partida de uma ciência seria identificar as variáveis responsáveis pela ocorrência e pelas características de seu fenômeno de interesse. Buscamos os determinantes de nosso objeto de estudo, seja ele qual for. Portanto, o traço “determinista” (em algum nível) seria inerente à tarefa do cientista.

Reconhecer a existência de regularidades e buscar sua explicação não significa acreditar em um único grande causador. Historicamente a ciência foi dividida em disciplinas específicas que recortaram a realidade em vários níveis ou dimensões, compartimentalizando o mundo em aspectos “físicos”, “químicos”, “fisiológicos”, “comportamentais”, “sociais”, etc. De um lado, tal divisão possibilitou enormes avanços em cada área, de outro, produziu um conhecimento multifacetado e desconexo que ainda precisaria ser reunido em modelos explicativos mais amplos e integrados. Os fenômenos não guardam uma única dimensão ou nível de causalidade. São intrinsecamente complexos e permeiam várias disciplinas. Explicar as origens e as conseqüências de um incêndio na Amazônia, por exemplo, exigiria a junção de saberes de diversas ciências, como a física, química, climatologia, biologia, economia, sociologia, entre outras. A divisão em disciplinas é arbitrária e os casos reais nos obrigam a reconhecer os limites de cada uma.

O comportamento é objeto de investigação de diversas disciplinas e abordagens dentro dessas. Seus determinantes vão desde a constituição biológica de um organismo até o ambiente complexo constituído por outros da própria espécie (e seus produtos), que chamamos tradicionalmente de cultura. A opção inicial pela análise (decomposição do todo em partes menores) seria, antes de tudo, uma estratégia de investigação para viabilizar o empreendimento humano com o máximo de aprofundamento e não deveria ser confundida com a crença na existência de uma única fonte ou nível primordial de explicação (“reducionismo”). Infelizmente, a história das ciências do comportamento é farta de casos nos quais um fator ou nível de causalidade foi erguido em detrimento dos demais.

Um desses recorrentes níveis defendidos ou divulgados como principal seria o biológico. Teríamos nesse caso o “determinismo reducionista biológico” que defenderia as variáveis genéticas, anatômicas, fisiológicas e bioquímicas como as principais causas de uma ação, ignorando ou minimizando o papel de outros níveis, como o cultural, por exemplo. Esse tipo de explicação molecular ganhou força novamente em nossos dias através de alguns exageros provenientes de duas grandes linhas de investigação: as Neurociências e o Projeto Genoma. No primeiro, o cérebro adquiriu, em alguns casos, traços quase antropomórficos e o status de causador máximo do comportamento. Uma entidade orgânica, mas ao mesmo tempo separada do restante do corpo, que definiria o que somos e o que fazemos. No segundo, os genes são descritos como agentes quase autônomos e igualmente onipresentes e oniscientes no que se refere à causalidade comportamental.

Note-se que o problema não está no reconhecimento, legítimo, de que uma parte do cérebro ou um conjunto de genes afetaria o comportamento, mas sim na apresentação dessa parte como “a” causa, ao invés de enquadrá-la como mais um componente em um sistema maior e mais complexo no qual também estariam envolvidas variáveis de outras ordens. O termo reducionismo determinista biológico refere-se a um tipo de explicação que estabelece uma relação pontual, linear e direta entre um evento orgânico (cérebro ou gene) e um tipo de comportamento específico. Somente nesse contexto restrito seria possível sugerir a existência de um gene ou uma parte (ou atividade) específica do cérebro para praticamente cada comportamento de interesse, dando origem assim a expressões como “gene da infidelidade”, “gene da agressividade”, a “área cerebral do amor”, entre outras.

Todo comportamento é afetado por variáveis fisiológicas, isso não está em discussão e ocorreria pelo simples fato de que aquele que se comporta seria um organismo biologicamente constituído. Logo, qualquer variável ambiental seria filtrada por um corpo e estaria, assim, dele dependente. Mais que isso, que eventos ambientais “existiriam” sensorialmente para nós, sendo capazes de nos afetar, dependeria do nosso aparato orgânico. Não respondemos naturalmente aos espectros luminosos de raios ultravioleta como as abelhas porque nossas histórias filogenéticas produziram corpos muito diferentes nesse aspecto. O que não quer dizer que a variável orgânica esteja sozinha ou que produza seu efeito de modo simples e direto. Há, portanto, dois erros básicos nesse modo explicativo: usar um único fator causal como responsável por um fenômeno e supersimplificar como esse fator agiria.

Um exemplo dessa concepção é o estudo dos determinantes da homossexualidade humana. A determinação desse padrão comportamental específico tem sido estudada ao longo dos anos predominantemente a partir de uma perspectiva biológica. Alguns dos trabalhos mais influentes da área baseiam-se em medidas hormonais e medidas anatômicas cerebrais, sempre comparando sexos e orientações sexuais distintas. Contudo, um dos trabalhos de maior influência na mídia1, incorporado em muitos discursos de cunho político, refere-se à identificação de um “gene gay” (que seria identificado a partir do marcador genético Xq28). Apesar desse estudo ser inicial e possuir uma série de problemas metodológicos, os dados obtidos adquiriram uma força muito maior quando transmitidos pela mídia, inclusive nacionalmente. Por exemplo, em 2005 foi realizado um estudo2 que não possuía o objetivo de identificar determinantes da orientação sexual, mas de discutir a existência ou não de feromônios na espécie humana. Os autores obtiveram maior similaridade nas respostas de heterossexuais femininos e homossexuais masculinos, bem como entre heterossexuais masculinos e homossexuais femininos, mas, ao apresentarem seus dados ressaltam que os mesmos não são indicativos de determinantes genéticos, mas sim de que a orientação sexual estaria relacionada ao funcionamento de estruturas cerebrais o que os autores afirmam poder ser conseqüência da prática sexual. Contudo, quando publicada na revista Veja, de circulação nacional, o jornalista responsável pela matéria3 apresenta a pesquisa como mais uma evidência da origem biológica da homossexualidade.

Como esse, inúmeros outros casos de determinismo reducionista biológico ocorrem não apenas nos laboratórios dos cientistas e nos seus relatos de pesquisa, mas também nas redações dos veículos de divulgação científica, quando uma informação técnica recebe um tratamento supersimplificado e sensacionalista, sem o qual perderia em apelo comercial. Simplificar a informação para torná-la acessível a uma parte maior da população passou a significar nesses casos a escolha de uma única variável causal, normalmente de base orgânica, apresentada de modo mecanicista: um evento X produzindo um evento Y.

O problema do determinismo reducionista biológico não estaria apenas em apresentar de modo irreal um fenômeno e suas causas, mas também nas implicações práticas decorrentes de como entendemos o que somos e porque fazemos o que fazemos. A causa orgânica supersimplificada, especialmente a genética, é recorrentemente descrita como “imutável” e “natural”. Sendo, por exemplo, as diferenças de inteligência atribuídas na maior parte a uma base genética qualquer, somos convidados a pensá-las como características inerentes a quem as possui (no máximo o ambiente ativaria as capacidades pré-existentes). Aos que não foram agraciados com tal sorte, restaria se conformarem com o seu “papel natural” neste mundo, já que haveria supostamente um limite orgânico intransponível e inalterável por investimentos educacionais e/ou esforços individuais. Tais diferenças estariam, desse ponto de vista, desprovidas de influências sociais, históricas e econômicas arbitrárias, pois seriam definidas no nascimento pela própria natureza “imparcial”. Assim, adotar o modo causal determinista reducionista biológico conduz a um modo particular de interpretar os problemas humanos e de vislumbrar as suas soluções. Alimenta e justifica certas políticas públicas em áreas críticas, como a educação, segurança pública, etc. Os seus prejuízos vão muito além da mera informação imprecisa e por isso há uma responsabilidade política embutida no modo como cientistas e jornalistas divulgam os resultados de uma pesquisa.


Marcus Bentes de Carvalho Neto é professor do Departamento de Psicologia Experimental da Universidade Federal do Pará e Aline Beckmann Menezes é psicóloga e coordenadora do Serviço de Apoio ao Estudante do Centro Universitário do Pará e doutoranda em teoria e pesquisa do comportamento na Universidade Federal do Pará.


Referências

1. Hamer, D. & Copeland, P. (1994). The science of desire – The search for the gay gene and the biology of behavior. New York: Touchstone.
2. Savic, I., Berglund, H. & Lindström, P. (2005). Brain response to putative pheromone in homosexual man. Proceedings of National Academy of Sciences, 102 (20), 7356-7361.
3. Zakabi, R. (2005). A atração está no cheiro. Veja, 1905. São Paulo: Editora Abril.


Bibliografia indicada

Carvalho Neto, M. B. & Tourinho, E. Z. (1999). Skinner e o lugar das variáveis biológicas em uma explicação comportamental. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 15 (1), 45-53.
Carvalho Neto, M. B.; Salina, A.; Montanher, A. R. P.& Cavalcanti, L. A. (2003). O projeto genoma humano e os perigos do determinismo reducionista biológico na explicação comportamental: uma análise behaviorista radical. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 5 (1), 41-56.
Gould, S. J. (1981). O polegar do panda. Lisboa: Gradiva.
Gould, S. J. (1992). Darwin e os grandes enigmas da vida. 2a Edição. São Paulo: Martins Fontes.
Gould, S. J. (1999). A falsa medida do homem. 2a Edição. São Paulo: Martins Fontes.
Jones, S. (1999). Deus, genes e destino: na massa do sangue. Lisboa: Publicações Europa-América.
Lewontin, R. C. (1998). Biologia como ideologia: a doutrina do ADN. Lisboa: Relógio D’Água.
Lewontin, R. C. (2002). A tripla hélice: gene, organismo e ambiente. São Paulo: Companhia das Letras.
Menezes, A. B. C. (2005). “Análise da investigação dos determinantes do comportamento homossexual humano”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento. Universidade Federal do Pará, Belém, Pará. Disponível através do endereço: http://www3.ufpa.br/ppgtpc/index.php?page=exibe_pagina&id=20
Tognolli, C. (2003). A falácia genética: a ideologia do DNA na imprensa. São Paulo: Escrituras.