“Não há nenhuma diferença fundamental entre o homem e os animais mais superiores do reino no que diz respeito a suas faculdades mentais”, afirmou o naturalista inglês Charles Darwin (1809 – 1882) em sua obra Origem do homem e a seleção sexual (1871). Responsável pela teoria da evolução que balançou os alicerces humanos revelando sua descendência animal, Darwin também enfatizou que “há uma imensa diferença entre a mente do homem mais primitivo e das espécies animais mais superiores”. Separadas por cerca de 70 páginas na mesma obra, as citações não são contraditórias, como sugerem, mas sim verdadeiras, acredita Bennett Galef, professor emérito do Departamento de Psicologia da Universidade de McMaster no Canadá. “Partindo de uma espécie ancestral comum, houve séries graduais de uma infinidade de pequenas modificações cerebrais que levaram ao desenvolvimento das mentes dos humanos de um lado, e dos demais primatas de outro; o resultado disso foi uma vasta diferença quanto ao desempenho das mentes de cada uma das espécies descendentes”.
A verdade é que apesar da centenária teoria da evolução ter dado aos humanos a mesma origem daquela dos animais, há sempre tentativas de estabelecer limites que, por vezes, separam e outras aproximam uns dos outros. Uma das linhas tênues que mais recentemente garantia a exclusividade humana era a cultura, conceito que ainda divide biólogos, etólogos e antropólogos.
De acordo com Galef, o significado implícito em cultura remete a comportamentos e conhecimentos cumulativos, socialmente transmitidos e que se baseiam no aprendizado e imitação. Para ele, o mais apropriado seria dizer que os animais, excluindo o homem, possuem algo análogo, mas não homólogo à cultura e que, portanto, deveria ser chamado de tradição. Porém, “chamar de cultura ou tradição o que os animais passam socialmente para seu grupo é uma questão semântica e de pouco interesse” (para seus estudos), conclui. Na opinião de Eliane Rapchan, doutora em ciências sociais e professora da Universidade Estadual de Maringá, o conceito de “cultura” adotado pelos pesquisadores dedicados ao estudo do comportamento animal “são padrões comportamentais estáveis, transmitidos no interior do grupo, que não surgiram por influência humana e não são determinados por fatores ambientais ou genéticos”. Como exemplos de cultura animal já estudados, César Ades, docente do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), cita os comportamentos de aves, que apresentam uma espécie de dialeto de acordo com o local onde nascem, e a vocalização de baleias orcas (Orcinus orca), as quais apresentam mudanças na comunicação ao longo do tempo (leia artigo Cultura animal – nesta edição).
O etólogo Eduardo Ottoni, pesquisador do IP-USP, também reconhece especificidades importantes das culturas humanas. Segundo ele, as definições clássicas dos antropólogos definem cultura como um fazer tipicamente humano. Entretanto, ele confessa que na falta de algo que designe melhor o comportamento transmitido socialmente pelos animais e que exclua a via genética, a palavra cultura é a que melhor se encaixa. Na sua visão, o que diferencia a cultura humana dos não-humanos decorre da particularidade de nossa cognição: “somos capazes de simular os estados mentais de outros indivíduos (o que eles desejam, o que eles sabem, ou não) e, a partir dessas simulações, podemos prever melhor o comportamento de nossos semelhantes, o que se denomina “Teoria da mente” (algo que parece ser incipiente em outras espécies)”. Para Ottoni, investigador da etologia de macacos-prego, prever e manipular o conhecimento, as motivações e o comportamento alheios são trunfos muito valiosos na vida social. Para ele, essa vantagem, exclusivamente humana, serviria, por exemplo, para que um aprendiz saiba que seu mestre sabe o que ele não sabe (e que o mestre perceba o que o aprendiz não sabe) – e que ambos possam saber que estão prestando atenção na mesma coisa (“atenção conjunta"). “Isso permite que nossa transmissão cultural seja muito mais eficiente: um jovem chimpanzé pode aprender a quebrar cocos observando o uso de ferramentas por um adulto (perpetuando uma tradição comportamental), mas provavelmente só os humanos podem ensinar deliberadamente”, ressalta o etólogo.
Além disso, “a capacidade humana para produzir símbolos (sepultar os mortos ritualmente, produzir arte, usar adornos corporais e adornar os objetos cotidianos e rituais) é um produto evolutivo que está diretamente associado ao surgimento do Homo sapiens, há aproximadamente 30 a 50 mil anos – nenhum animal faz coisa semelhante”, conta Eliane. Ela ainda argumenta que provavelmente esse fenômeno não é fruto de processo evolutivo gradual, pois essa capacidade surgiu de uma vez e invadiu toda a existência humana. “Por isso não encontramos indícios de nada parecido em nossos parentes mais próximos”, adiciona.
Créditos: Eduardo Ottoni e Patrícia Izar, Instituto de Psicologia da USP. Legenda: Macacos-prego abrindo frutos com pedras e interação com outros macacos do mesmo grupo.
Contudo, no artigo científico “Culture evolves” (A cultura evolui), publicado pelo grupo de Andrew Whiten (Philosophical Transactions of the Royal Society B, vol. 366, pp.938–948, 2011), professor do Centro de Aprendizado Social e Evolução Cognitiva da Universidade de Saint Andrews no Reino Unido, aponta-se que descobertas arqueológicas recentes têm remetido a origem cultural da espécie humana há tempos muito mais remotos do que tradicionalmente se pensava, o que sugere uma continuidade de comportamentos entre as culturas humanas e animais, até então não identificável. Concordante a esse traço sequencial entre as espécies, Ades comenta que “existe uma continuidade entre os animais, tanto nos aspectos da estrutura e da fisiologia, como dos psicológicos; as pesquisas mais recentes mostram semelhanças marcantes em complexos processos cognitivos e afetivos entre humanos e não-humanos”.
A explicação para esse contínuo (não-humano em direção ao humano) talvez recaia sobre algo que parece também inerente somente à espécie humana: a inovação. Uma referência concreta desse fenômeno comportamental pôde ser observada em macacos-prego, objeto de estudo de Ottoni. Chamou a atenção dos cientistas o fato de que grupos dessa espécie, habitantes do Parque Ecológico do Tietê em São Paulo, começaram a usar espontaneamente pedras para abrirem frutos com casca; comportamento já identificado em chimpanzés, mas não em macacos-prego (para detalhes consultar "Capuchin monkey tool use: overview and implications;" Evolutionary Anthropology, Vol.17, 2008). Além desse, outro exemplo citado descreve a atitude de outro grupo dessa espécie em que as fêmeas jogam pedras nos machos para indicar-lhes que estavam sexualmente receptivas. “Só o fato de perceber que uma população faz coisas que outra população (de animais da mesma espécie) não faz, significa que em algum momento houve uma atitude inovativa por algum membro do grupo”, relata Ottoni. Ele explica também que o que nos faz diferentes são as taxas de surgimento de inovação, bem maior na espécie humana.
Embora tenhamos adquirido conhecimento sobre o que de humano existe nas outras espécies e o que delas o homem herdou, certas ideias ainda destoam desse viés quando nos colocamos como seres supremos, no ápice da cadeia evolutiva. Aliás, o conceito de evolução adotado pelo senso comum é equivocada, ressalta Ottoni, pois cada espécie é fruto de um processo evolutivo particular. Ele esclarece que “evoluir não é ficar mais complexo ou com aparência mais agradável, e sim estar submetido ao tempo de ação da seleção natural; não se pode dizer que o homem é mais evoluído que o chimpanzé ou uma minhoca, porque são espécies diferentes, com histórias evolutivas diferentes”. Dessa maneira, não há como comparar se determinada espécie é mais evoluída que outra. É bom reforçar que ”também somos animais e como tal continuamos submetidos aos processos evolutivos”, completa Eliane Rapchan.
Porém, quando se trata de comparar a complexidade humana quanto aos níveis de processamento de informação, “é muito comum ouvirmos afirmações quanto à superioridade da espécie humana”, declara Fívia Lopes, doutora em psicobiologia e professora do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seria então a sensação humana da potencialidade de dominação para com as espécies animais não-humanas que faria sentirmo-nos detentores do rumo da história de vida deles?
Eduardo Ottoni acredita que o “segredo” para enxergarmos verdadeiramente os animais como co-habitantes do nosso planeta e mantermos um convívio de respeito seria “cultivarmos o entendimento das diferenças”. Mas, como primeiro passo, é necessário desfazer um erro antes que se caia no lugar comum de considerar o homem um ser supremo, destoante de todos os outros animais. “Categorizar os animais como sendo humanos ou não-humanos sintetiza um vício básico de pensamento, como se aqueles fossem especialmente semelhantes entre si e distintos dos homens, ou seja, como se fizesse sentido categorizar pulgas, ratos e chimpanzés de um lado, e humanos do outro”, enfatiza o etólogo. Além do mais, ele adverte que buscar a compreensão do modo de vida peculiar de cada espécie é como tentar compreender as diferentes culturas e etnias humanas: “nenhuma delas é pior ou melhor, mais primitiva ou mais adiantada que outra”. Ottoni ainda lembra que respeitar as espécies animais não deve restringir-se apenas aos primatas (pela semelhança física com o homem) ou aos animais de estimação (dotados de extrema empatia) e ignorar as outras espécies. E vai além, quando diz que a humanização das demais espécies não é o caminho para essa atitude de respeito. Exemplo disso pode ser encontrado no santuário de chimpanzés em Sorocaba, no interior de São Paulo, onde esses animais recebem tratamento humanizador, numa tentativa de antropomorfizar os animais. “Chimpanzé é chimpanzé e não gente; ele tem seu espaço próprio na natureza”, finaliza refletindo que é preciso considerar cada animal em seu próprio espaço e modo de vida. Por outro lado, deve-se entender que, mesmo diferentes de nós, os animais não apresentam uma conduta simplesmente instintiva: “já ultrapassamos há muito tempo a ideia de que só os humanos têm transmissão social de informação”, salienta Patrícia Izar, também professora do IP-USP. “Mostrar a complexidade fascinante do comportamento animal enterraria definitivamente os modelos que associam automaticamente muitas espécies animais a máquinas ou a criaturas exclusivamente dominadas por instintos“, conclui a socióloga Eliane Rapchan.
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