O Sistema Único de Saúde brasileiro lida com
um problema crônico de falta de verbas. Sobre o tema, a revista The Lancet publicou recentemente um nada
animador artigo, expondo muitas das
mazelas que afligem o sistema público. Baseando-se na situação encontrada no
estado do Rio de Janeiro – falta de médicos, enfermeiros, leitos e condições
mínimas de trabalho em algumas localidades – o jornalista Jonathan Watts traçou
um panorama pouco otimista dos possíveis efeitos que a atual crise econômica
traria à saúde pública no país.
Watts chamou a atenção para o fato de o
Brasil gastar, anualmente, uma proporção do PIB similar à de países como Suécia
ou Reino Unido em saúde. No entanto, o investimento público corresponderia a
apenas 46% desse total – destinado a atender aos três quartos da população que
não possuem planos particulares de saúde – enquanto a maior parte partiria da
iniciativa privada, sendo voltado ao restante da população, coberta pelos
convênios.
Quando o Brasil assumiu, com a Constituição
de 1988, a responsabilidade de prover o acesso universal aos serviços de saúde,
tornou-se o país mais populoso a fazê-lo. Certamente, o desfio não seria fácil.
Para tanto, as melhores alternativas devem sempre ser buscadas e a otimização
dos serviços de saúde deve ser um objetivo constantemente perseguido. Neste
contexto, a chamada medicina preventiva desponta como uma possibilidade real de
promoção da saúde da população e concomitante desoneração da saúde pública.
O conceito de medicina preventiva apresenta
certa ambiguidade. Como sugerem alguns autores de referência na área, há que se
diferenciar a medicina preventiva realizada pelo setor hospitalar privado
daquela que se dá sob a ótica da saúde coletiva pública. No caso do setor
privado, a prevenção se dá por práticas de identificação precoce de doenças.
Essa proposta se baseia no uso de recursos tecnológicos como exames de
diferentes graus de complexidade, técnicas de genética médica e mesmo medicação
preventiva. Da perspectiva pública e de saúde coletiva, a medicina preventiva
deve se pautar em dados epidemiológicos, com ações amplas para evitar o
adoecimento da população e para promover sua saúde e bem-estar integrais.
É inegável que equipamentos de alta
tecnologia, a realização de exames sofisticados e o acesso a medicamentos de
alto custo são indispensáveis para a garantia do melhor atendimento médico.
Esses recursos são, entretanto, altamente dispendiosos. Face aos problemas
recorrentes de falta de verba no SUS, é imprescindível a busca também por
outros caminhos, e os investimentos na medicina preventiva de viés público e
coletivo são relevantes nesse sentido.
De acordo com o professor da Faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp Gastão Wagner, presidente da Associação Brasileira
de Saúde Coletiva (Abrasco), a medicalização e o emprego excessivo de exames
são práticas frequentes nos atendimentos do sistema público de saúde. “Há um
esforço pelo uso racional de medicamentos e práticas diagnósticas preventivas
(exames)”, ressalta.
Para a saúde coletiva, tão importante quanto
diagnosticar e curar enfermidades, é propiciar um ambiente familiar e uma sociedade
que sustentem um estado pleno de saúde, contemplando não só aspectos
fisiológicos, mas também psicológicos e sociais. A abordagem deve ser,
portanto, a mais ampla possível, e é preciso levar em conta os aspectos ambientais,
econômicos, socioculturais e de infraestrutura em que a comunidade está
inserida.
Políticas de atenção básica, como a
Estratégia Saúde da Família (ESF), contemplam equipes multiprofissionais,
contando, além de médicos, com enfermeiras, assistentes sociais,
nutricionistas, fisioterapeutas, e outras especialidades. “Esse é o conceito de
clínica ampliada”, diz Gastão, “que perpassa os limites do ambiente hospitalar
e propicia atenção e acompanhamento de todo o modo de vida do paciente”. As
ações preventivas e de saúde coletiva são “muito importantes e não podem ser
separadas da atividade clínica”, reforça.
Ricardo Arcêncio, professor da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto, da USP, concorda. “A atenção primária à saúde
(APS) é um investimento necessário e uma política de Estado, pois se pauta em
pilares essenciais da organização de um sistema de saúde”, afirma. Esses
pilares seriam, segundo ele: acessibilidade do usuário, vínculo com as equipes
de saúde, longitudinalidade e integralidade ao longo do tempo, focalização na
família e orientação para a comunidade. “Quando a APS é de qualidade, ela
consegue resolver 85% das necessidades de saúde em território, e isso tem
grande impacto no sistema de saúde”, complementa.
Arcêncio cita o fato de o Brasil conviver com
o que chama de “tripla carga da doença”: doenças crônico-degenerativas numa
população que envelhece; doenças transmissíveis tidas como negligenciadas, como
tuberculose, hanseníase, doença de Chagas e as causadas pelo Aedes aegypti;
e agravos provenientes de causas externas, como violência urbana e acidentes de
trânsito. Para o especialista, a APS dever estar preparada e estruturada para
lidar com esse complexo cenário.
Políticas públicas e iniciativas
De acordo com Wagner, a ação integrativa deve
se dar em três níveis: a atenção básica; a hospitalar, que leve em conta ação
clínica, de acompanhamento e prevenção (informações sobre cuidados
pós-operatórios, indicações quanto à alimentação e demais cuidados pós-alta do
paciente); e a saúde coletiva. Essa última, no Brasil, sob responsabilidade e
coordenação da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) e da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa).
A saúde coletiva é uma área inerentemente
interdisciplinar. São três os eixos disciplinares que a sustentam, segundo o
presidente da Abrasco: a epidemiologia (que abarca desde a ecologia até a
estatística), a biologia (conhecimento dos patógenos e vetores – virologia,
microbiologia, entomologia) e a política e gestão em saúde (ciências sociais,
demografia, geografia etc). Gastão ressalta que os cursos de pós-graduação na
área no Brasil são multiprofissionais, agregando médicos, biólogos,
estatísticos, enfermeiros, pedagogos, cientistas sociais, entre outros, o que é
de extrema importância na formação das futuras equipes de atuação junto à
população.
Além dos citados APS e ESF, uma outra
política pública voltada à atenção primária recentemente criada foi o programa
Mais Médicos. Apesar de seu caráter emergencial, este veio complementar outros
já estabelecidas (a exemplo dos dois primeiros).
Entidades criadas por iniciativas populares
também tiveram e seguem tendo impacto decisivo na luta em prol do SUS e das
políticas de saúde coletiva, como a Abrasco. Dentre os principais objetivos da
associação está disseminar, no Brasil, o campo da saúde coletiva. “A Abrasco
atua fortemente na formação de especialistas e dá suporte à pesquisa científica
através de múltiplas parcerias com universidades”, explica Wagner.
A importância do SUS
De acordo com a matéria do The Lancet, apesar de todos os problemas
na área de saúde, o Brasil melhorou muito em quesitos relacionados ao
desenvolvimento humano nas últimas décadas. A expectativa de vida aumentou 19
anos nos últimos 50 anos e a mortalidade infantil é menos de um quarto do que
era à época. Segundo os especialistas consultados, o SUS é, em grande medida,
responsável por esses avanços essenciais. Como explica Wagner, o SUS se baseia
fortemente no modelo inglês de atenção em saúde, chamado National Health
Service (NHS). Caminho similar percorreram, historicamente, países
considerados exemplares em seus sistemas de saúde, como Canadá, Suécia,
Austrália, Nova Zelândia e o próprio Reino Unido. O problema, segundo o
professor Gastão é que no caso brasileiro, além das sabidas dificuldades de financiamento,
existe crescente influência de setores mais atrelados às práticas e interesses
mercadológicos, que acabam prejudicando o funcionamento do sistema.
A saúde coletiva e a medicina preventiva são
opções promissoras na meta de elevar o sistema de saúde do Brasil a um patamar
de qualidade próximo ao dos países mencionados. “Não tenho dúvidas que a APS é
a solução das crises dos sistemas de serviços de saúde. Quando ela é
implementada com qualidade, profissionais qualificados, motivados e com todos
os recursos necessários, traz grande impacto sanitário pelo investimento que se
faz na promoção da saúde e prevenção, e reduz substancialmente o número de
internações, o que tem impacto financeiro positivo no sistema de saúde”, conclui
o professor Arcêncio.
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