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Resenhas
Como representar o indefinido?
Ficção científica recria a visão de conflito entre humanos e alienígenas e mostra como o temor pelo desconhecido ajuda a criar imagens de monstros
Gabrielle Adabo
10/07/2014

A Terra foi mais uma vez invadida por alienígenas. Para impedir a dominação dos terráqueos por esses seres que nunca vêm em paz, as forças armadas lutam pela liberdade. Esse tipo de enredo já é bem conhecido por quem acompanha o cinema comercial norte-americano. E, mais uma vez, a ideia do conflito entre humanos e extraterrestes é levada às telas pelo filme No limite do amanhã (Edge of tomorrow), lançado em maio deste ano, estrelado por Tom Cruise e Emily Blunt e dirigido por Doug Liman (também à frente de A identidade Bourne e Sr. e Sra. Smith).

A novidade neste longa de 2014 parece ser o formato da narrativa, que lembra um jogo de videogame. O protagonista interpretado por Cruise, o major William Cage, relações públicas do exército dos Estados Unidos, é obrigado a lutar na linha de frente de uma tropa que vai tentar combater os seres de outro planeta. O cenário de guerra está formado e há referências, inclusive, a eventos históricos bélicos, como o desembarque das tropas na Normandia – no filme, a tropa desembarca em uma praia da França, na “Hora H”, uma referência clara ao “Dia D” da Segunda Guerra Mundial. Há, também, menção à batalha de Verdun, disputa da Primeira Guerra Mundial entre franceses e alemães e que, no filme, é a primeira batalha vencida pelos humanos.

Cage, apesar de major do exército americano, é enviado a essa batalha, chamada de Operação Downfall, pelo general das Forças de Defesa da União Europeia. O plano é que a tropa invada a França pelo mar Mediterrâneo. Nos minutos iniciais do filme, o expectador é informado, em imagens de transmissões jornalísticas que mostram cenas de guerra e catástrofe, de que a invasão começou há cinco anos e que os alienígenas já avançaram pela Europa. Após o major se recusar a lutar, o general dá ordem de prisão a Cage, que tenta fugir e desmaia após ser eletrocutado por uma arma de choque. Ele acorda na véspera da batalha, no pátio do aeroporto Heathrow, em Londres, lugar que foi transformado em base do exército.

Ao serem despejados na praia, os soldados começam a enfrentar as criaturas espaciais. Cage não sabe sequer manipular a jaqueta de treinamento, espécie de exoesqueleto que os soldados vestem para a batalha. Ele, no entanto, tem a sorte de matar um alienígena diferente dos demais e o sangue da criatura cai sobre seu rosto. O major morre. Mas aí é que se inicia o mais interessante da narrativa. Cage volta para o começo do dia, quando acorda jogado sobre malas no pátio do aeroporto e é levado até a tropa com a qual irá lutar. Cada vez que morre, ele retorna a esse momento e tem que vivenciar as mesmas situações e até os diálogos idênticos, o que gera várias situações cômicas. Para quem gosta de games, o formato do filme certamente evoca semelhanças: é preciso que o protagonista cumpra uma determinada tarefa, aprenda a mexer com as armas para enfrentar o inimigo, descubra por quais caminhos seguir. E se morrer, ele tem a sorte de poder voltar ao início, mas com o inconveniente de ter que passar por tudo de novo. No percurso, ele conta com a ajuda de Rita Vrataski, mulher que, à frente do exército, conquistou a vitória em Verdun, conhecida como “anjo de Verdun” ou pelo apelido nada carinhoso de “megera de ferro”.

O mais interessante do filme, no entanto, não reside no fato de ser mais um longa de extraterrestres protagonizado por Tom Cruise, conhecido praticante da cientologia na vida real (veja reportagem sobre ficção científica e religião). No limite, permite visualizar como o cinema imagina o ainda indefinível: a vida em outros planetas. Além da visão de invasores, praticamente recorrente nas tramas do gênero, é possível notar semelhanças na forma de mostrar o físico desses seres. Na maior parte dos filmes sobre extraterrestres, as criaturas espaciais ganham elementos de habitantes da própria Terra, como animais aquáticos, répteis e insetos.

Vale citar o cômico Grabbers, filme irlandês que mostra uma invasão extraterrestre justamente em uma pequena vila próxima ao mar. A criatura é a cara de uma lula, mas com presas sugadoras de sangue. O próprio cientista que a analisa a define como “lula-vampira-do-inferno rara”. Ah, e elas morrem se sugarem o sangue de quem está embriagado. Daí o pessoal do vilarejo começar a “tomar todas” para se manter livre da ameaça. Não é uma obra prima do cinema, assim como o filme com Cruise, mas permite visualizar mais uma das tentativas de se representar a vida extraterrestre (que nos proporciona dar boas risadas).

Em No limite, os alienígenas, curiosamente chamados de “mimics” ou miméticos (palavra usada, inclusive, para descrever animais que imitam características de outras espécies ou de plantas), são uma mistura de lulas, com tentáculos que são usados para a locomoção, mas também têm rostos e braços que lembram, vagamente, os humanos. A toda essa composição que empresta elementos de humanos e animais, entra um toque, também, de máquinas. Quem já assistiu Matrix, certamente irá se lembrar das sentinelas. Os “mimics” guardam até mesmo certa semelhança com o extraterrestre de Alien, o 8º passageiro, de 1979, de Ridley Scott, cujo protagonista tem formas remotamente humanas, com partes de insetos e animais – um meio-homem, meio-réptil, com cauda de escorpião.

No filme com Cruise, os alienígenas são controlados por uma espécie de rainha (no melhor estilo colmeia ou formigueiro), o Omega, que parece uma anêmona gigante e azul. O cientista que Cage encontra em certo momento da trama, explica para ele: “você não está enfrentado um exército, tem que pensar neles como um único organismo”. Segundo o cientista, trata-se de um “organismo conquistador de mundos perfeitamente evoluído”, “vagando no cosmos como vírus”. O Omega seria o cérebro desse organismo.

A referência ao domínio da tecnologia pelos alienígenas está presente em No limite, assim em outro filme também estrelado por Cruise, Guerra dos mundos, baseado no livro de Herbert George Wells. Na versão da qual Cruise participa, de 2005, dirigida por Steven Spielberg (o livro foi levado para as telas pela primeira vez em 1953), os alienígenas atacam a bordo de aeronaves dotadas de compridas “pernas” e tentáculos, as Tripods, que emitem um laser com poder incinerador. É importante lembrar, ainda, que o próprio No limite também é uma adaptação de livro, All you need is kill, do japonês Hiroshi Sakurazaka.

Uma exceção recente à regra da caracterização dos extraterrestres como seres violentos parece ser a criação de Stephanie Meyer, a autora da saga adolescente Crepúsculo, no livro A hospedeira, que também ganhou versão para o cinema. Nesse longa, os alienígenas invadiram, sim, a Terra e tomaram o corpo dos humanos. Porém, o planeta se tornou um mundo ideal: não há mais crimes, as pessoas são gentis umas com as outras, tudo está perfeito. As criaturas, chamadas de almas, são pequenos seres que cabem na palma da mão, uma mistura de anêmona com centenas de cabos de fibra ótica enovelados. E é claro, se nos remetermos aos clássicos, há o inesquecível E.T. de Steven Spielberg, com cara de tartaruga, cabeça grande e disforme, pele repuxada e cinzenta, dotado de pernas e braços humanos, dedinhos tortos, coração, mas, principalmente, sentimentos, e que foi capaz de conquistar a simpatia das crianças (apesar de ser perseguido pelos adultos, no filme, como se fosse uma ameaça).

O certo é que o temor e a curiosidade em relação ao desconhecido ainda é um prato cheio para que o cinema crie seus simpáticos ETs ou monstros alienígenas que botam medo nos espectadores. Talvez um dia, quando a vida em outros lugares além da Terra for revelada, a imagem dos alienígenas surpreenda por ser o nunca imaginado nas representações. Ou talvez alguém já tenha acertado, afinal, o planeta Kepler 186f, recentemente descoberto, apresenta características semelhantes à Terra. E a história da evolução, com todos os seus personagens, tem ao menos potencial para se repetir.

No limite do amanhã
Direção: Doug Liman
Ano de lançamento: 2014
Duração: 113 minutos