As bandeiras nacionais são definidas, em conjunto com o hino e a língua, como sendo um dos símbolos representativos de uma nação ou de um país soberano. No entanto, a queima de bandeiras em protestos, como frequentemente tem acontecido com a dos Estados Unidos, ou o enrolar-se em bandeiras, como fazem os jogadores de futebol quando comemoram uma vitória, são cenas comuns na mídia que remetem para uma análise mais ampla. Nesses contextos, as bandeiras nacionais estão no centro de acontecimentos que exaltam ou recusam valores e posições políticas, marcam o momento histórico atual e colocam em evidência os conflitos e tensões de múltiplas identidades.
José Luiz Fiorin, lingüista da Universidade de São Paulo afirma que a análise corrente das cores e formas da bandeira brasileira, como a que associa o verde às matas ou o amarelo ao ouro, é uma explicação popular um pouco frágil a respeito de seu simbolismo. Para uma análise semiótica, Fiorin ressalta a importância de se levar em conta que o símbolo é um elemento concreto que manifesta uma idéia abstrata. “Além disso, todo signo lingüístico, seja ele simbólico ou não simbólico, tem um significante (que é o elemento sensível, imagem ou sons por exemplo) e um significado, que é o conteúdo. Para que haja um símbolo é necessário existir uma relação necessária entre o significante e o significado. E, para analisá-lo, deve-se considerar, entre outros elementos, a cultura, pois os símbolos variam de uma cultura para outra”, explica ele.
O lingüista afirma que quando a bandeira brasileira é mostrada em eventos esportivos, balançada ou enrolada nos corpos dos atletas, há uma exaltação de valores culturais associados a essa bandeira e, para compreender os significados envolvidos, é importante compreender tais valores. “Nesse momento – diz ele - exalta-se a brasilianidade e o que ela significa. A bandeira, assim como o hino, é um símbolo da nacionalidade, o símbolo de um determinado país. Evidentemente, ao simbolizá-lo transmite valores que estão associados a esse país, ou que esse país pretendeu que fossem associados a ele”. Para casos como o da queima de bandeiras dos EUA o lingüista procura diferenciar dois episódios: os recentes protestos de países árabes contra a política norte-americana no oriente e a queima de bandeiras norte-americanas durante a guerra do Vietnã.
Fiorin argumenta que, no primeiro caso, há uma recusa dos EUA, da nacionalidade americana, por causa da ingerência ou de uma imposição de seus valores, e de toda a atuação política dos EUA no Oriente Médio. “Mas isso é diferente do segundo caso, no qual não existe essa recusa do país e de seus valores, mas do governo”, diz ele. Essa outra forma de recusa direciona-se ao fato do governo ter, de certa forma, se apropriado e se identificado com o país. “É uma recusa das ações governamentais e do fato do governo ter se identificado com a nação. Não há uma recusa dos valores norte-americanos, mas do governo norte-americano”, afirma Fiorin.
Em ambos os casos, a bandeira relaciona-se à identificação com valores culturais ou atuação política, ralaciona-se à uma identidade nacional, à idéia de pertencimento a um grupo. Mas como fica essa questão num momento histórico em que se prega a ruptura de fronteiras em virtude da globalização? Para Fiorin, há uma globalização econômica e uma contraparte que pode ser chamada cultural, ou seja, o fato de cidadãos de determinada parcela da população, em várias cidades do mundo, consumirem os mesmos produtos culturais. “Coloco como questão uma possível exacerbação de diferenças nacionais como, por exemplo, os dialetos que ressurgem na Europa. É como se a identidade que se perde com a globalização, fosse reafirmada nessas identidades regionais. De fato, isso pra mim ainda é uma questão: paradoxalmente ao movimento de globalização não ocorre uma reafirmação de determinadas identidades, entre elas a regional ou nacional? À essa globalização correspondem movimentos que acreditávamos que desapareceriam, como os fundamentalismos, a xenofobia, o nacionalismo exacerbado?”, questiona ele.
A resposta vem de Eni Orlandi, lingüista da Unicamp, que desenvolveu esse tema no livro Língua e Conhecimento lingüístico, para uma história das idéias no Brasil (Cortez, 2002). Ela explica que quanto mais as pessoas ganham em mobilidade, mais forte é a necessidade delas de se sentirem parte de um grupo. “Como resposta ao processo de globalização ocorre um reforço da identidade regional, local ou nacional”, afirma. Para ela, ter uma pátria, identificar-se com uma bandeira nacional ou uma língua, é algo que faz sentido para todas as pessoas, mesmo para aquelas que se deslocam e que, por isso, são vistas como estrangeiras ou como relacionadas a uma outra nação. “Na contemporaneidade é muito forte a idéia de que se tem ou se pertence a uma nacionalidade. Essa questão vai além do que se afirma na globalização. Permanece como atuante a idéia de pertencimento a um grupo. Mesmo quando se está fora da pátria, ainda se é identificado com ela, na condição de imigrante.”, explica. “Mesmo que algumas fronteiras se abram com a globalização, e que algumas pessoas de determinados países possam circular sem visto em outros países, torna-se mais forte a idéia de que, para não perder a identidade, deve-se se filiar fortemente a um símbolo. Nesse caso, a bandeira ou a língua podem ser esse símbolo que dá permanência a identidade do pertencimento a nação”, diz ela.
Sobre a queima de bandeiras dos EUA, Orlandi afirma que tais acontecimentos são paralelos a uma certa necessidade histórica das pessoas agarrarem-se a um símbolo para pertencer a algum lugar ou a alguma coisa. Na visão da lingüista, a recusa expressa na queima de bandeiras norte-americanas relaciona-se com a maneira como o imperialismo se desdobrou na globalização, como se resignificou nela e apagou fronteiras. Segundo ela, os EUA atribuíram-se a possibilidade de intervir em qualquer lugar onde julguem que a democracia está ameaçada, e essa atitude faz com que as pessoas entendam a bandeira norte-americana como uma invasão de território. “Isso já está significado no mundo e é uma maneira de atuar mais forte do que o imperialismo. Porque o imperialismo era econômico, tinha limites, ainda havia soberania nacional. A queima da bandeira é também uma recusa dessa atuação norte-americana. Isso se torna ainda mais complexo com a criação de um discurso de confronto entre ocidente e oriente, entre muçulmanos e cristãos, uma guerra santa. Esses desdobramentos carregam esses sentidos negativos dos EUA”, explica Orlandi.
Para além da observação dos significados de exaltação e recusa de valores expressos nos acontecimentos que envolvem as bandeiras, a lingüista vislumbra o que há de comum. “Entre recusa e exaltação há algo comum: a necessidade do sujeito de se vincular a um grupo. Como as diferenças reais e concretas são múltiplas, é necessário que haja pelo menos alguns símbolos que sejam de união, que seja a bandeira, o hino, a língua. É uma união para exaltar ou para recusar. Eu vejo criticamente tanto a queima da bandeira como o ato de se enrolar nela. Em ambos os casos há uma hipertrofia da necessidade de identificação com a pátria. Por mais que se fale em internacionalismo, o que se vê é o acirramento da necessidade de se identificar pela pátria, pela religião, pela cultura. Está havendo um retorno muito forte de valores que identificam diferentes grupos”, conclui Orlandi.
A bandeira como logomarca
Ainda com relação à idéia de globalização, é possível pensar que na atualidade as bandeiras se transformaram em logomarcas de consumo ou de uma forma de consumo. As bandeiras estão estampadas em camisetas, jaquetas, calças, dentre muitos outros produtos que circulam em diferentes países. Para Eni Orlandi, a bandeira como logomarca relaciona-se ao momento histórico no qual vivemos. “O consumo atual, é o consumo da imagem, da mídia, do espetáculo”, caracteriza Orlandi. Segundo a lingüista, o discurso da atualidade reúne essa característica com a necessidade de tornar pública ou afirmar uma identidade pessoal, que no caso relaciona-se a uma identidade nacional.
José Luiz Fiorin pensa a mesma questão a partir da associação com a língua inglesa. “Os EUA é um país que goza de certa admiração por se associar à modernidade. Os produtos associados a ela e a esse país relacionam-se portanto a determinados valores. As línguas têm uma dimensão de comunicação, mas também uma dimensão simbólica. É possível que nessa dimensão simbólica da língua o inglês seja representação de valores ligados aos EUA, em especial valores da modernidade”, afirma ele.
Orlandi procura ir além, ao analisar criticamente a manifestação por meio de logomarcas. “Há um recrudescimento da identidade nacional. Mas o que eu vejo por trás disso é que hoje não existe mais um discurso político estrito. Pessoas que querem se manifestar politicamente, acabam manifestando-se na linguagem de logomarcas. Eu vejo nisso um apagamento do político”, argumenta ela.
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