Companhias aéreas brasileiras crescem, mas não absorvem espaço deixado pela Varig
O balanço de 2006 foi bastante favorável para a maioria das vinte companhias aéreas brasileiras. Pelo menos no que diz respeito ao aumento do número de passageiros por quilômetros pagos transportados em relação a 2005. Entre as de pequeno e médio porte, as que mais cresceram foram a Oceanair, com 429,4% de aumento, a Webjet – que começou a operar em abril de 2005 –, com 196,5%, e a Passaredo, com 109,1%. Embora as duas maiores companhias do mercado, a Tam e a Gol, também tenham crescido, o balanço geral das empresas foi positivo apenas nos vôos domésticos. Nos vôos internacionais, apesar do crescimento de 41,2% da Tam e do extraordinário salto de 141,1% da Gol, o somatório das empresas brasileiras não foi suficiente para absorver a queda de 54,8% do número de passageiros por quilômetros pagos transportados pela Varig antes do encerramento de suas operações, em dezembro de 2006, com a criação da nova companhia Varig Linhas Aéreas. Fonte: Agência Nacional de Aviação Civil.
"A saída da Varig da maior parte das rotas internacionais foi suprida de modo muito deficiente pelas demais empresas", diz Cristiano Monteiro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estudou a trajetória da Varig em seu mestrado e o setor de aviação comercial em seu doutorado. A participação nos vôos internacionais da Tam e da Gol, juntas, aumentou 28,29%, acima da redução da fatia da Varig (27,06%). Mas a maioria dos destinos fora do país antes supridos pela Varig agora estão sendo atendidos apenas por companhias estrangeiras. "A Varig chegou a voar para mais de 40 cidades do exterior, tinha vôos para a África e a Ásia. Muito antes de parar, ela já havia abandonado várias dessas rotas. Hoje, as empresas brasileiras voam para apenas sete destinos internacionais de longo alcance, muito pouco para um país com a projeção internacional que o Brasil tem", avalia Monteiro. Segundo ele, a portuguesa Tap tem seis ou mais aviões saindo diariamente de Portugal para diferentes cidades brasileiras, a alemã Lufthansa e a Air France têm cada uma dois vôos diários para o Brasil, e quatro empresas norte-americanas voam regularmente para cá. "São passageiros que poderiam estar voando em empresas brasileiras, mas não estão", completa.
No cenário dos vôos domésticos, o crescimento não se deu de forma equilibrada em todo o território nacional. "O país possui hoje um transporte aéreo mais competitivo e eficiente, mas também com operação mais concentrada em poucos aeroportos e regiões", afirma Alessandro Oliveira, coordenador do Núcleo de Estudos em Competição e Regulação do Transporte Aéreo, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Segundo ele, os quinze anos de liberalização econômica no setor trouxeram benefícios como a redução de preços das passagens e o acesso de novos segmentos de consumidores ao transporte aéreo. Uma pesquisa da Gol – que entrou no mercado em 2001 como empresa de baixos custos e tarifas reduzidas –, aponta que, em 2002, 4% dos passageiros da companhia aérea viajaram pela primeira vez de avião. Esse percentual subiu para 10% em 2004. Já os vôos fretados da BRA atraem até mesmo passageiros das classes C e D, que preferem viajar de madrugada, em percursos como a ponte aérea Rio-São Paulo, por até metade do preço da concorrência. Mas o maior número de vôos se concentra mesmo nos horários convencionais e em poucas capitais. "É natural observar-se uma concentração de operações em aeroportos centrais e em horários de pico, onde o poder de mercado é mais alto", observa Oliveira. "Concentrar no ‘filé’ de rotas lucrativas virou moda", completa.
Nas principais capitais, onde a demanda é maior, as companhias conseguem praticar um preço mais alto para as passagens. "Como o custo delas inclui tarifas de infra-estrutura que são invariáveis com relação às condições do próprio mercado, tem-se reforçado o efeito de maior atração de vôos e geração de gargalos, congestionamento e atrasos, e piora na cobertura geográfica, com nítida redução nos indicadores de universalização ao longo do território nacional", explica Oliveira. O Brasil já teve mais de 300 cidades servidas pelo transporte aéreo regular, no início da década de 1960. Hoje, são menos de 200, com um movimento de concentração dos vôos regulares nos quinze maiores aeroportos do país desde o final de 2000. Somente os aeroportos de Congonhas e Brasília, por onde circulam anualmente cerca de 10 milhões de passageiros, entre embarques e desembarques, concentram quase 25% do total de vôos domésticos. Segundo Oliveira, o problema da concentração de vôos em poucos aeroportos também já ocorreu nos Estados Unidos e na Europa. Para resolvê-lo, ele sugere a flexibilização das taxas que as companhias pagam à Infraero – que poderiam ser menores nos aeroportos com baixa demanda –, maior descentralização da administração aeroportuária e maior liberdade de negociação com empresas interessadas em operar em aeroportos menores.
Histórico da liberalização do mercado
No Brasil, o setor de aviação comercial, que chegou a ter preços de tarifas controlados pelo antigo Departamento de Aviação Civil (DAC), passou por um processo gradual de liberalização iniciado nos primeiros anos da década de 1990. A política de desregulamentar aos poucos o setor se assemelha aos pacotes promovidos pela União Européia ao longo das décadas de 1980 e 1990, que visavam evitar os efeitos danosos da desregulamentação iniciada nos Estados Unidos em 1978. "Os norte-americanos, por terem sido os primeiros, estavam influenciados por um debate sobre o perfeito funcionamento de mercados livres. Daí, radicalizaram mais. Os europeus, por terem feito a desregulamentação a posteriori, puderam observar os efeitos de curto prazo nos Estados Unidos, como a competição exacerbada, e seguiram na direção de evitá-los", diz Oliveira, do ITA. Segundo ele, a experiência européia já contava com estudos indicando que os mercados livres não funcionavam tão bem. E Monteiro, da UFF, acrescenta que outras pesquisas apontaram os resultados ambíguos da política norte-americana. "Houve redução de tarifas e oferta de descontos, mas também houve concentração de mercado, além de uma precarização dos empregos", destaca.
A desregulamentação radical dos Estados Unidos e a gradual da União Européia têm um ponto em comum: ambas facilitaram a entrada de novas companhias no mercado, o que possibilitou o surgimento de empresas do tipo low cost, low fare (baixo custo, tarifa baixa). A pioneira foi a norte-americana Southwest, que na década de 1970 operava com vôos para apenas três cidades: Houston, Dallas e San Antonio. Com a eliminação de serviços como refeições sofisticadas, a criação do ticketless travel (viagem sem bilhete) – posteriormente complementada com o check-in via internet – e a padronização de sua frota de aeronaves, reduzindo custos de especialização tanto de pilotos quanto de mecânicos para manutenção, a empresa conseguiu reduzir os preços de suas passagens e ampliar o seu público. Atualmente, ela opera em 62 cidades norte-americanas e transporta mais de 70 milhões de passageiros por ano, sendo a líder do mercado de vôos domésticos dos Estados Unidos. "Estudos recentes mostram que tanto as grandes empresas privadas norte-americanas que fazem vôos internacionais como suas congêneres estatais européias têm enfrentado dificuldades. As chamadas low cost, low fare e as empresas regionais têm tido melhor desempenho de um modo geral", revela Monteiro.
Décadas de competição levaram as empresas aéreas de todo o mundo a fortalecer cada vez mais um instrumento crucial para sua sobrevivência no mercado: o codesharing (compartilhamento de rotas). A prática de possibilitar ao passageiro fazer parte da viagem por uma empresa e parte por outra, no entanto, é anterior às políticas de liberação de preços. O pesquisador da UFF conta que quando fez seu estudo sobre a Varig, viu propagandas dos anos 1950 e 1960 de roteiros de viagem que saíam do país pela companhia brasileira com destino aos Estados Unidos e de lá seguiam para a Europa por empresas como a Air France ou a Alitália. "Assim, a Varig conseguia competir com a Panair do Brasil, pertencente à norte-americana Pan American Airlines, que era quem operava as rotas diretas para a Europa", relata. Um passo adiante ao codesharing se deu com as alianças globais, como a Star Alliance, da qual a Varig fez parte até janeiro deste ano. Criada em 1997, ela chegou a ter 18 membros dos cinco continentes em 2006. Além de compartilhar assentos, o que ajuda a otimizar a ocupação das aeronaves, o passageiro também pode usar milhas adquiridas em vôos de uma empresa em outra companhia ou até a sala vip da parceira. "Essas parcerias revelam uma faceta importante do transporte aéreo como negócio: a necessidade de se compatibilizar competição com cooperação", analisa.
No auge da crise contra a falência, a Varig quase foi comprada por uma de suas aliadas na Star Alliance, a Tap Air Portugal, em uma fusão semelhante à ocorrida entre a holandesa KLM e a Air France, em 2004. O grupo Air France-KLM lidera o mercado europeu de transporte aéreo e atualmente discute a incorporação da Alitalia. De acordo com Oliveira, do ITA, além da eventual dificuldade financeira de uma das empresas, também pode haver fusão de companhias aéreas para redução de custos operacionais ou por necessidade de aumento do poder de mercado. "Não necessariamente a fusão gera preços mais baixos ou expansão de mercado. Pelo contrário", ressalta. Monteiro, da UFF, por sua vez, menciona críticos aos movimentos de fusões e aquisições, como o sociólogo norte-americano Neil Fligstein, para quem essas operações obedecem à lógica de obtenção de lucro a curto prazo por profissionais da área de finanças que controlam as grandes empresas e deixam de direcionar recursos para a ampliação da sua capacidade produtiva. "Faz uma grande diferença obter um empréstimo para comprar uma empresa já existente e obter um empréstimo para ampliar a frota ou modernizar os sistemas. A idéia de que as fusões são um ganho deve ser vista com desconfiança, porque elas podem ser um ganho para os acionistas, mas não para os empregados e usuários", conclui.
"Guerras de preços" no Brasil
Desde 1989 o país já sinalizava para uma liberalização de preços das passagens aéreas, com a prática de bandas tarifárias, que variavam de -25% a +10% de uma tarifa de referência. Após a privatização da Vasp, em 1990, houve a primeira rodada de liberalização, que acabou com os monopólios de vôos regionais e aumentou a banda tarifária para -50% a +32% do valor de referência. A empresa, adquirida pelo empresário Wagner Canhedo, cuja compra havia sido favorecida pelo esquema PC Farias, chegou a oferecer descontos até então inéditos, forçando a Varig e a Transbrasil a reduzir seus preços, mas a Vasp não conseguiu honrar compromissos e essa "guerra de preços" durou pouco. "Embora tenha sobrevivido ao impeachment de Collor, Canhedo não sobreviveu à dinâmica do mercado, e seu espírito ‘empreendedor’ se provou uma grande fraude. O mercado, então, voltou à ‘normalidade’: às tarifas equilibradas e relativamente altas", diz Monteiro, da UFF.
No final de 1997 e começo de 1998, a segunda rodada de liberalização acabou com monopólios ainda existentes para linhas especiais, como a ponte aérea Rio-São Paulo, e extinguiu a banda tarifária. "Em 1998, foram observados fenômenos de ‘guerra de preços’, que representavam os efeitos de curto prazo das novas medidas implementadas, e geraram uma movimentação competitiva como não se via pelo menos desde a década de 1960", afirma Oliveira, do ITA. Mas essa "segunda guerra" teve um custo alto para as empresas, que apresentaram baixa rentabilidade naquele ano, e se tornou insustentável com a desvalorização do real frente ao dólar no começo de 1999. Oliveira explica que essa é uma particularidade do setor de transporte aéreo do Brasil: ele é extremamente vulnerável às políticas de choque cambial. Isso porque os principais custos das empresas, como o leasing das aeronaves, é em dólar. Após essa crise, o mercado passou por razoável crescimento no tráfego de passageiros até 2001, quando se deu a terceira rodada de liberalização de preços e a entrada da Gol no mercado. Novas desvalorizações cambiais em 2001 e 2002 levaram à queda de 12% no tráfego de passageiros em 2003. A valorização do real naquele ano e o crescimento do PIB desde então – com o aumento das viagens de negócio, que geraram um movimento de R$ 2,2 bilhões em 2005 – têm recuperado o crescimento do setor até aqui, que alcançou quase 40 milhões de passageiros transportados em 2006.
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