Até a virada do
século 21, para os jovens e adultos, o cinema parecia ter um sabor, um tempero,
um cheiro, um perfume. Havia o dia do cinema. Ou era sábado ou domingo, mas
sempre era dia especial. A fila se formava longa na calçada aventura-interação e,
já ali, naquele instante, o filme começava. Pois a experiência do cinema não
era apenas uma projeção na tela; começava na fila, na bilheteria, a partir da
busca pelo olhar de uma possível paixão. O toque dos olhares na mesma tela
formaria a ligação primeira com aquela pessoa especial – uma ligação intersubjetiva
imaginada como eterna tal qual o efeito da história que estaríamos prestes a assistir.
Um cinema entrelaçando vidas.
Nesse caminhar ao
longo da fila, sujeitos-perfis se constituíam, ou tomando emprestado o
pensamento de Suely Rolniki,
formava-se “um modo de ser - de pensar, de agir, de sonhar, de amar etc. - que
recortava o espaço, formando um interior” (eu/sujeito-perfil) “e um exterior” (outro/s
e o cinema). Nesse perfil, se encontrava “uma superfície compacta e uma certa
quietude, uma ideia de perfil imutável, assim como o interior e o exterior que
ele separa”. Mas à medida que as pessoas entravam na sala do cinema, esse
processo de constituição de subjetividade ia se modificando.
O filme poderia ser
ruim, chato, empolgante, assustador ou belo. O que importava era o efeito – sob
muitos aspectos inconscientes – de tudo aquilo (sala, tela, pessoas, atores,
narrativas, imagens etc) na (inter)subjetividade. Então, as luzes se apagavam,
e logo se ouvia a clássica música tema do canal 100 “Na cadência do samba (Que
bonito é)”ii
preparando os espíritos sedentos e curiosos para o desconhecido que se
apresentaria. O coração pulsava de tanta emoção, como se as pessoas se preparassem
para qualquer coisa que viesse a partir dessa musicalidade tão brasileira. Sentiam-se
fortes, uma nação unida mesmo que viessem vozes estrangeiras. Depois de uma
tática para suavizar a entrada de outras culturas, o filme começava. E cada um
a seu modo, “no escurinho do cinema, chupando drops de anis, longe de qualquer problema, perto de um final feliz”iii,
cada um se (re)construía, se produzindo sujeito na poltrona de madeira sem
sentir o corpo, a pele... o olhar se fixa na tela e o olho absorve o afeto
imagético; ele é “tocado pela força do que vê”iv
na tela.
Concentração total;
apenas o lanterninha sinalizando para a existência do mundo paralelo que se
desejava pôr em suspenso. Naquele instante, importava apenas o filme e esse é
que fazia a vida acontecer por meio de “olhos vibráteis”, para recorrer à
expressão cunhada por Rolnik. Esses possibilitam a entrada no íntimo das
palavras, sons e imagens, provocando um embate entre o eu e o cinema. Tornamos-nos
“indissociáveis e, paradoxalmente, inconciliáveis: o dentro detém o fora e o
fora desmancha o dentro. ... O dentro é uma desintensificação do movimento
das forças do fora, cristalizadas temporariamente ...; o fora é uma
permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro,
diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile”v
– não seremos mais os mesmo a partir do momento que nos deixamos tocar pelo
cinema.
Do
mesmo modo que pensou o filósofo Alain Badiouvi,
o cinema desempenha um lugar essencial na nossa existência e no aprendizado da
vida, das ideias. Badiou, ao conceder uma entrevista ao escritor e crítico de
cinema Antoine de Baecque, argumenta que há algo sobre a relação do cinema com
o mundo que nos educa e instrui em um modo singular. Simplesmente assistindo
filmes, nós podemos aprender sobre a geografia de alguns países, sobre idiomas
estrangeiros e sobre algumas situações sociais que são, ao mesmo tempo,
específicas e completamente universais; sobrepondo passado, presente e futuro
enquanto campo de possibilidades. Do filme mudo, preto e branco, ao filme
repleto de efeitos especiais, todos eles mantêm sempre uma significância, pois
se reatualizam a cada época e a cada vez que são assistidos através da
interação conosco, os expectadores,
ou melhor dizendo, o filme só se completa nessa interação. Expectadores, pois temos sempre expectativas e posição ativa no
mundo e frente às telas.
Mais
do que paixão, para nós o cinema constitui-se como co-participante do nosso
viver, um teletransporte fantástico que nos insere, se nos permitirmos, nas
brechas das existências, nos territórios mais inimagináveis, na relação com as
pessoas. A experiência cinematográfica só adquire sentido, nessas relações, à
medida que compartilhamos direta ou indiretamente o experimentado com o outro, com
aqueles que estão a nossa volta – seja na sala de cinema ou em qualquer outro
espaço cotidiano - e que farão ressignificá-la.
Com
certeza, não é possível demarcar claramente qual a “culpa” do cinema nas nossas
ações, pensamentos e na construção de representações sociaisvii
acerca do mundo, das coisas, dos seres vivos. Depois que as histórias
assistidas (vividas!) entram na nossa memória, não somos capazes de delinear
bordas entre o que vem de fora (sociedade) e o que vem de dentro (desejos,
sonhos, subjetividade). Afinal, o cinema se faz na dialogicidade entre o sujeito,
a outra pessoa e o mundo. A vida pós-cinema, “não é mais ficção e realidade. A
vida é reality”.viii
Talvez nenhum filme
ilustre isso tão bem quanto Rosa Púrpura
do Cairo, de Woody Allen (1985).ix
Ambientado nos EUA durante a depressão na década de 1930, conta a história de
uma mulher chamada Cecília (representada por Mia Farrow) que vive infeliz no
trabalho e com seu marido Monk, (interpretado por Danny Aiello) desempregado,
alcoolista e infiel. Cecília começa a frequentar o cinema, assistindo sempre o
mesmo filme. A certa altura, o personagem do filme assistido por Cecília, Tom
Baxter (representado por Jeff Daniels), sai da tela do cinema para viver uma
história de amor com ela. Em seguida, o ator que interpreta Tom também aparece
na vida de Cecília e se apaixona por ela. Os dois disputam o amor dela: “- Eu
sou honesto, confiante, corajoso e romântico”, diz o personagem que saiu da
tela; “- E eu sou de verdade”, diz o outro. Cecília realiza, então, um de seus
desejos – ser amada, mas não sem conflitos, sem culpa, já que sua fantasia não
aniquila o contato com a sua realidade.
Por outro lado, a
história vivida por Cecília por meio da fonte fílmica reforça um ideal de amor
romântico, difundido historicamente, criando um duplo movimento, nem sempre
nítido: o consumo de cinema como alienação e “poderoso instrumento de difusão
ideológica”x
quando a personagem encontra na ficção um modo de fugir do enfrentamento a uma
vida sofrida, a partir de um ideal de amor (Cecília + Tom). Este consumo pode
ser visto também como resistência a uma relação de dominação (Cecília x Monk), que
expressa relações de poder que são estabelecidas de forma sistematicamente
assimétricasxi.
Há, sem dúvida, uma
homologia entre o que se passa nos filmes e o que fazemos com nossas vidas, ele
é um canal de mão-dupla: pode tanto contribuir para a alienação, subjetivação
ou para a invenção de vida. Isto porque o cinema não afeta todos da mesma forma
visto que, avisam Guattari e Rolnikxii:
o modo como cada um vive a subjetividade, oscila entre uma relação de alienação
e opressão - no qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como recebe, ou,
uma relação de expressão e de criação no qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade produzindo um processo chamado singularização.
Todavia, pensamos, na tela, assim como na “vida real” alienação/opressão,
resistência/singularização não são processos separados, dicotômicos, mas são
fáceis de serem confundidos; são fluídos, rizomados.
Nos dias atuais, outras
relações (materiais e simbólicas) com o cinema se anunciam, tais como o modo cinema-sofá, quando os filmes são
assistidos na “proteção” e individualidade de cada casa, com o apoio dos aparatos
tecnológicos digitais e dos filmes via streaming;
o modo cinema-consumo, que
acontece em salas de cinemas localizadas em shopping
centers, cujo valor dos ingressos torna a experiência elitista e, portanto,
excludente. Em ambos os modos há geralmente um cardápio prêt-à-porter a ser consumido com pouca resistência e que está espalhado mundialmente; e, ainda, o modo cinema-crítico, quando a crítica
sobre as relações de dominação predomina no conteúdo cinematográfico e são
produzidas fora do mainstream
hollywoodiano, onde pode ser incluído alguns filmes populares e alternativos
como os do cinema periférico de bordas.xiii
Os efeitos
psicossociais dessas relações ainda são pouco estudados. Sim. Aprendemos com o
cinema. Representações de mundo são transformadas pelo e com o cinema, mas que
subjetividades e intersubjetividades são constituídas a partir daí? Quando os
olhares já não se buscam e se encontram na intensidade das filas e bilheterias
de “antigamente”, será preciso muita sensibilidade e flexibilidade para manter os
olhos vibráteis. “Quem somos nós? O que desejamos? O que fazer com o que se
assiste? O que fazemos com o que fazem de nós?”, são questões que persistem. No
processo de análise crítica construtiva do cinema e na própria produção de narrativas
fílmicas, a compreensão sobre a constituição de subjetividades e
intersubjetividades precisará ser tecida levando em conta representações, afetos,
desejos, ideologias, interesses mercadológicos, resistências e tecnologias,
sempre sob uma ótica inter-relacional, transdisciplinar e polidiscursiva. A
sessão está aberta para quem quiser entrelaçar vidas e rizomar, mas será
preciso buscar outros modos para além do cinema-sofá/consumo!
Luiza Elesbão Sbrissa é psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista Capes.
E-mail: luizasbrissa@gmail.com
Daiana Schneider
Vieira é psicóloga.
Especialista em saúde coletiva. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Coordenadora do Creas
Jaguari, RS. E-mail: daianaschneidervieira@gmail.com.
Referências
ii Gomes, W. C. Na
cadência do samba (Que bonito é). (compositor: Luiz Bandeira). Série Feito Para Dançar. Rio de Janeiro: Gravadora
Rádio, 1956. LP
iii Lee, R.. Flagra (compositor: Roberto de Carvalho). Álbum Rita Lee & Roberto de Carvalho. Rio de Janeiro: Som Livre, 1982. LP
vi Badiou,
A. Cinema. Texts selected and
introduced by Antoine de Baecque. Malden,
MA: Polity, 2013. p.1-21.
vii Moscovici, S. A psicanálise, sua imagem e seu público. Rio de Janeiro: Vozes,
1961/2012.
viii Faria, A. F. “A
criação do desejo no filme publicitário”. In: Dunker, C. I. L.; Rodrigues, A.
L. Cinema e Psicanálise. v.1, A
criação do desejo. São Paulo: nVersos, 2012. p.32.
ix Allen, W. diretor.
Rosa Púrpura do Cairo Filme. Orion
Pictures, 1985.
x Barros, J. d’A. “Cinema e história:
entre expressões e representações”, pp.55-105.
In: Nóvoa, J.; Barros, J. D’A. (orgs.). Cinema-História. Teoria e representações sociais no cinema. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2012.
xi Thompson, J. B. Ideologia e cultura moderna - teoria social crítica na era dos
meios de comunicação de massa (7a. ed.). Petrópolis: Vozes, 2007.
xiiGuattari, F.; Rolnik,
S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007.
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