São três horas da tarde de uma terça-feira. Em um shopping de uma grande cidade, um cidadão toma café, tranquilamente, enquanto acessa a rede wi-fi do estabelecimento pelo seu notebook. Confere seus emails, faz algumas ligações pelo celular e agora pede um cappuccino. Uma hora depois, chegam uma mulher e duas crianças, todos com várias sacolas na mão. Parece um típico dia de férias, um passeio familiar. Mas o protagonista dessa história, na verdade, estava trabalhando enquanto acompanhava a família nas compras.
As tecnologias de informação e comunicação (TICs), como a internet e os celulares, vêm transformando as relações sociais. O local de trabalho também está sendo afetado e surge uma nova modalidade no mercado, o teletrabalho, e consequentemente, o teletrabalhador. Conceitualmente, o teletrabalho é definido pelas situações de trabalho que utilizam equipamentos e recursos tecnológicos de informação e comunicação e é realizado à distância, seja na casa do trabalhador ou em qualquer outro local que disponha desses recursos. Assim, o profissional não deixa de exercer a sua atividade específica, apenas passa a executar seu trabalho fora do ambiente corporativo.
Surgido como proposta nos anos 1970, como uma tentativa de responder à crise do petróleo, ao aumento dos problemas de trânsito nas grandes cidades e, ainda, ao afluxo de mulheres ao mercado de trabalho, o teletrabalho ganha força a partir dos anos 1990, principalmente em função da sofisticação dos recursos tecnológicos disponíveis e do barateamento da tecnologia. As pesquisas em TICs estão sendo cada vez mais estimuladas, em todos os campos de aplicação, inclusive no Brasil. Um exemplo desse estímulo é o edital lançado recentemente pelo Instituto Virtual de Pesquisas Fapesp-Microsoft Research.
http://www.agencia.fapesp.br/materia/10751/noticias/r-1-milhao-para-projetos-de-pesquisa-em-tic.htm
No Brasil, segundo a presidente da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt), Ana Beatriz Benites Manssour, ainda não existem dados sobre o número de teletrabalhadores existentes ou quantas empresas adotam essa modalidade de trabalho. Manssour acredita que a falta de conhecimento da definição do que é teletrabalho ou o receio de enfrentar algum problema trabalhista por adotar a prática possam contribuir para as empresas não assumirem a adesão à modalidade. Entretanto, diversas empresas já utilizam teletrabalhadores, como IBM, AT&T, Cisco e a Dow Química, por exemplo.
A ausência de legislação trabalhista específica sobre o teletrabalho, porém, não representa um empecilho para a sua prática. O artigo 6° da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê que não há distinção entre o trabalho realizado no escritório e o realizado no domicílio do trabalhador, desde que a relação de emprego esteja caracterizada. Um projeto de lei em tramitação no Congresso, desde 2004, pretende incluir no texto desse artigo a noção de trabalho realizado à distância. Outro projeto de lei, apresentado no ano passado, pretende ser mais abrangente, abordando desde a conceituação de teletrabalho até direitos e deveres e elaboração do contrato de trabalho. Por ora, a CLT dá respaldo ao teletrabalhador e à empresa, inclusive em casos como acidentes de trabalho, nos quais se aplicam as normas já estabelecidas pela CLT.
A carga horária exercida pelo teletrabalhador pode ser controlada remotamente pelas empresas, através de softwares, e a realização de horas extras precisa ser autorizada por um supervisor. Algumas empresas podem realizar o controle através de avaliações de projetos executados ou metas atingidas, dispensando o monitoramento de horas trabalhadas.
Para as empresas, a adoção do teletrabalho representa uma redução nos custos de manutenção de escritórios, equipes de apoio e suprimentos. Os teletrabalhadores entendem que são beneficiados pela agilidade na tomada de decisões e diminuição do tempo de resposta aos clientes. “Estudos realizados em outros países comprovam um aumento de produtividade mínimo de 30% e que pode chegar a 61% entre os profissionais que passam a trabalhar à distância”, ressalta Manssour. A presidente da Sobratt afirma que a simples redução de fatores de estresse, como horas desperdiçadas no trânsito, poderia justificar esse aumento de produtividade.
Em um artigo publicado em 2007, na Revista de Administração Pública , a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Isabel de Sá Affonso da Costa descreve a percepção que os teletrabalhadores têm sobre a experiência do teletrabalho. A pesquisadora destaca o reconhecimento pelos teletrabalhadores de um aumento da carga horária de trabalho, em comparação com o trabalho no ambiente tradicional. Por outro lado, esse reconhecimento não ameaça a identificação com a prática do teletrabalho, mas alimenta a valorização do discurso do empreendedorismo de si, pois os teletrabalhadores entendem que atingiram uma posição diferenciada em suas carreiras.
http://www.scielo.br/pdf/rap/v41n1/07.pdf
A intersecção entre as esferas pública e privada, o espaço da rua e o espaço da casa, porém, é um ponto de conflito. Com a abolição do “sair para trabalhar”, o teletrabalhador dispõe de maior tempo para estar próximo da família, mas não necessariamente de mais tempo para a família. Segundo Nádia Nery, profissional de recursos humanos da Dow Química, é preciso que o teletrabalhador seja disciplinado para equilibrar as duas esferas. “Nas empresas, incentiva-se o balanço entre profissional e pessoal, mas não podemos negar que muitos criam uma dependência do trabalho e, com a ferramenta por perto, não conseguem desligar-se em momentos de lazer ou mesmo férias”, aponta Nery.
A pesquisadora Isabel Costa confirma que relatos desse tipo são muito comuns e acrescenta: “O teletrabalho ainda é um arranjo de trabalho relativamente recente. Também é comum os teletrabalhadores relatarem que amigos e parentes tendem a considerar que estar em casa é estar disponível, e não ‘respeitam' os horários de trabalho do teletrabalhador: telefonam para longas conversas, convidam para sair, crianças pequenas se sentem preteridas pelas atividades de trabalho”.
Para Manssour, da Sobratt, o teletrabalhador deve aproveitar os benefícios, como as horas extras economizadas com deslocamento, por exemplo, para exercícios físicos e convívio com a família. Outro benefício apontado por ela é a redução dos gastos do trabalhador com transporte, alimentação e vestuário.
A flexibilidade do horário de trabalho, de fato, é um atrativo do teletrabalho. Edson Zicari, profissional de vendas da Dow Química, cita a possibilidade de monitorar ações de seu trabalho enquanto aguarda uma consulta médica. Para Felipe Rosa, estagiário da empresa, as vantagens da facilidade de comunicação e a acessibilidade móvel tornam desnecessário o deslocamento para resolver problemas.
Por outro lado, a falta de convivência com colegas de trabalho é percebida como ruim. “A desvantagem (do teletrabalho) é que promove um isolamento de seus pares, de seus colegas. A troca de informação acontece, mas não a troca de experiências. O relacionamento é mais frio, as videoconferências substituíram as reuniões e eu creio que, com isso, perdemos oportunidades de interações mais ricas para a condução do trabalho”, comenta Zicari.
“Não é raro os teletrabalhadores se queixarem da falta que faz 'sair de casa para trabalhar', o 'papo no trabalho', a 'happy-hour'. O ambiente de trabalho é um espaço relevante de sociabilidade”, analisa Isabel Costa, da FGV. Segundo a pesquisadora, o teletrabalho faz parte de uma série de transformações no mundo do trabalho que requer e ao mesmo constrói um trabalhador mais independente para desempenhar tarefas, responder por seus atos e ser medido pelo seu desempenho, o que ela chama de “empreendedor de si”.
“Com certeza, há a necessidade de adequações das empresas, dos trabalhadores, dos sindicatos, das famílias e da sociedade, na medida em que se trata de uma mudança importante nas relações de trabalho. É a finalização da transição da sociedade industrial para a sociedade da informação e do conhecimento”, complementa Manssour.
Com a consolidação dessa modalidade de trabalho, o trabalhador e sua família fatalmente serão afetados, como a personagem do shopping do início da reportagem. Isabel Costa entende que as mudanças dependerão de algumas variáveis, como situação familiar, condições de moradia e disponibilidade financeira. “Geralmente, quem menos se adapta ao teletrabalho são justamente os que têm filhos pequenos, especialmente mulheres nessa situação”, aponta.
Além disso, segundo a pesquisadora, o conflito entre as esferas públicas e privadas, fundamental para o entendimento da dinâmica familiar e social brasileira, provocará mudanças significativas, “mas que virão no bojo de outras que já vêm ocorrendo há algum tempo, tais como as relações familiares e sociais mais democráticas e a transformações nos papéis masculinos e femininos”. Com tais transformações, os passeios familiares no shopping não serão mais os mesmos.
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