Para Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo existencialista, uma noção de liberdade que tome como símbolo o “livre voo do pássaro” não passa de um equívoco de senso comum. Um pássaro não é livre, no sentido filosófico de liberdade, pois ele segue o determinismo biológico de sua espécie: vai para o norte na época do frio e para o sul no verão, quando as correntes migratórias são guiadas pelos instintos naturais de sua espécie, ou seja, não é propriamente escolha. O homem é o animal que rompe com o determinismo natural de sua espécie, por justamente “por em questão o seu ser”, podendo fazer outra coisa do que o que lhe foi destinado.
O argumento do senso comum contra a liberdade é o da afirmação de nosso determinismo e nossa impotência: devemos obedecer ao destino de nossa classe, de nossa família, às regras de nossa sociedade. Portanto, bem mais do que “fazer-se”, compreende-se que o homem “é feito”, já que as circunstâncias o “condicionam”. Sartre condena fortemente essas acepções. Considera que a maioria dos argumentos, inclusive filosóficos, sempre trabalhou com a noção de liberdade no plano moral, alimentando os equívocos do senso comum. Aristóteles, por exemplo, em sua “Ética a Nicomano”, define ato livre como aquele que o sujeito realiza sem nenhuma coação. Assim, é livre o ato gratuito, adotado sem nenhuma pressão, quando as circunstâncias permitem que o sujeito possa realizá-lo por “livre e espontânea vontade”. Para Sartre esta é justamente a noção inversa do que compreende por liberdade, pois o homem é irremediavelmente lançado na realidade concreta, em circunstâncias determinadas, que o colocam frente à necessidade de escolher e, ao fazer essas escolhas, escolhe seu ser. Aqui está o que considera liberdade: ao ter de escolher escolho-me, definindo meu ser em um campo de possibilidades (Sartre, 1943; Schneider, 2011).
A liberdade é considerada, assim, como uma condição ontológica do homem, ou seja, ela é definidora do seu ser. Não é, assim, uma “qualidade” de uma ação que se agrega ao ato (ato livre X ato determinado), mas uma condição de ser. Portanto, a liberdade não é do plano moral, da escolha entre o “bem e o mal”, ela é constitutiva do ser do homem, tanto quanto seu corpo o é.
Sartre alerta, no entanto, que “ser livre” não significa “obter o que se quer”, mas sim “determinar-se a querer”, ou seja, ter autonomia de escolha (Sartre, 1943: 563). Isto quer dizer que o êxito não importa em absoluto à liberdade. Portanto, liberdade de escolher é muito diferente de liberdade de obter. Cita o exemplo do presidiário que apesar de não ser “livre” para sair da prisão quando lhe aprouver, é sempre livre, no entanto, para tentar sua libertação; qualquer que seja sua situação, ele sempre pode projetar sua fuga e descobrir o valor desse projeto. Uma pessoa sob tortura, como ele descreve em seu conto O muro, vive a angústia da liberdade em seu extremo, pois terá que decidir até quando suportará a dor, se preferirá morrer, ou contar ao torturador o que ele quer saber. Sendo assim, não poderíamos conceber que o homem é livre em certas ocasiões e em outras não, conforme as condições em que se encontra. Não! Ou o homem é inteiramente livre ou não o é, independente das circunstâncias onde se encontre. Não seria concebível essa dualidade (ser livre/ser determinado) no âmago da ontologia humana, pois assim se justificaria a escravidão e outras opressões como atos naturais e não como políticos ou socioculturais.
No entanto, o fato do homem estar condenado a ser livre não significa que ele seja seu próprio fundamento, pois se assim fosse, ele próprio decidiria se seria livre ou não. “De fato, diz o existencialista, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à liberdade, como dissemos atrás, arremessados na liberdade” (Sartre, 1943: 565). Estar condenado à liberdade significa que não podemos deixar de escolher, pois mesmo não escolher é ainda uma escolha.
O fato de não poder não ser livre é a facticidade do homem; já o fato de não poder não existir é a sua contingência. Isso quer dizer que a liberdade não pode escapar ao mundo, de nele estar situada, de ter de se relacionar com o que está “dado”. Portanto, toda liberdade é sempre em situação. Esse é seu paradoxo! A liberdade é delimitada pela situação que, por sua vez, só ganha sentido por ser posta por uma liberdade. O sujeito encontra por toda parte resistências e obstáculos que ela não criou, mas essas só ganham sentido na e pela livre escolha que ele faz. Portanto, a liberdade só existe em uma estrutura de escolha, dada pela situação onde está inserida. Assim, o indivíduo escolhe dentro de determinadas condições.
Jean Genet, conforme descrito na biografia escrita por Sartre, aos dez anos de idade, como criança adotada em uma família campesina, vivia em um ambiente de grande rigidez moral, baseada em valores religiosos. Em suas brincadeiras, Genet realizava, sob o manto de sua ingenuidade infantil, o furto de pequenos objetos. Eram brincadeiras espontâneas, solitárias, das quais não se dava conta, nem de seu sentido, nem de suas consequências. Era uma forma de apropriar-se, na fantasia, de um mundo que sentia que não lhe pertencia, compensando a sua incapacidade de “ter”. Vivia, através desses pequenos roubos, a experiência imaginária de ser proprietário. Mas eis que um dia, em torno de seus dez anos de idade, foi surpreendido em flagrante. Estava na cozinha de sua casa, pegava alguns objetos e os escondia, quando alguém entrou subitamente, surpreendendo-o em sua brincadeira, declarando publicamente, em alto e bom tom: “tu és ladrão”. Essa frase foi vivida por Genet como uma sentença fatal. Em pouco tempo toda a aldeia sabia do acontecido. O menino viveu o despertar de sua ingenuidade: abriu os olhos e se deu conta de que roubava. Voltou-se para si mesmo, talvez pela primeira vez. Descobriu que era ladrão e de que era culpável. Nessa situação paradoxal lhe foi imposta a necessidade de escolher, e ele o fez, a partir da estrutura de escolha que lhe fora dada, através da qual intuia suas possibilidades de ser. Assim, Genet não foi livre naquele momento para escolher “ser o que bem entendesse”, não foi uma escolha voluntária, muito menos uma escolha gratuita. Ele foi livre para escolher seu ser em uma situação de grande pressão social. Ainda que naquela situação tivesse se posicionado de forma diferente do que a que escolheu, se não tivesse assumido com “unhas e dentes” a sentença “eu sou ladrão”, ainda que ficasse passivo e deixasse que os outros fizessem dele o que bem entendessem, ainda sim estaria escolhendo o sujeito que queria ser (Sartre, 1952, Schneider, 2011). Poder-se-ia, facilmente cair em um determinismo e conceber que, “pobre Genet”, não tinha outra alternativa, foi vítima da situação. Mas aqui a compreensão existencialista faz a diferença. A superação do determinismo está exatamente na concepção de que o fundamental é o que Genet fez dessa situação. Com pouco mais de dez anos teve que decidir os rumos de sua existência: Genet elegeu viver sob as condições que lhe eram impostas, dizendo contra todos: "eu serei o ladrão". Ele mesmo declara: “decidi ser o que o delito fez de mim” (Genet, 1983).
Há, assim, um coeficiente humano de adversidade, ou seja, eu existo em um mundo já visto, já significado pelos outros, que se impõe a mim no ato da minha escolha. Sendo assim, a alienação é uma situação das mais comuns na realidade humana. Nela sou o que o outro quer me fazer, na medida em que fico em seu poder, pois realizo o objeto que o outro me tornou, estou nas mãos do outro. Porém, assinala Sartre, é livremente que sucumbimos à opressão, à proibição. Escolho-me fazer objeto para o outro. Isso não quer dizer que eu tenha clareza da escolha ou que ela seja deliberada. Mas em se tratando de alienação, que é uma escolha não posicional-de-si, o eu é realizado como tarefa e não como possibilidade. Mas, ainda assim, é uma escolha livre de realizar meu ser. Já vimos acima que o êxito não importa em absoluto à liberdade. Sartre afirma, na Conferência de Araraquara, que “alienação e liberdade não são, em absoluto, conceitos contraditórios. Muito pelo contrário: se não fosses livres como poderia transformar-te em escravo? Não se escraviza um pedregulho ou uma máquina: só se escraviza e se aliena a um homem que, primeiramente, é livre. Há uma noção capital que é a dialética marxista não elucidou de modo suficiente, a saber: não há alienação a não ser de um homem livre” (Sartre, 1987: 39).
Como conciliar, portanto, que o homem é condenado à liberdade se ele não escapa à alienação? É preciso distinguir diferentes níveis de realidade: a liberdade é ontológica, quer dizer, é da condição humana; já a alienação é antropológica, depende do processo histórico, cultural que o homem vive, depende do homem enquanto sujeito histórico. Genet escolheu seu ser na alienação, levado pela espontaneidade predominante na infância, mas ainda assim o escolheu e o fez de uma maneira tão radical, tão apaixonada, que mesmo em se fazendo objeto para o outro, buscou realizar essa entrega enquanto sujeito, enquanto liberdade, vindo anos mais tarde a superar a exclusão social a que assumiu ao ser condenado, tornando-se um dos mais importantes escritores franceses do século XX.
Sartre demonstra, com essa biografia, o que vem a ser “liberdade em situação”, pois em tudo aquilo que a liberdade empreende há uma face não escolhida por ela, que lhe escapa, e com a qual deve haver-se. Portanto, a liberdade não é gratuita, arbitrária e caprichosa, ela é a escolha inelutável que tenho que fazer de mim mesmo, dentro de determinada situação, ou seja, dentro de uma estrutura de escolha, que compromete meu ser com um determinado futuro. Portanto, uma das características essenciais da liberdade é a do compromisso ontológico, que quer dizer que ao me escolher, ainda que de forma alienada, sob pressão das circunstâncias, eu escolho o ser que eu sou e serei, o que compromete meu ser em um dado devir. Não adianta nada eu dizer que quero ser uma pessoa calma, se cada vez que me deparo com uma dificuldade perco o controle, começo a roer as unhas, a brigar com as pessoas próximas etc. Meus atos acabarão por me definir como uma pessoa nervosa e os outros me confirmarão nesse perfil que tento negar. Sou, assim, responsável pelo meu ser, mesmo que viva numa situação adversa, perigosa, excludente; ainda assim, sou responsável pela maneira como vou enfrentar essa situação extrema.
Podemos agora compreender a amplitude da frase de Sartre: “o essencial não é aquilo que fizeram de nós, mas sim aquilo que nós mesmos fazemos do que fizeram de nós” (Sartre, 1952). É a expressão do homem enquanto “liberdade em situação”. Estamos cercados de determinações, mas, ainda assim, não somos seres passivos, condicionáveis, pois sempre fazemos algo do que fazem de nós.
Daniela Ribeiro Schneider é professora do Departamento de Psicologia, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.
Referências:
Sartre, J. P. (1943). L’être et le néant – essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard. Sartre, J. P. (1952). Saint Genet: Comédien et martyr. Paris: Gallimard. Sartre, J. P. (1987). Sartre no Brasil: A conferência de Araraquara. São Paulo: Paz e Terra: UNESP. Schneider, D. R. (2011). Sartre e a psicologia clínica. Florianópolis: EDUFSC.
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