Documentários no Brasil têm
sido cada vez mais produzidos. Há alguns motivos bem concretos para que isso
ocorra. Talvez o principal seja mesmo o acesso mais amplo aos equipamentos de
filmagem e edição desde que o digital passou a ser um mundo que atravessa nosso
cotidiano. Também ajuda muito o fato de a realização de um documentário não
implicar obrigatoriamente em demandas de produção profissional tais como
atores, locações específicas, roteiros estruturados etc. Na verdade, o que
temos visto cada vez mais quando encontramos um bom documentário é sua
realização conjugar capacidade de se debruçar sobre a realidade, interagir com
esta e a partir deste “material bruto” – digamos assim – fabular um outro real
que, paradoxalmente, faz pensar sobre um real conhecido.
É claro que esse é apenas um
esquema muito simplificado que só está valendo porque o assunto é outro. O que
quero trazer aqui, e que não é nenhuma novidade, é que apesar da produção de
documentários ter aumentado muito, seu público, pelo menos nas salas de cinema,
continua muito aquém dos filmes de ficção. Há, evidente, muitas ressalvas que
têm que entrar no pacote. Por exemplo, o número de cópias com que são lançados
os documentários é mínimo. Não bastasse esse sufoco, a degola da sala de cinema
chega muito mais rápido para o documentário do que para qualquer filme de ficção,
seja nacional ou não. Sem falar na própria trajetória do cinema que se tornou
indústria potente no viés ficcional e mudar essa cultura...Bem, não é fácil!
(fiquemos nesta obviedade).
De todo modo, a turma do
documentário não cruzou os braços. Disposta a enfrentar essa situação buscou,
nos últimos anos, construir caminhos de visibilidade da produção que se
multiplicou em quantidade e qualidade também. Entre as veredas trilhadas nessa
direção, sem dúvida a televisão pública ocupou um papel relevante, na medida em
que foi reconhecida como um espaço que precisava ser cultivado. E foi. Tanto
que não só no Brasil, mas também na América Latina, um grupo de cineastas que
reconhecia no cinema uma potência transformadora nos anos 1960/1970 arregaçou
as mangas junto com uma nova geração de entusiastas, gestores públicos e também
novos diretores, e foram às portas dos países vizinhos, agora já vivendo a
realidade de fim das ditaduras que tanto horror trouxeram à região. O resultado
desse esforço e convicção (e temos provas disso!), foi uma costura ampla de
redes públicas de televisão que, entre outras atividades, jogou no ar um
punhado de documentários que circularam e ainda circulam, livre e continuamente,
entre mais de 20 países da América Latina.
E se a festa pode não ter
sido uma festança, em termos de público foi muito mais do que a média costumava
(e costuma) apontar. Ou seja, aquele número de espectadores que estava lá
embaixo saiu da casa da centena e muitos documentários puderam ostentar
públicos significativos, além dos debates férteis que também são uma das
características coladas ao gênero. Fora isso, o novo modelo de circulação ainda
garantiu um extra bacana, que foi voltar a entrar em contato com a produção dos
países vizinhos, algo que praticamente tinha desaparecido nos anos de chumbo
desses países. Mas, como agora os tempos estão revoltos, não se sabe se essa
vida mais consistente e disposta à ampliação vai estar sub júdice ou se os bons acordos continuarão agregando mais
resultados positivos. De todo modo – e eis que aqui, finalmente, chegamos à
essência do objetivo dessa fala – o que se pode demarcar é uma mudança crucial
de paradigma em relação à lida com o cinema no(s) país(es): finalmente, a
questão da distribuição e circulação dos documentários entra no jogo com a
importância e relevância que tem. E também traz no bojo dessa mudança outra quebra
de paradigma: a televisão deixa de ser vista apenas como o lugar da alienação e
passa a ganhar nova e necessária embalagem de meio de comunicação público.
Aplausos!
Só que, além de comemorar o
feito conquistado até agora, é preciso olhar esse movimento aproveitando a
deixa para ir mais longe: será que não era hora de também rever um outro
bicho-papão? Falo aqui justamente da relação de audiovisual e ciência. Ora, nessa
preponderância de vida rodeada de telas em que estamos imersos hoje, por que
ainda continua tão difícil desalojar o falso proprietário desse enlace –
ciência e audiovisual –, desbancar o capitalismo predatório como o agente quase
exclusive dos destinos da ciência e tecnologia na relação com o audiovisual?
Por que ainda há no chamado campo democrático tanta resistência e até
dificuldade para incluir a ciência e a tecnologia como temáticas tão essenciais
ao nosso prazer de conviver com o cinema, tanto quanto é ótimo ver filmes sobre
os dramas familiares, negócios escusos, espionagem etc.?
Não se trata, claro, de
demarcar instrumentalmente fórmulas que garantam essa produção. O que colocamos
é que, se os debates sobre a questão hoje batem de frente com a nova realidade
de poder, isso não pode impedir que nós, que amamos o cinema, aproveitemos a
deixa que chega do público, apesar das tantas condições adversas já citadas
quanto à dificuldade deste conseguir encontrar os documentários produzidos
fartamente. E, que deixa é essa?
Acredito que a resposta seja
mesmo recuperar o caminho convencional de tabulação de público, algo que, no
Brasil, tem sido garantido pelos mecanismos oficiais do governo federal (e aqui
é impossível não colocar um ponto de interrogação no novo cenário de fusão de
Ministérios etc). De qualquer forma, o acumulado do período, pensando desde os
anos 90, por exemplo, indica que os documentários que melhor acionaram público
foram os que focam biografias, em especial os musicais, além de alguns mais
“desgarrados” em termos temáticos, como os voltados a times de futebol, por
exemplo. Mas, para além desse indicador de cinema, há também outros indicadores,
talvez mais subterrâneos, que reforçam o que é apontado no modelo clássico de
aferição de público: o circuito garantido pelo DVD e, mais recente, o acesso
via internet são dois destes. E neles encontramos dois grupos de produção
documentária que, a meu ver, consolidam mais duas temáticas que o jornalismo já
sabe há um bom tempo: a temática da saúde e do meio-ambiente.
Sem querer entrar em números,
até porque o espaço não permite, documentários como O Renascimento do Parto (Brasil, 2014, direção de Eduardo Chauvet),
por exemplo, que continua fazendo a festa via DVD (é um dos mais vendidos do
país), ou Muito além do peso (Brasil,
2014, direção de Estela Renner) ou, ainda, O
veneno está na mesa (Brasil, 2014, direção de Silvio Tendler), entre tantos
outros que desde que lançados mantêm-se vivos no cenário cultural pelos
caminhos ainda invisíveis do acesso escolar, grupos de discussão, encontros e
debates, me parecem consolidar um caminho que se insere, generosamente, no
contexto da política de popularização da ciência. Isto é, se não se apresentam,
exatamente, como integrantes de pesquisa científica – algo que Arlindo Machado
defende como critério para o batismo “documentário científico” –, estes e
outros documentários que se debruçam sobre os nós da saúde e do meio-ambiente hoje dão vitalidade a essa
expectativa de enlace sólido entre o audiovisual e ciência. Uma jornada que deve
passar mais ao largo do didatismo que quase sempre marca as produções do
documentário televisivo que perambulam, em especial, nos canais fechados. Ou
seja, são documentários em que a presença do cineasta (e não estamos aqui
mensurando competências) indica uma opção de produção que a meu ver acaba equilibrando
a difícil equação pautada pelo reconhecimento que a cidadania plena, em termos
largos, envolve uma convivência objetiva com a temática que integra o nosso
cotidiano, ou seja, a ciência.
É óbvio que a discussão é
muito mais ampla e cheia de trilhas do que o que está colocado aqui. De todo
modo, nossa pretensão ao tocar tão rapidamente nesse tema espinhoso é
contribuir para que a inclusão do debate sobre saúde e meio-ambiente incorporado
pelo campo democrático mais recentemente, seja problematizado nessa perspectiva
de que já passou da hora de também nos debruçarmos sobre mais cenas que
integram o nosso cotidiano atual. Em outras palavras, o que estou propondo é
que se continue a cultivar esse público que já mostrou adesão aos filmes de
temáticas ambientais e de saúde em um processo que nos permita, logo logo,
adensar as articulações com o conhecimento científico e tecnológico que se
expandem para além desses núcleos. Trata-se de um procedimento que aposta em
uma percepção cumulativa da potência do cinema como parte integrante e
essencial da cultura e arte, desde que o imbricarmos à vida moderna.
Nessa trilha, não é possível
mais o século XXI, que já está caminhando tão rapidamente para completar a sua
segunda década, continuar se realizando à margem desse território que para o
bem e para o mal ganhou status de
eixo norteador da nossa caminhada: a ciência e a tecnologia. Tal dupla, até
mesmo pela perspectiva de boa parte dos cientistas, tem que ser percebida em
sua dimensão cidadã, isto é, seus passos têm que envolver debates inclusivos,
sob o risco dela, nos países ditos periféricos, continuar uma jornada rumo à
estagnação. Um bom exemplo disso é a paralisia da sociedade diante do desmonte
evidente da ciência no Brasil, como se o país não precisasse da contribuição
essencial desse conhecimento para as emergências que temos. Quebrar tal
inércia, é claro, não pode ser creditada ao cinema. Mas este, enquanto
integrante vivo e pleno da cultura, pode sim abraçar tal causa, rompendo,
definitivamente, como dito lá no início, com um paradigma que excluía essas
áreas – ciência e tecnologia – das suas jornadas preferenciais ou majoritárias.
Tenho profunda convicção (me repito) e um bom tanto de provas de que tal
terreno é muito mais fértil do que os números oficiais que temos hoje, de
público, apontam.
Denise Tavares é professora do departamento de comunicação da
Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação Mídia e Cotidiano, da mesma
universidade. Jornalista, é mestre em multimeios e doutora em integração
latino-americana.
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