02/06/2006
A
historiadora Miriam Lifchitz Moreira Leite dedicou-se aos estudos sobre
os viajantes no período entre 1978 e 1984. Iniciou pela Bibliografia
Comentada Mulher brasileira, da Fundação Carlos Chagas, para a
qual escreveu uma Antologia dos viajantes, enfocando as várias áreas em
que a mulher aparecia. Outro livro dedicado ao tema foi um dicionário
dos viajantes, autores de livros de viagens, tanto mulheres como
homens. Foram 153 viajantes estudados que, segundo ela, lhe permitiram
descobrir o que eles chamavam de “mulher brasileira”. Segundo ela, no
início, as mulheres simplesmente não eram consideradas, nem mesmo
apareciam nos livros de viagens. Era como se não fossem pessoas e não
fizessem parte da sociedade. Num segundo momento, esses autores
passaram a chamar de “mulher brasileira” todas aquelas que falavam o
português. Tempos depois é que as indígenas e escravas nascidas no país
também passaram a ser consideradas como tal. Atualmente, a professora
Miriam Moreira Leite é pesquisadora do Laboratório de Imagem e Som em
Antropologia Visual da USP, e o tema de suas pesquisas é imagem e
memória.
ComCiência -
A senhora foi uma das pioneiras nos estudos sobre viajantes no Brasil.
Ainda hoje é difícil encontrar acervos consistentes, organizados,
principalmente no país – muitos dos registros encontram-se fora – como
era isso na década de 70?
Miriam Moreira Leite
- Não me considero pioneira nos estudos sobre viajantes. Talvez tenha
sido a primeira a tentar estudar em conjunto, de forma intertextual,
aqueles que vieram para o Rio de Janeiro, durante o século XIX, para
percorrer o país ou morar algum tempo na cidade ou na província. Mas
fiz o trabalho para focalizar as mulheres desse século. Na década de
70, tive muito auxílio de coleções organizadas por Rubem Borba de
Moraes, Sergio Milliet, José Mindlin, Affonso d´E Taunay e da
bibliotecária do Instituto de Estudos Brasileiros Rosemarie Érika
Horch. Tentei utilizar as traduções existentes e consegui traduções de
minha mãe e do colecionador Paulo Berger.
ComCiência - Em que medida as viagens dos naturalistas contribuíram para a profissionalização do cientista?
Moreira Leite
- No decorrer do século XIX é que cada um dos viajantes se especializou
em uma ciência diferente. Um era botânico, outro farmacêutico, outro
astrônomo, diferente do que acontecia nas primeiras viagens. Além
disso, durante o século XVIII e início do XIX, uma das atividades
comuns na Europa, e aqui também, era o colecionismo. As pessoas
colecionavam diferentes espécies de plantas, de insetos, animais.
Quando von Martius fez o seu livro, por exemplo, vários amadores
auxiliaram-no na classificação de plantas e muitos deles acabaram se
profissionalizando.
ComCiência -
Em seus livros a senhora aborda a literatura produzida por mulheres
viajantes. Na maioria dos casos elas viajaram acompanhando seus maridos
e ficaram aqui por breve período. Alguma delas veio com o objetivo de
trabalhar junto a um naturalista, ou como artista? Dessas autoras, quem
a senhora destacaria?
Moreira Leite
- Nas equipes de naturalistas ou de artistas só havia homens. As
mulheres que fui encontrando – com muita surpresa dadas as dificuldades
da viagem e da vida no século XIX para uma mulher – eram escritoras,
pintoras, naturalistas e até jornalistas. Mas elas não participavam das
expedições com missões específicas como os homens. É extraordinário
pensar que elas aceitassem vir para o Brasil, porque ainda era uma
época de viagens difíceis. As embarcações eram à vela e havia o mito de
que mulher na embarcação trazia azar. As primeiras mulheres que
viajaram tiveram que se disfarçar de homens. Mas já no final do século
XIX houve alguma mudança, podendo ser citado o caso da jornalista Marie
Robinson Wright, que veio para o país, patrocinada pelo presidente da
época e que, através de seus livros, fazia propaganda do país. Em meu
trabalho consegui reunir um amplo panorama de quem eram os viajantes e
as mulheres viajantes também.
Tereza
da Baviera, por exemplo, era uma naturalista, prima de D. Pedro II que
recebeu dele um grande auxílio, orientando Emílio Goeldi e D´Orvielle a
auxiliarem-na em suas pesquisas. Diferente de outras mulheres
cientistas que tinham mais dificuldades e que tinham que trabalhar com
recursos próprios.
Outro destaque é para a austríaca Ida Pfeiffer, que fez uma viagem de circunavegação,
já viúva. Era dona-de-casa e dava aulas de piano. Quando a mãe faleceu,
ela conseguiu muitas cartas de recomendação que permitiram sua entrada
em vários países. Como os viajantes eram mal vistos por serem
comerciantes ou considerados espiões, essas cartas foram fundamentais.
Com poucos recursos, ela conheceu vários países e escreveu muitos
livros sobre os países visitados. Acabou sendo aceita na Sociedade de
Geografia de Paris e Berlim e teve muitos de seus livros traduzidos.
ComCiência -
Em que a literatura produzida por essas mulheres difere daquela
produzida por homens, que tanto tratavam de registros da natureza como
da cultura dos nativos, dos escravos, da sociedade em geral? A que
temas elas se dedicavam?
Moreira Leite
- Há quem diga que os livros de mulheres eram sobre "como" e "por que",
enquanto os dos homens atinham-se ao que. É uma exterioridade e uma
interioridade dos fatos. Elas procuram mais a interioridade. Mas ambos
usavam diários, correspondência e narrativas breves, com raras
exceções.
Meus
estudos referem-se às mulheres que viviam no Brasil e às mulheres
viajantes, as quais fazem comparações entre as mulheres que encontraram
no país e sua própria condição feminina no século XIX. As mulheres têm
capacidade de observação mais aguda e são mais capazes de perceber
minúcias, por isso conseguiram captar detalhes sobre a sociedade da
época com mais propriedade do que os homens. Os viajantes do sexo
masculino nesse período vinham para o Brasil seguindo uma orientação de
Humboldt, que era estudar a natureza: botânica, zoologia, astronomia, o
homem e suas condições sociais.
ComCiência
- A Baronesa de Langsdorff teve seu diário republicado no Brasil pela
editora Mulheres, que conta com uma apresentação sua. Que
características da sociedade brasileira da época são reveladas nesse
diário? É possível traçar algum paralelo com outras escritoras ou
viajantes como Adèle Toussaint-Samson, por exemplo?
Moreira Leite
- As duas são interessantíssimas e se fixaram em relações
interpessoais. O diário da Baronesa de Langsdorff, que se oculta sob o
nome do marido, o Barão Émile de Langsdorff, destacou-se pelo interesse
pelas relações interpessoais na Corte, onde teve mais contato, pois
viera para negociar o casamento da princesa Francisca, irmã de D. Pedro
II com o príncipe de Joinville. Suas narrativas da navegação à vela e
da educação ministrada à princesa mereceram publicação e são do maior
interesse histórico. Os paralelos entre as viajantes são precários,
pois eram de classes sociais diferentes, com profissão e focalização
diversos. Adèle Toussaint-Samson veio para o Brasil acompanhando o
marido, “para fazer a América”, buscando uma vida melhor, com mais
oportunidades do que tinham na Europa. O marido tinha antepassados no
Brasil, já entendia a língua, o que facilitou sua vinda e estada. Adèle
foi capaz de perceber a dificuldade da vida doméstica da mulher que
sofria o estereótipo de preguiçosa, ociosa e autoritária. Ela descreve
esse cotidiano de outra forma, mostrando que as mulheres eram
submetidas a uma vida de tédio, sem acesso a livros, à cultura, ao
lazer. Ela observou muito bem a vida cotidiana no Rio de Janeiro. Certa
vez interferiu na relação de um casal cujo marido preteria sua esposa
pelas escravas e aconselhou que a mulher deixasse o marido. Também
apresenta as relações entre senhores e escravos com muita propriedade.
Outro
dado importante sobre essa autora é que de volta a Paris, ela descreve
uma certa decepção, lamentando a perda do espaço da casa que tinha no
Brasil, além da perda dos imensos horizontes. Trata-se de uma autora
muito interessante, que recebeu recentemente duas traduções, uma para o
inglês e outra para o português.
ComCiência
- Tanto essa literatura de viagem como a iconografia produzida por
cientistas e artistas viajantes ajudaram a constituir a imagem do
Brasil no exterior e também influenciaram a formação da identidade
brasileira. Nesse sentido, que informações a senhora considera que
tenham sido relevantes?
Moreira Leite
- Por mais que esses artistas tentassem ser objetivos, alguns costumes
eram tão chocantes para os estrangeiros que eles não conseguiam
retratar a cena com exatidão.
Um
exemplo é uma cena de Debret em que um funcionário está desfilando com
os escravos e uma mulher grávida. A recepção da obra foi muito ruim por
apresentar essa situação. A maioria das cenas retratadas pelos artistas
da época eram comparações de hábitos locais com os europeus, que
mostravam exatamente o contraste cultural que havia, o que nem sempre
era bem aceito pelos leitores de outra camada social.
Outros
aspectos a serem observados é que nem sempre a técnica usada permitia
que se mantivesse a cena como o artista desejava. Muitos deles
desenhavam nas viagens a cena em papel, depois é que passavam para
tela, pedra ou madeira, o que fazia com que se perdesse um pouco a
exatidão do traço. Havia distorções também quando outro artista
reproduzia as obras originais, de acordo com seus cânones.
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